O Axé e o conceito de quintessência
Este termo, quintessência, pode não ser do
conhecimento de todos, mas, o conceito de axé (aṣẹ́) nos remete
exatamente ao conceito de quintessência que foi largamente estudada
e documentada no século XIX por famosos alquimistas como Francis
Barret, Agrippa e Paracelso. A quintessência era a base da alquimia
que unia ciência à religião, uma vez que os alquimistas eram
religiosos e tinham o conceito de deus na base de tudo o que faziam.
Muitos hoje dizem que ciência e religião são opostos, os
alquimistas não entendiam dessa maneira.
O seguinte texto é retirado da obra Magus de Francis
Barret.
“A alma é a forma
essencial, inteligente e imperecível, o primeiro moto do corpo, e
move-se por si mesma. O corpo, ou matéria, não consegue ou não se
presta a mover-se por si só, e perde muito das qualidades primitivas
da alma. Assim, torna-se necessário um meio mais aperfeiçoado. Este
meio, entende-se, que seja o espírito do mundo, ou aquilo que alguns
chamam de quintessência porque não é formada pelos quatro
elementos, mas por uma certa coisa primeira, superior e além deles.
Há portanto a necessidade de um meio pelo qual as almas celestes
possam unir-se aos corpos densos, agraciando-os com dádivas
prodigiosas. …. este espírito transmite todas as propriedades
ocultas para as ervas, as pedras, os metais e os animais... este
espírito pode nos ser útil se soubermos separá-lo dos elementos ou
ao menos usar principalmente as coisas em que abunda...”
Este conceito é a base da alquimia e da cabala
divina. Axé (aṣẹ́) é exatamente isto e não estou fazendo um
sincretismo. Não gosto de sincretismo e não gosto de comparações,
mas, não posso nessa explicação fugir disso. Muito pouca gente
estudou esse conceito de supernatural nas 2 religiões para poder
fazer essas comparações que estou fazendo.
Não estou trazendo para dentro dessa religião o
conceito de outra, estou apenas fazendo um paralelo porque se trata
do mesmo conceito e tenho um propósito positivo com isso.
Religiões diferentes, sociedades diferentes e tempos
diferentes. Ambas possuem o mesmo entendimento de uma parte do
supernatural. Não estamos aqui fazendo equiparações teológicas. A
religião Yorùbá usa exatamente o mesmo princípio da alquimia
quando trata de axé (aṣẹ́) e dos famosos ébó (ẹbọ), que
são liturgias que distribuem, repõem e transmitem o axé (aṣẹ́)..
Eu, pessoalmente, como já disse, odeio explicar
alguns conceitos fazendo comparações, tenho como opinião que toda
a explicação deve ser original, mas nesse caso estou fazendo isso
para acabar com o preconceito em relação a esta religião Yorùbá.
Olódùmarè dá a cada elemento um poder original
que tem origem nele. Esse poder torna cada elemento único, distinto
e útil. O momento em que isso ocorre é aquele onde ele transmite o
Emi e já foi descrito anteriormente. A liturgia que ele executa é
mais do que apenas dar vida ao corpo é dar o axé (aṣẹ́) ao
corpo.
Por essa razão Orixá-nlá (Òrìṣà-nlá) não
pode sozinho fazer todo o trabalho, é necessário que Olódùmarè,
após Orixá-nlá (Òrìṣà-nlá) concluir o corpo, de o sopro de
vida ao que era apenas barro como também, e principalmente,
transmita sua centelha divina às suas criações o axé (aṣẹ́).
Isso não pode ser feito por Orixá-nlá (Òrìṣà-nlá), somente
Olódùmarè pode transmitir o axé (aṣẹ́) e isso mais uma vez
explica porque ele, Olódùmarè pode ter o título de ser a
divindade suprema da religião Yorùbá.
O momento em que ele faz o mesmo com as demais
formas, vivas ou não, não é explicado. Apenas a criação dos
homens é definida, mas, devemos supor, por ilação que de alguma
forma cada elemento vivo no àiyé recebe de Olódùmarè o seu axé
(aṣẹ́).
Vejam o seguinte texto feito por mim por há muitos
anos baseado nas ideias da alquimia:
Assim as pedras,
metais, animais e ervas tem cada uma sua própria virtude que é
herdada das inteligências ordenadoras e este é o ponto que nos
interessa. De acordo com este princípio os elementos têm
suas características criadas por deus, controladas pelas
inteligências e que lhes são transmitidas pelos elementos e astros.
Há portanto, uma virtude e um funcionamento em cada uma delas, mas
são maiores no astro que as governa ou no elemento que a compõe.
As virtudes são
justamente as características mágicas que buscamos nestes elementos
de segunda ordem para podermos obter através da transferência
destas virtudes para as pessoas nas quais trabalhamos. Assim virtudes
não são as características físico-química dos elementos que lhes
atribuem a aparência, beleza e valor, mas, sim a sua força mágica
que foi designada por deus.
A alma é a forma
original e essencial, mas esta precisa ter os seus poderes atribuídos
às coisas, e isto se dá através do quinto elemento, ou
quintessência, que é transmitido às pedras e cristais através do
sol, da lua e dos atros e emprestam a estas as suas propriedades
ocultas.
Desta maneira o poder
dos elementos é um desígnio divino, criado por deus que é
armazenado nestes através do elemento que os influenciam. Sempre
será maior no astro que a rege e isto é muito importante e deve ser
observado ao se analisar quando e como algo deve ser feito, porque
tanto maior será o efeito mágico da pedra quanto intenso for o
astro ou elemento que lhe dá a sua virtude.
Por esta explicação de origem alquímica, nós
entendemos que os poderes dos elementos lhes são inerentes e dados
por deus sendo assim importante sua permissão e autorização antes
de serem operados. O operador como parte deste sistema de energia e
sendo também em seu corpo um armazenador de virtudes e também do
quinto elemento, usa a essência deste último canalizando-o para
transmitir as virtudes destas para quem recebe. A pessoa que recebe
esta energia vai através da sua própria quintessência transmitir a
seu corpo as virtudes recebidas sendo então beneficiado por elas.
É uma explicação complexa mas que unifica as
verdades das anteriores bem como estabelece a importância de se
entender o papel dos atros e elementos no entendimento da magia das
pedras.
Baseado no que já foi dito eu posso dizer
simplesmente que os elementos são como baterias que armazenam e
concentram a energia da Terra, onde entende-se Terra como o espírito
do mundo.
Eu não teria, hoje, uma forma melhor para explicar o
que é axé (aṣẹ́).
Os alquimistas foram mundanamente conhecidos por
buscar transformar chumbo em ouro. Eles o faziam, mas não
compensava, porque para transformar um metal em outro você precisava
primeiro capturar as propriedades do material original, através do
processo alquímico que eles desenvolveram e depois transmitir para o
outro metal. Mas o processo não compensava a quantidade resultante
era equivalente a inicial, assim não compensava fazer isso.
Mas a alquimia não se resumia a isso, transformar
metal, e sim capturar as propriedades dos materiais e transmitir para
outros. O foco da alquimia era a pedra filosofal que servia para
muitas coisas inclusive trazer saúde e vida.
Alquimia era a ciência de entender como deus criou o
mundo e usar o poder que deus deu às coisas para trazer benefícios
para a humanidade. Um alquimista era um cientista de deus, assim como
o é um Babalawo.
Na religião Yorùbá fazemos o mesmo processo.
Entendemos as criações de deus, de Olódùmarè, capturamos o axé
(aṣẹ́) das coisas e transmitimos para os seres que necessitam
dele. Esta é a essência do que fazemos nas liturgias reparadoras.
Mas vamos deixar os alquimistas para trás, já
serviram para ajudar na explicação que interessa aqui e nos
aprofundar na forma como usamos o axé (aṣẹ́).
O objetivo das liturgias
A ideia de axé (aṣẹ́), repito sem exageros, é o
núcleo da vida no aiye. Todo elemento da terra tem axé (aṣẹ́),
ele é um elemento necessário para a vida e a sua falta, ou excesso
é o que nos traz problemas, sejam eles de saúde, mentais e mesmo de
sorte na nossa vida.
É fácil entender que, o que nos traz desequilíbrio
é aquilo que nos prejudica. Trazer de volta o equilibro para nossa
energia e por consequência para nossa vida, é o que e as liturgias
da religião Yorùbá fazem através de suas operações, os Ebó
(ẹbọ) e as oferendas votivas.
Fica assim desvendado o primeiro mistério sobre as
liturgias do Candomblé. Todos eles, sem exceção, são voltados
para trazer o equilíbrio ao axé (aṣẹ́). O resto necessário
para solucionar os seus problemas, você faz sozinho. Qualquer
objetivo que as pessoas se disponham a realizar, através das
liturgias, além deste não é mais religião é uma prática
qualquer.
O que permite as liturgias atingirem esse objetivo é
porque o axé (aṣẹ́) como força mágico e sagrada tem muitas
algumas propriedades importantes que vou explicar aqui. A primeira
delas é que ele pode fluir entre os elementos, de maneira que você
pode transmitir ou repor.
Ele pode ser coletado de uma fonte e aproveitado em
outra, repondo a energia vital de quem necessita ou utilizando a
virtude divina, que traz uma propriedade adicional e necessária para
a pessoa que recebe, e que o elemento cedente possui. Folhas, por
exemplo, são conhecidas por suas propriedades terapêuticas.
Todos os elementos, dos minerais aos animais, são
fonte de axé (aṣẹ́) de diversas naturezas e tipos de uso. Em
alguns casos precisamos deles como fonte da energia vital em outros
precisamos da virtude especial que eles tem, que lhes dá um caráter
terapêutico único, seja para questões naturais como supernaturais.
Vejam, essa última frase é simples, pode ter
passado despercebida, mas é muito importante. Através das liturgias
podemos endereçar tanto as questões ligadas a problemas naturais,
como doenças, como também problemas ligados a alma e espírito que
pertencem ao supernatural. A religião vê o ser humano de uma forma
holística e tem uma concepção mais ampla do que por exemplo a
medicina e outras ciências têm que somente conseguem ver as
questões naturais. Lembro que muitas culturas orientais, ligadas ou
não a religiões, também tem uma visão mais holística do nosso
ser.
Mas religião não substitui medicina e muito menos
concorre com ela. Apenas podemos endereçar coisas naturais quando
elas também têm causa em questões supernaturais. Ao removermos a
raiz do problema, resolvemos ou ajudamos a resolver as consequências,
que são as manifestações visíveis.
A intensidade dessa força vital, o axé (aṣẹ́),
nos seres vivos pode variar, aumentando ou diminuindo. Ela é sujeita
a erosão do tempo e do seu uso contínuo e direcionado. Quando isso
ocorre o elemento que o contêm perde sua energia. No ser humano a
perda de axé (aṣẹ́) poderá levar a enfraquecimento, doenças,
desequilíbrios emocionais e físicos.
Esses desequilíbrios e doenças é que trazem os
problemas e desestabilizam a vida da pessoa. Eles são a causa raiz.
Os problemas que você passa advém das consequências da sua perda
de axé (aṣẹ́), são sintomas. É como um dominó. Uma primeira
pedra é derrubada e esta pedra derruba a próximo e esta a próxima
e assim vai.
O que fazemos na religião e no nosso oráculo não é
olhar para as últimas pedras que foram derrubadas e sim para a
primeira, a que derrubou todas as demais.
Não adianta nada você gastar esforço para colocar
as últimas peças do dominó em pé se o problema tem origem bem
antes. Você coloca ela em pé isso dura um tempo e logo depois elas
vão cair de novo.
É neste momento entra em ação o oráculo da
religião, seja o de Ifá como o eerindinlogun.
Na religião Yorùbá é o oráculo que se encarrega
de detectar o problema que causa a perda ou excesso de axé (aṣẹ́)
e também de indicar as liturgias que são necessárias para fazer o
seu equilíbrio.
O oráculo religioso não é um instrumento de
previsão do futuro ou de solução de problemas. Essencialmente é
um instrumento para detectar e devolver o equilíbrio do axé (aṣẹ́)
das pessoas.
Lembre-se que nesse momento trabalhamos com 2
princípios, o primeiro é a reposição de energia vital ou o seu
equilíbrio. O segundo é que os materiais possuem as virtudes
especiais, aquelas propriedades divinas e que serão obtidas através
da liturgia, transferindo elas para a pessoa que precisa.
O processo não é apenas uma operação de “ligar
você na tomada” para repor sua energia. Passa por mais coisas. A
primeira é a questão das virtudes e que determina por exemplo os
materiais que serão usados e o que processo será utilizado. Essas
virtudes trazem coisas que precisamos para resolver os problemas.
Se você entendeu até aqui, ótimo, caso contrário
reveja o texto para ter certeza que está compreendendo o que é o
axé (aṣẹ́), o que eu chamo de virtude, como o axé (aṣẹ́) se
caracteriza (os tipos) e como ele é obtido e usado.
As liturgias, além de reporem a nossa energia e usar
as virtudes especiais dos materiais que fazem parte de cada
procedimento, lançam mão ainda 2 outras coisas, a primeira é a
atuação do divino, ou seja, das divindades, e a segunda é a ação
da magia que pode mudar coisas no mundo natural.
Um sacerdote não é um médico. Ele é um religioso,
mas, como já disse a religião tem uma visão holística de nossa
vida e corpo. Entendemos que ao restabelecer o equilíbrio das
energias do nosso corpo, ao repormos o axé (aṣẹ́) e ao
eliminarmos as causas que levam a essa perda, daremos condições
para que o próprio corpo se reestabeleça.
Isso é feito com a ajuda divina, de Olódùmarè e
também usando as fontes de axé (aṣẹ́) que Olódùmarè colocou
no Àiyé, uma vez que, como já expliquei, não podemos criar axé
(aṣẹ́) do nada, temos que obtê-lo de uma fonte natural.
O oráculo é o instrumento que o Bàbáláwo usa
para fazer isso. Esta é uma explicação bastante visceral de um
oráculo, mas, acreditem, é isso mesmo.
É o entendimento desta religião que o axé (aṣẹ́)
deve ser equilibrado. Tudo é feito para que este equilíbrio seja
atingido e que a pessoa possa desta maneira levar sua vida de forma
normal, superando com força, determinação, trabalho e persistência
os seus obstáculos e perseguindo os seus objetivos.
Nas liturgias e oferendas. Os materiais usados são a
fonte do axé (aṣẹ́) que será transmutado e transmitido na forma
da quintessência. As divindades não comem as oferendas e muito
menos precisam delas, nós precisamos. A escolha dos materiais e
elementos depende da finalidade e também da divindade, cada
divindade tem afinidade com determinados tipos de elementos.
Quando realizamos um Ebó (Ẹbọ) não estamos
fazendo um processo científico, tudo na religião é feito através
das divindades, dos orixá (Òrìṣà), que foram as divindades
colocadas por Olódùmarè para cuidar da gente aqui no àiyé. A
realização da liturgia e a conversão das oferendas votivas em axé
(aṣẹ́) depende da intervenção do divino. São as divindades que
intercederão por isso.
Veja, os próprios alquimistas também trabalhavam
com o mesmo princípio. No que pese uma aparente base científica no
que eles faziam, de fato nada aconteceria sem o divino, sem a
intervenção de deus e dos anjos.
O sacerdote é uma pessoa preparada para fazer o que
faz, e vou falar sobre isso mais adiante. Mas, mais do que somente
ele, o divino atua junto com ele e através dele para que as coisas
funcionem.
Dessa forma, mais do que estarmos repondo energia
perdida e usando virtudes, é o divino que a partir de nossas orações
e de sua presença constante faz com que isso funcione e atue da
maneira adequada, nós, somos intermediários entre o àiyé e o Órun
(ọ̀run).
É importante lembrar, por fim, que Ebó (ẹbọ) é
uma palavra meio genérica, que é usada para mais de uma coisa
(estilo Yorùbá...). Assim pode ser uma oferenda ou uma liturgia.
Oferendas sempre são usadas para dar axé (aṣẹ́) que será usada
para a pessoa ou para alguma ação de magia. Os Ebó (Ẹbọ) pode
ser procedimentos para retirar energias negativas, dar energias
positivas, retirar excesso de energia positiva ou usar as virtudes
com objetivos terapêuticos seja para o corpo ou para a alma.
O axé (aṣẹ́) e os materiais
Não conseguimos gerar axé (aṣẹ́) do nada. Temos
que obtê-lo de uma fonte deste mundo. Axé (aṣẹ́) é uma
exclusividade de Olódùmarè. Neste momento entra a nossa ética e
sistema de valores para balizar as escolhas. Como eu disse, tudo o
que existe é criação de Olódùmarè.
Não é verdade que a religião Yorùbá seja baseada
no uso de animais como fonte de axé, isso é uma tolice. Animais são
muito caros e vida se trata com respeito, mesmo que seja para ajudar
a outra vida. O que se faz é, de uma religião inteira, complexa e
com conceitos extremamente positivos pegar apenas um detalhe e usá-lo
de forma arbitrária e questionável. Isso, principalmente, vem de
religiões que são extremamente pobres na forma de ver a felicidade
da vida das pessoas na terra.
Os materiais usados na religião Yorùbá são
esmagadoramente grãos, frutos, castanhas, raízes e principalmente
folhas. Tudo isso nesta religião é sacrifício. Sacrifício é o
ato de usarmos uma coisa com o objetivo de dar a outra. Assim
sacrificamos folhas, sementes, castanhas, vegetais, legumes e
inúmeros outros materiais. Tudo isso é sacrifício e é usado para
obter energia vital e virtudes.
Seres vivos também são portadores de axé (aṣẹ́),
um tipo bem especial e intenso. Em alguns casos essa fonte é
necessária. Mas isso não é o comum, é bem especial e seu uso
litúrgico ocorre em casos especiais e para pessoas especiais. O seu
uso como fonte de axé (aṣẹ́) é necessário, mas, por inúmeras
razões deve ser criterioso.
Muitos podem, neste momento, dizer que estou
diminuindo a proporção das coisas e tapando o sol com a peneira.
Não, não estou. O problema é que existem coisas que a maior parte
das pessoas desconhece ou não quer ver.
A primeira coisa é que não sendo você vegetariano,
e existem muitos poucos que o são, você consumirá diariamente
bastante proteína animal para viver. Milhões de animais são
sacrificados diariamente para atender a sua vontade ou preferência
de consumir proteína animal. Esses sacrifícios são feitos, então,
porque você come proteína animal. Animais são criados
exclusivamente para serem consumidos, vivem em condições desumanas
e são sacrificados ainda em procedimentos péssimos. O mercado de
carnes especiais gera um processo de tortura na criação dos
animais.
As pessoas fingem que isso não existe e cinicamente
acham que os frangos já nascem congelados ou o boi já nasce
fatiado. Essas pessoas são as primeiras a se levantar porque por
acaso isso é feito de forma muito mais decente dentro de uma
religião. Se levantam por nada, apenas por preconceito, porque elas
não fazem piquete na frente de um abatedouro de frango ou de
animais.
Ja ouvi gente dizendo que não se incomoda com isso
porque ele não vê os animais sendo mortos, somente vê eles prontos
no supermercado. Isso me parece hipocrisia. Não se preocupam com os
animais que comem mas se dão ao trabalho de se preocupar com uma
religião que por acaso abate os animais que consome.
Inúmera religiões incluem em seus rituais o uso de
animais. Os judeus fazem isso seja como liturgia ou no seu dia a dia.
A comida kosher é prepara liturgicamente por sacerdotes e os judeus
as compram para o seu dia a dia. Algumas tribos judaicas até hoje
fazem sacríficos litúrgicos a deus, a Jeová, o mesmo deus dos
católicos. Chama-se Holocausto. Somente as tribos que usavam o
templo de salomão pararam de fazer sacrifícios com regularidade,
mas tribos como os Samaritanos, nunca usaram o templo de Salomão e
por isso nunca interromperam. Os frangos abatidos no Brasil e
exportados para os árabes passam um por uma liturgia para que esse
sacrifício seja feito da forma como a religião requer. Os católicos
sacrificaram inúmeras pessoas acusadas de heresia ou bruxaria em
nome de seu deus. Dezenas de outras religiões usam as oferendas como
forma de compartilhar sua prosperidade com deus.
Assim, nesse mar de casos, quando se fala da
religião Yorùbá, como o Candomblé, a única coisa que as pessoas
lembram é que também se faz a mesma coisa que os outros fazem. Nada
mais interessa. Parece que as pessoas nesta religião vivem para
matar bichos.
Existem um fator que poucos conhecem e é bem
simples. Muitas casas incluem o uso de animais em trabalhos apenas
porque as pessoas precisam comer carne. Só por isso.
Entenda dessa maneira, consumir carne não é crime,
somos onívoros e comemos vegetais e carnes. Uma casa, as vezes
sustenta muitas pessoas e os trabalhos que são feitos,
principalmente para clientes (pessoas externas à casa) servem
majoritariamente para repor a dispensa da casa. Parece engraçado e é
mesmo. Os não membros de uma casa pagam para a subsistência das
pessoas da casa, nem sempre com dinheiro, também com dinheiro, mas
principalmente com materiais que são usados no que é pedido.
Uma casa de candomblé, principalmente as mais
antigas e tradicionais, tem dentro delas uma grande comunidade de
pessoas descendentes dos fundadores. Essas pessoas vivem ali e as
vezes somente se dedicam à religião, como os monges e freiras.
Essas pessoas precisam comer diariamente. Um dos principais motivos
de uma casa abrir suas portas para atender, através do jogo de
búzios, clientes, é para ter dinheiro e alimento para essas
pessoas.
As pessoas então tem a impressão de que animais
sempre são incluídos ou fazem parte do Candomblé, não fazem, na
maior parte dos casos são acessórios colaterais, não seriam
necessários.
Deixando de lado essa questão dos animais, o axé
(aṣẹ́) será coletado de folhas, sementes, castanhas e alimentos
crus ou cozidos. Quase tudo é fonte de axé (aṣẹ́). A escolha de
cada um desses materiais e a sua combinação esta ligada a
necessidade, a virtude que eles tem e à divindade que intercederá
pela pessoa.
Cada divindade tem um conjunto de materiais que são
parte da sua afinidade e outros que não. A maior parte dos materiais
é comum, mas, existem tanto uma lista de preferência como de
proibições.
As folhas são um dos materiais mais importantes na
retirada do axé (aṣẹ́) e também mais poderosos. Praticamente
nada se faz sem folhas ou sementes. Cada folha tem uma finalidade
litúrgica que faz com que elas sejam usadas na forma bruto ou
através do seu sumo.
Existem pessoas que defendem que tudo pode ser
resolvido apenas com folhas. Esse é uma questão antiga e em Ifá
consideramos que o sacrifício é mais forte do que as folhas e que
sem o alimento do sacrifício as pessoas perecem. A verdade é que
sem folha não existe resultado certo.
O axé (aṣẹ́) e as Iniciações – O poder
que se ganha
Além da questão de repor o axé (aṣẹ́), que eu
já comentei muitas vezes, temos também as virtudes, ou poderes, que
podem ser transmitidos de um material para outro. Não se trata de
repor a energia perdida mas de ganhar um tipo de energia e poder que
a pessoa não tinha, vinda de outra pessoa ou elemento dando a essa
nova pessoa uma capacidade que ela não possuía, trata-se do axé
(aṣẹ́) transmitido.
Liturgias e iniciações tem esse efeito de
transmitir axé (aṣẹ́) e qualidades. Um sacerdote passa por um
longo processo iniciático onde gradualmente irá receber poderes e
capacidades que não tem. Esses poderes serão as ferramentas de seu
trabalho no seu dia a dia.
Toda liturgia feita por um sacerdote é um processo
complexo que envolve a fonte de axé (aṣẹ́), a sua capacidade de
operar com isso (o axé (aṣẹ́) que ele possui) e a participação
do divino que o suporta e auxilia nesta tarefa.
A capacidade de fazer determinadas liturgias e de ser
este intermediário na transmissão do axé (aṣẹ́) enquanto
energia, é um axé (aṣẹ́), uma virtude que se adquire através
do processo de iniciação e formação.
Da mesma forma como se é intermediário na
transmissão do axé (aṣẹ́) também o sacerdote, ou operador da
liturgia, transmite o seu próprio axé (aṣẹ́). A pessoa que faz
é também afetada pelo procedimento. Isso vai requerer que ele
também se submeta regularmente a um processo de reposição e
equilíbrio, essas pessoas não estão acima da lei natural que rege
todas as coisas. O trabalho delas gera um desgasta continuo que deve
ser corrigido sob pena de esta própria pessoa se prejudicar.
Os processos iniciáticos que existem dentro da
religião Yorùbá tem como objetivo preparar o iniciado e futuro
sacerdote para poder atuar como o intermediário entre o Órun
(ọ̀run) e o àiyé, na manipulação do axé (aṣẹ́) e da
energia dos Odù que é uma outra forma de energia divina que é
explicada em outro texto. Para poder ser o intermediário dessas
operações de magia, transmutação, condução e transmissão de
axé (aṣẹ́) o operador necessita algumas vezes receber
capacidades e habilidades que são transmitidas por outra pessoa.
Este é outro conceito muito importante na religião
o do axé (aṣẹ́) transmitido. O axé (aṣẹ́) enquanto virtude
e capacidade litúrgica para lidar com o divino deve ser transmitido
de pessoa a pessoa. Um sacerdote pode ter nativamente algumas
capacidades, isso esta ligado a sua herança pessoal e familiar, ao
seu orixá (Òrìṣà) e ao seu destino na vida. Mas, outras
capacidades necessárias para lidar com essas energias divinas devem
ser transmitidas de outra pessoa que já as possui. Isso é
necessário devido a estarmos lidando com forças supernaturais
poderosas e para segurança das pessoas que recebem o que ele faz e
eficácia do que ele faz é necessário que a pessoa receba o axé
(aṣẹ́) para poder trabalhar.
O que estou dizendo é que uma pessoa para poder
operar com o divino, ser o operador, seja Bàbálorixá ou Bàbáláwo,
deve ter o axé (aṣẹ́) necessário para isso, e isso é parte de
um processo iniciático e hereditário. O sacerdote fará parte de
todo uma linhagem de outros sacerdotes. Essa herança na forma de axé
(aṣẹ́) é a virtude de Olódùmarè que ele deve possuir para
poder operar com as energias de axé (aṣẹ́) e de Odù.
Não se pode dar o que não se recebeu.
Essa é uma frase muito simples mas que resume
extremamente bem o que estou explicando. A pessoa precisar receber o
axé (aṣẹ́) que vai transmitir. No caso do sacerdote que vai
fazer liturgias mais complexas do que as oferendas votivas, ele
precisa ter recebido o axé (aṣẹ́) para proceder aos Ebó (Ẹbọ)
e sacrifícios. Ele não pode se auto-doar esta capacidade. Na maior
parte dos casos ele mesmo erá que ter passado pelas liturgias que
vai executar.
É verdade que algumas pessoas já nascem com algumas
capacidades, mas isso não cobre tudo o que é necessário. É a
iniciação que molda e complementa esta capacidade dando a essa
pessoa a virtude divina na forma de axé (aṣẹ́). Além disso a
pessoa precisa adquirir conhecimento para fazer as liturgias.
Se submeter a liturgias e Ebó (Ẹbọ) com pessoas
que não tenham recebido isso, que não tenha ganhado o axé (aṣẹ́)
para fazer isso é se submeter a um processo instável com uma pessoa
que pode não ter nem o conhecimento nem a capacidade de fazer o que
se propõe. Você se arrisca a jogar tempo ou dinheiro fora e pior,
piorar sua situação.
O axé (aṣẹ́) nas palavras e símbolos
Como na alquimia, a religião Yorùbá deposita axé (aṣẹ́)
nas palavras orações e selos.
O processo de Ifá é baseado em versos que invocam forças
primordiais do supernatural. As palavras têm axé (aṣẹ́) e devem
ser faladas e voz alta. Nomes são importantes e as orações são
fundamentais para a ligação Órun (ọ̀run) e àiyé.
Esse princípio de que palavras e orações tem
poderes mágicos existem em muitas religiões. Os mantras são
baseados nisso, os encantamentos são baseados nisso também. Os
Yorùbá entendem que palavras são pronunciadas por nós e
transportam nelas o nosso axé (aṣẹ́).
Outro aspecto, são os símbolos ou selos. Eles estão
presentes em Ifá e não no culto de orixá (Òrìṣà). Ifá baseia
o seu processo de magia e energético nas orações, palavras na
forma de versos e também nos símbolos gráficos dos Odù. Esses
símbolos são “selos” que invocam a força divina. Nesse caso
não podemos dizer que seja axé (aṣẹ́) eu prefiro qualificar
como um outro conceito de energia divina que não vou explorar aqui.
Veja o axé (aṣẹ́) está presente em nós, seres
e objetos, sua fonte e uso é como já foi descrito, mas, existe uma
força adicional que é o poder divino, o poder que tem os orixá
(Òrìṣà) para interferirem no nosso mundo e que vem junto com os
Odù e invocados através das marcas de Ifá.
CONTINUAÇÃO: A magia como parte da religião