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terça-feira, março 17, 2020

Entendendo a religião do Candomblé e Ifá - Pt. 7 - O bom caráter no centro da religião

  Entendendo a religião do Candomblé - pt 7

O bom caráter no centro da religião 

 

A bem organizada sociedade Yoruba não foi forte o suficiente para resistir aos seus bárbaros invasores, sejam os árabes que iniciaram o processo de escravização comercial, como depois os europeus que fizeram isso trazendo em troca bens que levantaram a ganância.

Além disso, trouxeram as religiões, ambos os invasores, árabes e europeus e a perda da religião destruiu um dos pilares de sustentação desta sociedade.

Na vinda da religião para novo mundo também muito da essência se perdeu, divindades foram mantidas e suas liturgias, mas, os pilares da união coletiva e do caráter individual não foram compreendidos ou trazidos.

No Brasil, antropólogos que estudaram as tradições religiosas locais identificaram a religião como sem ética. Além disso todos os praticantes se ressentem continuamente da falta de união entre eles.

Mas isso é o que pode ser esperado quando você se preocupa apenas com o uso do supernatural para manipular a realidade, para fazer a magia. Sua religião vira um conjunto de atos, liturgias, práticas, rotinas. O ritual domina a religião e sobre tudo isso o comércio de axé (àṣẹ), de favores, de troca de benefícios ou de malefícios por dinheiro.
Se junto com a liturgia você não traz o sentido da religião, os seus valores morais e sua ética, tudo vira apenas animismo e fetichismo. Devoção em troca de poder.

Foi isso que acabou com a sociedade Yorùbá, trocar o seu bem estar, a união e a harmonia pelos bens que lhe foram oferecidos, as pessoas não perceberam que o maior bem que elas tinha era a vida, era a existência, era o Ìwà.

Eu fiz questão de abordar primeiro a estrutura da religião para tratar desses dois pontos importantes. União e caráter.

Vocês, a essa altura devem concluir que, após tudo o que eu disse que não haveria sentido as pessoas reclamarem dessas duas coisas, mas isso é um fato. Não existe união e a falta de ética é o que mais caracteriza a prática religiosa. Ela foi classificada como a religião onde não existe o pecado.

Isso tudo é verdadeiro e também falso, é apenas resultado de uma má formação da tradição religiosa que na sua vinda conseguiu captar os aspectos externos da religião, a estética, a música, o canto, a liturgia, mas não percebeu os aspectos mais sutis ligados a cultura do povo.


Ifogbontaayese. Onde ficou isso?

Como eu sempre afirmo, em contradição a muitos bobalhões que se referem as tradições religiosas no novo mundo, como sendo, não só uma religião e sim uma expressão da cultura do povo africano. Isso é uma imensa bobagem. Quem fala isso não sabe o que é religião ou cultura.

Cultura é muito complexa, está ligada ao povo, sua origem, sua formação e sua história. Não se importa ou absorve a cultura de um povo, você apenas captura pedaços disso, normalmente estéticos. No caso da religião você traz, também a parte mais externa a casca. O fruto se perdeu.

No novo mundo, a presença da religião não trouxe a meta da comunidade Yorùbá que é a união. Conforme eu expliquei antes, a religião é uma manifestação que contribui para a união, este é o objetivo, dela, ser um instrumento para formar o bom caráter nas pessoas e com isso trazer paz, ordem e harmonia para o povo.

A religião Yorùbá que eu aprendi a entender, não tem finalidade de cultuar deuses como um fim, ela é um instrumento para nos ajudar em nossa passagem pelo Àiyé.

Tem que ser entendido primeiro a visão metafísica de que nossa casa é o órun (Ọ̀run) e que a vida no Àiyé é uma aventura repleta de prazeres, sabores, sentimentos, emoções, riscos e realizações. Nossa alma é eterna, renascemos muitas vezes, mas para atingir nossos objetivos, para trazer beleza ao mundo natural, para sermos felizes e realizados precisamos viver bem em sociedade.

Esta não é a única religião no mundo que é reencarnacionista. O que diferencia as religiões é o sentido que elas dão a vida ou a forma como veem a nossa passagem aqui. Considerar que essa vida é única e que a alma, nossa essência vital, nossa consciência surge de uma monte de carne e ligações sinápticas é uma presunção de absoluta simplicidade.

Como o mundo surgiu? Em uma grande explosão? O Bing Bang? Depois a matéria inorgânica surgiu assim do nada, os átomos foram se unindo das formas mais diversas, formando compostos mais complexos, estruturas longas de carbono, aminoácidos, proteínas e ai, PLIM, a vida surge.

Ok, interessante, bilhões de anos e tudo isso acaba ocorrendo, bilhões de ano é muito tempo, de fato pode ocorrer muita coisa. Mas de onde saiu essa matéria toda? E essa explosão? Quanta matéria é necessária para forma galáxias imensas, estrelas gigantescas e bilhões de planetas?

Você tem explicação para tudo isso? Eu já pensei sobre isso tudo e não tenho.
Não adianta se beliscar, você existe.

Como eu já disse, quando a compreensão acaba, quando o que é racional termina a partir daí é o mistério.

Já tentaram acabar com deus de todo o jeito, e deus sempre aparece de novo. Religiões surgiram e sumiram, mas, deus e o divino sempre surge. Aceitar o divino e crer em deus, sinceramente, é a saída mais simples para você sair dessa confusão.

Mas não basta apenas isso, crer em deus e praticar uma religião. Assim como a crença religiosa nos dá uma luz de racionalidade para entender a vida, temos que estender essa compreensão um pouco mais e compreender de fato porque precisamos de uma religião e de deus na nossa vida.

A religião molda as pessoas e boas pessoas moldam uma boa sociedade.

Eu não quero com isso afirmar que somente pessoas religiosas são boas e que toda pessoa religiosa é boa. Em um mundo com muitas forças, opções, alternativas, tentações, a religião vai ao encontro de ajudar as pessoas e a sociedade a serem melhores. Além disso trazem as receitas para se usar o supernatural a seu favor.

A questão cultural da união e harmonia através do bom caráter e da maneira de trazer isso através de ações positivas para o ifogbontaayese, que faziam parte da religião foram parcialmente trazidas, mas definitivamente não compreendidas. É por isso que aqui as pessoas ainda se referenciam a religião como sem ética e as pessoas sem união.

Segundo Parés (xxxx, xx), os negros tinham duas opções, se ligarem…. Ou ficarem escravos em uma casa de Candomblé. Muitos escolheram fugir de uma nova escravidão e optaram pela religião da sociedade branca.

Ainda hoje o mal inicia nas casas de Candomblé, que estão longe de serem locais de união e harmonia. Não é esse o sentimento que reina nessas casas, onde os dirigentes, sejam Babalorixá (Bàbálórìṣà) ou Iyalorixá (Ìyálòrìṣà) ainda exercem suas funções através da submissão e controle. Como se pode esperar união entre pessoas da religião se nada do que se faz é para promover isso?

Quando a sociedade enxerga uma religião de animismo, fetichismo, feitiços e malefícios não está inventando nada. Não pode estar inventando quando 100% do tempo as pessoas da própria religião reclamam da falta de união, como o principal problema deles.

O que falta a religião no novo mundo? Simples Ìwà

As pessoas falam o tempo todo de axé (àṣẹ) o tempo todo de Orí como se essas coisas resolvessem todos os problemas. Não é isso, elas vão passar a vida todas correndo atrás de ebó (Ẹbọ) e de Bori.

O que elas deviam saber e o tempo todo repetir é:


Ìwà l’ewà – O caráter traz a beleza

Ìwà l’esin – O caráter é a essência da religião

Em função deste cenário eu devo parecer aqui um maluco falando de união, retidão moral e caráter.

De fato, em contradição a tudo o que se fala aqui da religião, o alvo definitivo do código de conduta Yorùbá é incutir em seus cidadãos os elementos do caráter ideal (ìwà pele).
Um provérbio popular diz:


O bom caráter é como um orixá

O mais que nós o cultivarmos

mais ele nos favorecerá.

Eles acreditam que um bom caráter gera admiração e amor e dessa maneira pavimenta nossa estrada para o sucesso na vida. Além disso um bom caráter adiciona beleza a uma pessoa.

A beleza no conceito Yorùbá tem dois aspectos. O externo (ewà òde) e a beleza interior (ewà inú). Nos seres humanos a beleza interior é sinônimo de virtude. Existe um provérbio popular que diz:


O caráter é a essência da beleza

Ìwà, o caráter é o melhor determinante para a natureza das pessoas, no modo de ver dos Yorùbá. O caráter denota a pessoa com atitude e comportamento que favorecem a união (àṣuwàdà) e isso como já expliquei é o objetivo primordial dos Yorùbá é este. 
 

Eles tem uma frase que materializa isso:



Ìwà l’èsìn

O caráter é a essência da religião



O seguinte verso ilustra isso que estou dizendo:


Se uma criança é bela mas não tem caráter

Ela não é mais do que uma boneca de madeira

O bom caráter é a beleza da pessoa

Uma mulher pode ser bela como um Egbara

Se ela não tem caráter

Ela não é melhor do que uma boneca de madeira

Um homem pode ser muito habilidoso

como um peixe na água
se ele não tem caráter ele não é melhor do que uma boneca de madeira

Um dos nomes que recebe olodumare é Olú Ìwà, o senhor do caráter e da existência. Uma pessoa ideal é designada como sendo Ọmọlúwàbí, o filho do senhor do caráter). Mesmo se uma pessoa não for fisicamente atrativa o seu bom caráter compensará isso.


Porque somos seres especiais nesse mundo?



Uma das perguntas teológicas importantes para serem respondidas é porque deus, Olódùmarè, nos dá privilégios nesse mundo, se tudo no mundo é criação de Olódùmarè, porque nós somos especiais?


Primeiro, não existe nenhuma referência que deus nos tenha criado sua imagem e semelhança, esqueçam essa frase. Como eu disse no início, temos no mundo duas grandes comunidades a humana e a selvagem.


Como já citei no início Olódùmarè criou a vida humana com almas permanentes para trazer beleza ao mundo e o Ìwà, o caráter ideal está no centro disso porque nos diferencia da comunidade animal, que não possui isso.


A palavra que define a essência dos seres é èda ou àbùbá. Èda é a essência natural dos seres vivos, denota suas características físicas e comportamentais e categoria os seres vivos.


Ìwà é o que transforma a natureza dos seres vivos trazendo para eles a beleza (ewà). Desta maneira é o Ìwà que nos faz diferentes da comunidade selvagem e nós, diferente deles temos a capacidade de trazer beleza ao mundo. Este é nosso papel, sermos boas pessoas e fazermos do mundo um lugar bom e belo para se viver, lembrando do conceito de beleza interior.


Ìwà é o que traz a beleza interior e não a exterior e é essa beleza interior que temos que buscar porque essa é a verdadeira beleza.


Assim 2 frases fazem agora muito sentido para vocês:


Ìwà l’ewà – O caráter traz a beleza

Ìwà l’esin – O caráter é a essência da religião


Com isso fica claro que não estamos tratando de uma religião sem pecado, não estamos tratando de uma religião sem ética. É o oposto disso.


PRÓXIMO TEXTO:

- O PAPEL DA RELIGIÃO NA VIDA DA SOCIEDADE

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