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terça-feira, março 10, 2020

Entendendo a religião do Candomblé e Ifá - pt. 6 - A religião e a sociedade

  Entendendo a religião do Candomblé - pt 6  

O papel da religião na sociedade


O mais básico para entendermos uma religião é entendermos onde a religião se insere na cultura, na sociedade e no papel dos indivíduos, ou melhor, qual o papel da religião na sociedade. Isso é a base do seu entendimento.

A vida no Àiyé é baseada na comunidade. Todas as coisas são criadas para viver em agrupamentos, comunidades. Embora os seres da natureza são criados individualmente e cada ser tem o ser próprio destino e poderes, nada no Àiyé pode sobreviver sozinho.

Todas as coisas da natureza vivem em comunidade. De formigas a elefantes, de algas a baleias, de plantas e árvores gigantes. É a comunidade das criaturas que formam a substância da bondade.

O indivíduo é a unidade da vida social, mas, é a parte de um todo e necessita estar junto de outros para se sentir inteiro e completo. Este é o princípio yorùbá chamado:


Àyájọ́ àṣuwàdà

Isso significa o encantamento da união.


Observem que a religião é uma manifestação voltada para o indivíduo, mas, a sociedade yoruba é voltada para a coletividade e a religião incorpora esse movimento.


Não existe na prática uma forma de culto religioso individual, a religião tem foco no indivíduo, seu sucesso, felicidade e prosperidade, mas o indivíduo depende da coletividade para poder praticar sua religião. 
 

A religião é uma expressão que faz parte do conjunto de ações da sociedade que visam estabelecer um contexto ativo que os yorùbá chamam de ifogbontaayese, isto é, o desenvolvimento de estratégias para promover na comunidade, a paz, a felicidade e a união entre eles.

De acordo com eles, o sucesso dessas estratégias dependem de virtudes como, amor, tolerância e justiça, tudo isso submetido e debaixo o termo Ìwà (o caráter ideal) que as pessoas devem ter.


A religião, suas práticas, seu conceito e seus grandes festivais religiosos, que nas terras yorùbá envolvem toda a comunidade são, então, manifestações ativas do ifogbontaayese.

A religião contribui nesse contexto de ifogbontaayese, com várias coisas, sejam coletivas ou individuais. No caso do indivíduo ela contribuiu buscando a formação do seu caráter ideal, o seu Ìwà Pẹ̀lẹ́. Os versos de Ifá e a cultura oral direcionam que as pessoas busquem formar o seu caráter para que possam se comportar em sociedade e contribuir para o ifogbontaayese.


Como eu já citei, tudo na terra é criação de Olódùmarè, sejamos nós ou os demais seres vivos e a natureza, tudo tem seu axé (àṣẹ).

Contudo existe uma diferença fundamental entre àṣuwàdà ẹranko – a comunidade animal e àṣuwàdà Énìyan – comunidade humana.


Ẹranko = selvagem e não refinado, governado por necessidades de subsistência e sobrevivência.


Énìyan = Criado por Oxalá (Òṣàlá) divinamente ordenado e dotado de razão.

A humanidade é definida por àwùjọ Énìyan, ter regras e convenções.


Toda criatura é única mas


àbùdá àti àyànmọ́ alúkalukú yatọ̀

cada indivíduo tem uma natureza e destino diferentes


A decisão de olodumare em criar os seres humanos (ènìyàn) foi devido ao seu desejo de transformar o mundo selvagem criado e um mundo ordeiro e belo.


De acordo com uma citação do Chief Fagbemi Ajanaku, Arabá de Lagos, colhido por Ajanaku (1i972):


Nós os seres humanos, fomos aqueles

selecionados por olodumare para ir

e desenvolver a terra. Nós fomos especialmente selecionados
Desta maneira a humanidade criada por Oxalá (Òṣàlá), recebendo um corpo especial, uma alma eterna e um axé especial de olodumare, se manifesta na inspiração, na arte, na criatividade, na iniciativa e principalmente, no caráter das pessoas e na sua ligação com a comunidade, para trazer a beleza ao mundo ordenado, diferenciando-nos do mundo selvagem.

O que olodumare espera de nós é trazer a beleza ao mundo, porque o comportamento selvagem pertence a outra comunidade de seres vivos.

Observem a seguir um exemplo de um encantamento de união:


Ifá foi consultado para olofin ótété

aquele que ia espalhar a diversidade pela terra

uma particula de poeira se transformou em uma cesta cheia de poeira

olófin ótété foi quem carregou a cesta de poeira para a terra

olófin ótété usou a cesta de poeira para criar a terra em ifé

uma miríade de bondade tomou a forma de união

fios de cabelo se uniram para ocupar a cabeça

um aglomerado de árvores se transformou em uma floresta

um aglomerado de mato se transformou na savana

abelhas sempre ficam juntas

as folhas da arvore eeran crescem juntas

a vassoura existe como um amarrado

Ó criador da união eu vos invoco

permita que a miríade de bondade venha até nós

Adicionando mais um conhecimento quero resgatar o uso de uma palavra importante que é ÀWÚRE.

Essa palavra é considerada um encantamento de união, ela é usada entre as pessoas para garantir sucesso nos negócios, sucesso nos jogos, sucesso nas artes, desejar boa-sorte.
Aqui no candomblé a palavra axé tem sido usada erroneamente com essa finalidade, mas a palavra que deve ser usada é awùré e não axé (àṣẹ).

Para poder evoluir a humanidade os mitos descrevem os orixá, que são divindades assumindo formas humanas de maneira a acompanhar os primeiros mortais na terra recém-criada, para ensinar a estes as bases da cultura Yorùbá.

Eu quero destacar que duas divindades são muito importantes nesse papel, Ògún e Oxalá (Òṣàlá).

Ògún é o orixá (Òrìṣà) da tecnologia, aquele que veio ao mundo para dar o ferro aos homens, ensinar eles a usarem isso e fazer ferramentas. Na verdade Ògún não é o ferro ele é a tecnologia. Foram as ferramentas que permitiram ao homem se diferenciar da comunidade selvagem.

Oxalá (Òṣàlá) por sua vez é o patrono das artes e sua presença e influência fez os homens desenvolverem suas habilidades artísticas. Claro que todos os orixá (Òrìṣà) são importantes mas esses dois vão, diretamente, ao encontro dos objetivos de Olódùmarè para a humanidade, nos fazendo especiais e distinto da vida selvagem. 

Através dessas descrições, é difícil diferenciar um orixá (Òrìṣà) verdadeiro de um ancestre divinizado ou de um herói da cultura, é muito fina a linha que diferencia um homem de um orixá, de modo que carregamos a similaridade que foi ensinada por esses em suas manifestações humanas.

A religião claramento vai ao encontra da sociedade, promovendo pessoas melhores, pessoas com Ìwà e uma integração da comunidade, suportando ambos através dos orixá (Òrìṣà) e de Eégún.

Textos antigos fazem referência a uma comunidade Yorùbá muito organizada, as cidades e a comunidade estavam em padrões acima dos europeus, mas, essa estrutura que era reunida pelas suas crenças e culturas infelizmente não resistiu aos conquistadores, sejam eles Árabes ou Europeus.

A sociedade Yoruba tinha uma organização bem estruturada na qual a cidade era dividida entre clans familares vivendo em vilas e que deveriam manter a ordem e a lei dentro do seu contexto. Essas vilas se agrupavam em conjuntos que eram administradas por uma pessoa, o Olórí itún, Disputas sérias entre as vilas ou entre esses agrupamentos eram levadas ao Obá (rei, um administrador nomeado) e acima dele havia o conselho dos anciãos, ou ògbóni.

Acima disso Havia a religião, com os orixá (Òrìṣà) e o Egúngún que representavam em suas manifestações a conciliação, resolução de disputas e a também a punição. Oró é uma forma grave de manifestação do culto dos ancestres. Haviam os Egúngún, a manifestação, diurna, alegre para trazer alegria, união e orientação e a manifestação grave, Oró que era noturna e punitiva.

Entre os orixá, Xangô (Ṣàngó), Ògún e Olomolu eram considerados as manifestações da justiça ou ira de olodumare que podia punir e levar pessoas de volta ao Órun (Ọ̀run).
Diferente de outras religiões onde as divindades eram também usadas como forma de controle do comportamento das pessoas, mas, que ficavam apenas nas ameaças, no caso Yorùbá, as divindades e ancestres (Egúngún e Oro) se manifestavam efetivamente de modo que a religião tanto era um formador de caráter como um elemento de controle.




iAjanaku, F, 1972. “Ori, ìpín àti kádàrá, Apá Kèjì”. Olókun 10:11-13


PRÓXIMO TEXTO:

- O BOM CARÁTER NO CENTRO DA RELIGIÃO

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