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terça-feira, março 24, 2020

Entre dois mundos [ Entendendo a religião do Candomblé e Ifá - Pt. 9]

Entre dois mundos


Ayél’ojà; Ọ̀runn’ilè

O mundo físico é um mercado; o paraíso é nossa casa


Inicio esse assunto com essa citação yorùbá porque ela resume a visão dos yorùbá para a vida. O mundo que vivemos é o mercado, um lugar onde existimos, trabalhamos, divertimos. Imagine toda a complexidade de um mercado e o que pode encontrar e fazer nele. Modernamente podemos dizer que o mundo é um shopping center. O paraíso, tradução que usei aqui para o órun (Ọ̀run), o espaço espiritual, o “céu” é que é nossa casa, estamos aqui apenas de passagem para nos divertir.

É uma frase simples mas estabelece o contexto de que a vida humana no mundo natural é um formato temporário, uma aventura de negócios, na terra e quando o desencorpamento ocorre com a morte, nossa alma retorna para o nosso lar de verdade, o mundo espiritual, o órun (Ọ̀run).






 



Nossa vida é um contínuo fluxo de renascimento entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé. Isso tudo ocorre dentro da nossa linhagem familiar, renascemos através de descendentes e devido a isso precisamos ter família e gerar descendentes.

Para entender a religião de um povo, assim como suas expressões, temos que entender sua sociedade e sua vida. No pensamento yorùbá, a associação do mundo com o mercado deriva do seu entendimento que a terra provê o sustento, com materiais brutos para a vida e a economia. É uma sociedade simples, de fazendeiros, onde os homens são designados para a tarefa de produção e as mulheres dominam o varejo, a venda, o mercado. A mulher é a dona do mercado.


Mesmo na religião hoje, nós do novo mundo, não conseguimos entender algumas divisões da religião, mas, aos homens, cabem as tarefas brutas e vigorosas, cansativas. É por esta razão, somente, que homens tocam tambor e fazem outras coisas pesadas, não é que as mulheres não possam fazer, elas não querem. Não querem carregar aquilo e fazer o esforço de ficar horas tocando, carregar animais e outras atividades laborais. Igualmente os dançarinos Geledé (Gẹ̀lẹ̀dẹ́) também são homens por essa razão, aquilo é pesado, cansativo, as mulheres não querem fazer aquilo, aquilo não é para elas, trata-se de respeito e dignidade, não de machismo.


A metáfora yorùbá do mercado caracteriza-o como um lugar complexo, onde é necessário uma teia de relacionamentos sociais e negociações que requerem do indivíduo desenvolver qualificações especiais para que sua vida seja lucrativa.


A vida então é isso, a complexidade de um mercado, mas, poderão ser várias vidas, todas elas com objetivos diferentes, mas, sempre serão centradas na família.
Esta é uma religião familiar.


Nos versos de Ifá, frequentemente vemos pessoas sendo punidas com a morte, isso as vezes pode chocar as pessoas, mas, quando se compreende que os Yorùbá entendem a vida como temporária e renovável a gente percebe que não tem nada de grave para eles.
A vida é um ciclo, no qual ao indivíduos experimentam a sua vida no Àiyé, partem para o órun (Ọ̀run) e depois renascem.


Em relação aos espíritos e divindades eles ficam transitando entre os 2 mundos, o órun (Ọ̀run) e o Àiyé, mas existem regras e limitações. Entendam da seguinte maneira para nosso espírito vir ao Àiyé precisamos nascer e crescer. Só quando adultos temos plenas condições de dominar as energias do supernatural e a manipulação disso depende de nossa quintessência.


O trânsito entre os 2 mundos não é imediato e simples, depende de muitas situações e a religião tem como um dos objetivos explicar isso. O objetivo dessa religião não é ser uma religião de adoração, para você ficar rezando para morrer. O objetivo é ensinar a você a lidar com o supernatural para poder realizar o que planejou para essa vida.


A vinda para o Àiyé, o nascimento é rodeado de preparativos no órun (Ọ̀run). A jornada no Àiyé deve ser planejada e preparada. Temos obter o suporte para vida que se seguirá, caso queiramos ter sucesso nos objetivos, isso está descrito nos versos de Ifá, os preparativos para nascer. Tem muita gente que não se prepara, apenas vem para cá, nasce, essas são as pessoas que demonstram pouca responsabilidade os turistas nessa vida.


Os 2 reinos são muitos distintos, o mundo natural tem sua complexidade e imprevisibilidade. Vir para cá envolver se materializar nessa dimensão e essa transição é complexa, seria muito simples se pudéssemos apenas “aparecer” aqui, mas, não é assim. Os mundos natural e espiritual tem essências diferentes e é essa distinção que torna o mundo natural tão interessante.


A descrição dos yorùbá para o órun (Ọ̀run) é de um espelho do Àiyé. De fato existe o conceito de duplos, como se fossem 2 dimensões paralelas e que as coisas de um lado fossem refletidas no outro, incluindo nós mesmos. A religião entende que quando nascemos temos um duplo no órun (Ọ̀run), que age como nosso anjo da guarda. Ele não vêm ai Àiyé, o duplo e nós não vivemos juntos, mas de lá ele nos ajuda. O conceito de duplo é muito importante no cosmo yorùbá.


Assim, nosso espírito vem ao Àiyé para habitar um corpo criado para esta dimensão, mas, no órun (Ọ̀run) deixamos o nosso duplo que é nossa ligação com o órun (Ọ̀run) e nos liga com as demais divindades.


Muitos chamam esse duplo de Ori, mas isso é incorreto, o conceito de Orí é um pouco mais amplo e cobre várias coisas. O nosso duplo é o Enikeji, nosso “anjo da guarda”. Faço essa afirmação baseado no que leio nos versos de Ifá, não estou inventando nada. Temos um “anjo guardião” ou “anjo da guarda” que é nosso duplo.


A gênesis Yorùbá não explica o que levou Olódùmarè a criar o Àiyé. Ele criou como um reino distinto que se comunicava mas não era igual ao órun (Ọ̀run). O órun (Ọ̀run) deve ser entendido como um reflexo do Àiyé. O que está nos versos é que as pessoas moram no órun (Ọ̀run), tem suas casas, vivem com seus familiares e até consultam Ifá no Órun (Ọ̀run). Mas é uma vida diferente. Não existe nos versos descrição do mal, mortes e calamidades no órun (Ọ̀run). 


Para complementar essa vida tranquila Olódùmarè criou o Àiyé, um mundo natural, difícil, cheio de prazeres, desafios, realizações e emoções. O que passamos no Àiyé é parte de nossa jornada aqui. Mas o Àiyé é difícil, muito selvagem e para termos sucesso na nossa vida ele estabeleceu os orixá (Òrìṣà) como seus ministros.


A atuação plena no mundo natural é somente possível através do nascimento aqui. Você precisa nascer através de meios naturais, de elementos naturais do Àiyé, para poder ter atuação plena aqui e, mesmo sendo um espírito vindo do Àiyé, não consegue trazer tudo, você não vêm com memórias e conhecimento, essa transição é complexa, na minha visão, dimensões realmente distintas.


Seia fácil se fosse uma coisa simples, como basta estalar os dedos e aparecer aqui. Mas não é assim. Cito, para reforçar a minha opinião, o modelo católico no qual, eles dizem, que deus nasceu aqui na forma de homem para poder orientar a humanidade, hora, se no modelo dele de deus tão poderoso, supremo e criador de tudo, por que deus apenas não apareceu aqui? Vivo e adulto? Por que teve que nascer e crescer de forma natural?
E jesus, porque não vai e volta várias vezes?


Eles justificam isso com uma complexa teologia, muito blablabla para justificar o injustificável, que deus fez isso como uma “opção”. Sério?


Poderia até ser, mas, não combina em nada com a visão deles de deus, essa explicação é mais um arremedo para justificar o injustificável.


Esta referência que faço ao catolicismo é para reforçar esse modelo que estou explicando, no qual, o trânsito entre os dois mundos não é uma coisa simples e, para estar plenamente aqui, você deve ter nascido aqui. Não existe trânsito aberto entre as duas dimensões.
A atuação de espíritos aqui no Àiyé é feita com restrições. Para os orixá (Òrìṣà) estarem presentes no Àiyé, a religião prepara pessoas para ser essa ponte, os elégùn, ou seja, para estar presente no Àiyé e ter contato com as pessoas, é minha opinião que as incorporações são necessárias para que certas coisas possam ocorrer e para isso precisamos em uma casa ter os elégùn e ter eles no momento das liturgias.


Não tenho explicações completas e fundamentadas, mas, minha percepção diz que ações efetivas necessitam do axé (àṣẹ) que está aqui no Àiyé e da quintessência para essa transmissão e isso não se faz sem suporte local e físico. As oferendas são um elemento importante porque são um repositório de axé (àṣẹ) e a liturgia com a presença dos iniciados também.


Dessa forma a completa atuação mágica no Àiyé, com capacidade de fazer coisas exige um corpo físico no Àiyé. A minha experiência mostra que é um mito achar que as divindades ou outros espíritos (como os de umbanda) ficam ai no ar passeando e podem fazer o que quiserem. Não podem, precisam se materializar no Àiyé para ter acesso ao axé (àṣẹ). Assim a incorporação é necessária.


Outro exemplo, são os ebó (Ẹbọ) e liturgias que necessitam de um “operador” uma pessoa que execute. A necessidade disso é devido a ter que ter o corpo físico no Àiyé para poder manipular o axé (àṣẹ) aqui no Àiyé.


As liturgias e processos da religião são baseadas intensamento nessa ligação órun (Ọ̀run) Àiyé. O tempo todo isso é usado, as 2 dimensões energética diferente se fundem através das pessoas e também da música.


Além disso, existe mais entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé. São vários níveis energéticos diferentes que residem tipos de espíritos distintos e a proximidade destes níveis torna mais fácil a atuação no Àiyé. Assim os espíritos que residem em níveis energéticos para próximos de nós pode ter presença a atuação mais independente de médiuns.
No candomblé se diz que existem 9 órun (Ọ̀run) ou nove espaços celestiais sendo o próprio Àiyé um desses, mas, apesar dessa citação, esses espaços não são completamente claros ou documentados.


Babatunde Lawal no seu artigo chamado “ayél’ojà; òrunn’ilé – Imaging and performing yorùbá cosmology”, faz a seguinte citação que vou transcrever:


“.. a tradição oral yorùbá é vaga em relação a topografia da metade superior da cabaça cosmica (órun (Ọ̀run), ìsálòrun), e ainda, existe uma crença popular que existem muitos níveis (em torno de sete) e Olódùmarè ocupa o mais alto deles. Nos níveis mais abaixo estão, os orixá (Òrìṣà), os seres celestiais (ará órun (Ọ̀run)), as almas de crianças não nascidas e mortas (egbé òrun), a alma dos ancestres mortos (okú órun (Ọ̀run)) entre outros.”


As camadas descritas ai vão ao encontro do que eu conhecia através dos versos de Ifá e posso ainda adicionar uma camada Ìrònà, bastante referenciada em Ifá, que seria o limiar entre o Órun (Ọ̀run) e o Àiyé, e é o local das ajé (Àjẹ́).


A localização das ajé (Àjẹ́) no limiar do Àiyé, explica, dentro da minha lógica, a atuação intensa e independente das ajé (Àjẹ́) junto a nós, de forma punitiva e equilibradora. O nível energético delas é mais próximo do nosso.


Também muito próximo do Àiyé está o Ẹgbẹ́ (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run) a floresta mágica de Awaiye onde vivem essas crianças desvinculadas de suas famílias e que transitam ao Àiyé para chamar seus amigos que nasceram gerando o fenômeno dos Àbíkú.
Este local onde residem essas crianças esta citado nos mitos do livro de Alex Cuoco e também em um mito antigo descrito por José Beniste que fala do caçador que ouviu, escondido, as 3 crianças descrevendo que viriam ao mundo para morrerem (Àbíkú) narrando os eventos que as fariam retornar ao órun (Ọ̀run) prematuramente.


Esse mesmo mito é encontrado em versos de Odù Ifá que confirmam esta estrutura de existir um nível do Órun (Ọ̀run) para esses espíritos desgarrados. É interessante ficar atento a isso porque a regra nessa religião é que as pessoas vivem em famílias, assim quando você retorna ao órun (Ọ̀run), você retorna ao seu núcleo familiar. Contudo está claro que eventos podem alterar isso e surgirem essas almas desgarradas que passam a viver no Ẹgbẹ́ (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run).


Algum evento faz com que essas almas não mais retornem às suas famílias. Essa afirmação não é minha ilação, faz parte da religião. São essas almas desgarradas que se tornam Àbíkú, mas que também servem aos orixá (Òrìṣà) enquanto espírito de Eré. Os eré não vem dos níveis superiores do órun (Ọ̀run), vem desse nível inferior próximo ao Àiyé.
Essa afirmação faço devido a cultura oral, você tem que conviver com os eré para entender que eles estão nessa “floresta mágica” convivendo com outros espíritos similares a eles, todos eles mortos prematuramente.


Existem duas cerimônias que são feitas quando uma criança nasce. A primeira é a de ikoṣewaìyé que deve ser feita até o oitavo dia de nascimento e visa determinar o Odù de nascimento da criança. A segunda é a de Imori que visa determinar a origem da criança e estabilizar o espírito da criança no Àiyé, que deve ser feita até o terceiro mês. A primeira cerimônia tem que ser feito muito rápida porque nesse período a alma da pessoal ainda não está totalmente no Àiyé e assim é possível obter a informação do Odù de nascimento. O mesmo para o Imori, a alma deve estar ainda ligada ao órun (Ọ̀run) para termos a informação de nascimento


Nessa segunda cerimônia existem 3 origens que um espírito de nascido pode ter, o primeiro é a família do pai, o segundo a família da mãe e o terceiro é a criança trazida pelo orixá (Òrìṣà). Essas crianças trazidas por orixá (Òrìṣà) são esses espíritos que se prederam de sua linhagem e que são cuidados pelos orixá (Òrìṣà) e desta forma são trazidos novamente para entrar em uma nova linhagem.


Não tenho dúvida que esses espíritos trazidos por orixá (Òrìṣà) vem deste grupo de espíritos que fica nesse conjunto do Ẹgbẹ́ (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run). Ali estão aos espíritos perdidos das linhagens e que em sua manifestação ruim pode ser os Àbíkú.
Osamaro Ibie no seu livro ( IFISM THE COMPLETE WORK OF ORUNMILA, pag. 20), cita que no caminho do órun (Ọ̀run) para o Àiyé, “… tão logo eles passam pela últimas das 7 montanhas antes do limite do órun (Ọ̀run) eles entram em uma zona cinzenta, entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé, chamada de Hades, que é o lar das fadas (como Ibie chama esses espíritos infantis). Deste lugar eles se movem para uma zona escura, o limite entre os dois mundos, onde não existe nascer do sol, é chamado erebus. Muitos viajantes se perdiam nesta zona quando podia-se caminhar entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé. Eles agora se aproximam da escuridão do útero feminino… “


Como pode ser percebido, Ibie também coloca a floresta do Ẹgbẹ́ (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run) na zona cinzenta entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé o que permite aos espíritos que ai estão o trânsito para o Àiyé e a interferência no nascimento das crianças.


Os Ajogun também ficam nesta área cinzenta entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé e desta forma tem capacidade interferência sobre nós.


Quando eu falar sobre Orí vou tocar de novo nesse tema, mas, existe a explicação de que na jornada entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé, para nascermos, somos atacados pelos ajogun e podemos perder parte das coisas que Olódùmarè nos deu para ter sucesso na vida, Isso está documentado no Odù Ogbè Ogunda.


Assim, fechando esta zona intermediária temos nela:


    • ajé (Àjẹ́)
    • Ẹgbẹ́ (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run)
    • Àbíkú
    • ajogun


O útero feminino é a única passagem plena entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé e a mulher é desta forma o portão entre os dois mundos e o receptáculo do axé (àṣẹ) de Olódùmarè. É isso que a faz ser o elégùn preferencial dos orixá (Òrìṣà). Nesta religião todos tem funções, aos homens cabem várias funções importantes e as mulheres também cabem muitas atribuições importantes. Cada um é usado distintamente.


Em termos litúrgicos, a mulher é o elégùn preferencial é aquela que deve incorporar os orixá (Òrìṣà), devido a sua condição de mulher de ser um receptáculo de axé (àṣẹ). Já os homens, tem o poder masculino da ação e assim ficam com atribuições de manipulação do axé (àṣẹ), como fazer ebós e usar o oráculo.


Nesse conjunto de níveis dos órun (Ọ̀run) deve ser mencionado os que são destinados aos espíritos que foram pessoas ruins na vida, que cometeram crimes graves e foram punidos por Olódùmarè. Nessa religião damos conta a Olódùmarè do que fazemos no Àiyé  e existe punição. Esta punição pode ser inclusive de encerrar a vida no Àiyé, Olódùmarè tem os orixás que fazem a sua justiça, como Xangô (Ṣàngó), Ògún e Omolu.


Os espíritos punidos são separados de suas famílias e vão para o nível do órun (Ọ̀run) designado para eles, eles vão nascer na forma de animais, mas, o objetivo não é falar do pós-morte agora.


Resumindo o que disse, existe um trânsito entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé e ele tem complexidades distintas, mas, não deve ser entendido que exista uma “avenida” que permite o trânsito livre entre os 2 mundos, que são separados. É importante entender que dependendo do nível energético que está o espírito, este trânsito poderá ser mais fácil e, desta forma, não se pode entender o órun (Ọ̀run) como se fosse uma coisa única.



PRÓXIMO TEXTO:

- ORUN O MUNDO ESPIRITUAL

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