O leque de Oxum
Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961
Há
vinte anos eu não via a Bahia. Em vinte anos mudara muito. Falsa
ideia de “progresso” mutilara-a lamentavelmente. Aquilo que
nas cidades históricas e artísticas é venerado e defendido com o
sacrifício da vida humana, tinha sido mutilado em muitos de seus
aspectos. Obras de arte desaparecidas, roubadas, barganhadas.
Monumentos preciosos derrubados e esfarinhados. Jardins
desarborizados. Praças descaracterizadas. A paisagem marítima
poluída por “invasões” de gente com problema de moradia. E
a atmosfera colonial, tão rara no Brasil e tão tipicamente baiana,
cedia a uma arquitetura falsamente funcional que o clima repudiava.
Assim também os seus costumes. As coisas mais puras de seu
povo sofriam adulteração em sua nobreza.
E a inviolabilidade dos ritos negros, da religião, da dança,
tinha-se quebrado.
Com
saudosismo e confrangimento eu passeava pela cidade, reconstituindo,
com amargura e carinho ruas e becos, ladeiras e “largos”,
fontes e chafarizes, igrejas, parques e praias, o que existira
com esplendor e o que pobremente restava. Mas sobrara o
Pelourinho e adjacências, as igrejas do Terreiro de Jesus, os fortes
à beira-mar, alguns palácios e solares.
E
resistindo também tenazmente às tentações da improvisação
e da chantagem ficaram quatro ou cinco “casas” de candomblé, de
ritualística fiel, infensas às
interferências exteriores. Uma dessas, era minha “casa”. Pois
ainda rapaz, em minhas andanças nos caminhos musicados pelos
atabaques, nela me fixara, nela me
integrara, nela fôra levantado “ogan”, confirmação que
não se realizara devido a minha volta a São Paulo, à firma de que
meu pai era principal acionista, às obrigações a que eu me
iulgava indissoluvelmente ligado.
*
* *
Debruçado
na balaustrada da Praça Municipal, o olhar estendendo-se sabre os
telhados escuros dos sobrados da cidade baixa, lembrava-me da
Iyalorixá (Ìyálòrìṣà) a quem eu tomei a bênção, que pusera
a mão na minha cabeça e que governava como uma rainha o seu vasto e
poderoso axé (àṣẹ). Ainda
estaria viva? Ainda era dona da barraquinha na Rampa do Mercado
Modêlo? Donde eu estava, avistava o edifício do Mercado, a Rampa, o
portinho coalhado de saveiros coloridos. Quem sabe se Mariana
não continuava ali, modesta e digna, atrás de seu balcão,
lutando como qualquer trabalhador pelo seu sustento, cumprindo
assim os desígnios de seu “orixá”, já que sua pureza e sua
sobranceria não lhe permitiam viver da exploração de seu culto?
Desci
o elevador.
Tapêtes
de rosas, angélicas e gérberas, róseos, brancos e vermelhos
tapêtes de perfumes. Pirâmides de abacaxis, mangas e cajus, de
aromas fortes e doces. Caçuás de laranjas-de-umbigo, de
laranjas-cravo, de limas-da-pérsia. Bancas de poemas populares,
“troupes” de tocadores tocando e cantadores cantando,
mendigos estendendo a mão, marinetes chegando e saindo, a Praça
Cairu torcendo-se de filas querendo condução. As barraquinhas
estendiam-se num primeiro plano de pintura primitiva, os mastros dos
saveiros servindo de fundo contra um céu rutilante- mente azul. E
gente entrando e saindo do Mercado, e, no ar, cheiros e côres,
de gente, de frutas, de flores, de mar.
A
“Tendinha de Oxum” continuava no mesmo ponto, apertada entre
outras barracas, no sábado cheio de sol. As paredes de madeira, o
tôldo de lona amarela, a pintura vermelha e branca, as letras cheias
de bordadinhos. E colares de tôdas as
côres, pulseiras de todos os feitios, figas de tôda sorte, contas
de todos os “santos”, conchas e búzios, estrelas e
cavalos-do-mar, “agogôs” e “exus” de ferro, “adjás”,
paramentos, armas, símbolos e “oxés”
da religião, “obis”. Garrafas
douradas de azeite-de-dendê, frascos de pimenta-de-cheiro, de
pimenta-malagueta, em verde, vermelho, amarelo. Emoldurada de cheiros
e côres e formas, Mariana, cheia de compostura e dignidade. Era a
mesma Mariana que eu deixara há vinte anos, apenas um pouco mais
gorda e gi'i- salha. No rosto, a expressão intacta de autoridade, a
luz enérgica dos olhos, a fôrça inteligente da testa e a bondade
na bôca.
—
Bênção, minha mãe!
Os
olhos, vivos e jovens, a me fixarem penetran-temente, procurando
socorro na memória, o rosto, por fim, iluminado pela surpresa:
—
Entre, meu filho.
—
Não mudou nada, minha mãe!
—
Não sou filha de Oxum, ingrato?
—
Ingrato? Obrigações na terra da gente, dever de ganhar dinheiro, de
trabalhar duro, de não ficar para trás.
—
Deus que lhe dê mais, meu filho.
—
Não sei se quero mais, minha mãe... ou se adiante ter mais. . .
Sentei
no caixão de querosene e ela esqueceu- se da freguesia. Reparei que,
além dos adornos li- túrgicos que ela, como “ialorixá”,
deveria permanentemente trazer consigo, rutilava de colares e
pulseiras. E em vez de vestido simples, cobria-se de roupas vistosas,
bata rendada, torço de sêda, colorida saia de cetim.
—
Alguma “festa”?
—
Não me está vendo a rigor?
—
Lá na “roça”?
—
Se fôsse em “casa” eu estaria aqui, homem? Estava, mas era
recolhida, fazendo as “obrigações”. Hoje sou convidada, vou
para festa dos “eguns”.
Era
uma palavra mágica para mim. Minha imaginação enriqueceu-se, a
memória retornou anos atrás. Acabadas as cerimônias aos “orixás”,
saíamos da “roça”, vínhamos a pé, na estrada barrenta, em
busca do bonde. Vínhamos aos bandos, pouco antes da meia-noite,
“ogans”, “alabês”, “obás”, eu no meio. Recordava-me bem
dos manacás desabrochando nos barrancos, dos graúdos
jasmins-do-cabo es- palhando seu perfume e sua brancura pelas cercas,
dos mansos cães que nos lambiam as pernas, das noites frementes de
estrelas e das conversas que a noite provocava. Conversas de “eguns”
que eu nunca vira, a cujas cerimônias não pudera assistir,
aureoladas de histórias que me causavam arrepios.
—
Será que desta vez?. . .
Não
precisei acabar o pensamento:
—
Claro que sim! Você não foi “suspenso” lá cm casa? Posso
dizer, sem gabolice, que a festa é muito minha. Pedi uma graça a
“Babá-Olukotum”, ele me fêz o favor de atender. Ofereci-lhe uma
roupa e vou lhe pedir a presença. É um “babá” muito
autoritário, orgulhoso e importante. Há trinta anos qne não
“desce”.
—
O que Mariana pede que não se dá?
Ela
sorriu, cheia de segurança, perguntou-me:
—
Já almoçou?
—
Ainda não.
—
Por que não come logo? Daqui a pouco vai chegar meu pessoal. O
saveiro não espera se o vento estiver bom.
*
* *
Barraca
com geladeira e anúncio de coca-cola do mulato chamado Teles, com
sua irmã Candinha a servir uma misturinha côr-de rosa,
enganadoramente inocente, saída duma garrafa encantada, batizada da
de raizes amargas. Leve e cintilante, desceu em togo e sêda, macia,
garganta a baixo. Sombra de tamarindeiro, brisa do mar, manchas de
sol sôbre a mesa, ouro de banana madura em tabuleiros, fachadas
de sobrados na frente, a igreja da Conceição da Praia erguendo-se
nos blocos de mármore, as tôrres competindo com o casario subindo o
morro. E ouro e sol, vermelhos e verdes, em pratos de louça lavada,
no efó e no caruru, na moqueca de ostras e no xin- xim de galinha,
incêndios de pimenta-malagueta, doçuras de refresco de caju.
Voltei
à “Tendinha de Oxum” e à Mariana rodeada da comitiva: seu
filho Didi, servidor de “Os- sãe”, três “alabês”, mais
cinco mulheres a beijar- lhe a mão: a “dagã” e a “ossi-dagã”,
de sua idade, vestidas com o mesmo aparato embora sem igual
quantidade de adornos. As outras eram “iaôs” de sua “casa”,
uma de “Xangô”, outra de “Iansã”, a última de
“Oxumarê”, tôdas vestidas a caráter, as cores de seus
“orixás” preponderando distintamente em seus trajes.
Mariana
ergueu-se, fomos atrás. Um saveirinho em côres vivas, “Ninho do
Oceano”, esperava- nos. Pôs-se em movimento. Passamos o Forte de
São Marcelo, o quebra-mar e, ao largo, eu abarquei a silhueta da
cidade, estendendo-se da ponta do Monte Serrate ao Farol da
Barra. Pouco restava da velha e magnífica construção dos
portuguêses. A verdura desarrumada e luxuriante das encostas
abria- se para edifícios pesados, sem graça. Blocos de
cimento-armado, comuns e vulgares, substituíam os muito pessoais
casarões coloniais ainda há poucos anos em pé. As tôrres das
igrejas antes dominadoras nos cabeços das colinas, quase tôdas
estavam afogadas pelos saltos dos arranha-céus. Apenas
intocada, a linha delicada e fascinante do bairro de Santo
Antônio Além do Carmo.
Escumas
saltando da quilha veloz, o saveirinho deslizava àgilmente sôbre as
ondas. Bôtos negros, de dorsos luzidios, dando cambalhotas na
superfície, bufando. Cardumes de tainhas, de agulhas, caçonetes
e curimãs, vermelhos e guaricemas, águas- vivas como
vitórias-régias, caravelas azuis, lindas como orquídeas.
Martins-pescadores plainando asas sôbre as águas, as asas de
enormes saveiros, bojudas e brancas, passando abertas, vindos do
outro lado da baía, de engenhos perdidos, rios fundos, moendas e
olarias distantes. Lá atrás, esfumada na lonjura, a cidade do
Salvador brilhava ao sol.
O
búzio na bôca do “mestre” ecoou pela praia deserta seu gemido
sonoro, lancinante. Virgem e nívea, a terra povoou-se. Das cabanas
entre os coqueiros saíam homens, mulheres, crianças, aos
bandos, acenando. Era como se eu estivesse chegando a um novo
mundo, antes vislumbrado em sonhos, sugerido em leituras. Coqueirais
altíssimos colhiam e derramavam sombras até a linha dágua.
Acariciados nas sombras, sedentos, fomos servidos em cabaças
enfeitadas de fôlhas, por gente alegre e hospitaleira: enormes
mangabas que se derretiam na bôca feito mel; cajus carnosos a
transbordar suco dulcíssimo; pitangas vermelhas, sumarentas,
frescas; saborosa água de côco verde.
• Mas isto é o paraíso! — exclamei para Didi.
Ele
sorriu e disse:
• É somente a porta.
Com
a vista, procurei o barracão das festas. Didi explicou:
• Ainda vamos andar um bocado. O culto aos “babás”, aos
“eguns”, é diferente do dos “orixás”. As festas aos
“orixás” são francamente públicas. As dos “eguns” são
íntimas, fechadas. Se o barracão fôsse aqui na praia, toda a
gente, moradores e veranistas, se acharia com o direito de
entrar. Por isso o barracão fica no meio da ilha, isolado e
escondido. Só vai lá quem tem “negócio”. . .
• Por que tanto segrêdo?
• Você vai ver. Não perde por esperar.
A
caravana engrossada de várias famílias do povoado pôs-se a
caminho. Em fila indiana, vagarosa e compassada, deixamos o
arruamento, entramos na trilha feita a facão. Vegetação rica
nos ceicava, rebentando de fôrça e beleza. Coqueiros que iam ao
céu, penachos voando nos espaços, cajueiros esparramando-se no
chão, estercando as raízes com os próprios frutos, entontecendo o
ar com a resina, resina misturada ao cheiro da terra, terra que
virava em mangueiras, mangabeiras, araçàzeiros, explodindo
de viço, de frutos graúdos e coloridos. Samambaias
derramavam-se dos galhos, parasitas agarradas nos troncos, pintadas
de flôres exóticas. Lagoas negras, misteriosas, adornadas de
baronesas lilases. Fontes límpidas e claras, brotando água como se
fôsse leite. Cascatinhas cristalinas escorregavam pelas rochas
escuras, desfazendo-se entre as pedras-de- fogo, rutilando ao sol. E
do tope das colinas, panoramas estendiam-se, deslumbramentos de
côr e de luz, verdes e roxos da vegetação, brancos e amarelos
das praias, azuis, verdes e lilases do mar, azul- rei cromado no céu
sem nuvem. Cantos, côres e vida pulavam em redor: rubros
sangues-de-boi, canários de ouro, alvinegras lavadeiras de
Deus, cardeais de barrete purpúreo, bem-te-vis, sanhaços,
azulões, periquitos e beija-flôres.
—
Isto é de fato o paraíso — comentei comigo mesmo.
De
repente, numa volta do caminho, na descida do último morro, a
opulência cessava. Área dura e sêca, terra parda, poeirenta,
vegetação baixa, rala, de espinhos. Raros dendêzeiros lutando por
viver, um ou outro coqueiro entregue à morte, xiquexique humilhado
no chão. Urubus pairavam em vôos baixos, anuns pretos pousados
nos galhos pobres, petrificados. Vapores subiam do solo, o ar
parado, abafado. Comecei a suar, aquela mudança doendo-me como
uma agressão inesperada; e só melhorou com o milagre lá embaixo no
vale, da gigantesca e verdejante gameleira branca: “loko” —
pensei emocionado, fazendo como os outros, levando os dedos, da
terra à testa, num gesto de humildade.
O
barracão estendia-se sob a proteção da árvore sagrada, paredes
levantadas da própria terra, telhas também feitas da terra,
inclinadas em duas águas. Alguém nos vira, com pouco juntava-se
multidão na capoeira a nos esperar. Era a comitiva de um reino
chegando a outro reino. Uma rainha recepcionada por um rei.
Todos ajoelhavam-se à passagem de Mariana, beijavam sua mão que ela
concedia como um favor — “Bênção, minha mãe”, “Bênção,
minha mãe!” — rogos elevavam-se como o côro de uma cantiga, até
a “ialorixá” encontrar-se com o “ojé-agbá”.
* * *
0
barracão era vasto e fechado como um convento, de enorme salão
sem janela, centro do edifício ligado com o exterior por uma única
porta. Dossel de sêda azul, enfeitado de veludos e cetins, cobrindo
vários tronos ajaezados. À frente do dossel, rente à parede, um
banco comprido onde descansavam os atabaques, os agogôs, uma cabaça.
Contra a parede oposta, uma cadeira de braço, com o nome de
Mariana. Um largo espaço vazio, cimentado, à disposição
dos “babás” — se surgissem. O resto, para os fundos, era dos
crentes e assistentes: o lado esquerdo, bancos simples de
madeira, sem encosto, para os homens; o lado direito, esteiras para
as mulheres e crianças. E lá para dentro da construção, um
labirinto de saletas e camarinhas, onde se hospedavam as
famílias que chegavam. Já os preparativos da festa se ultimavam.
Grupos faziam a derradeira refeição. Gamelas de barro eram
servidas, moqueca de peixe com forófia de dendê, e abará,
acarajé, acaçá. Quartinhas de “aluá” quebravam os ardores da
pimenta. Por fim, o cafèzinho quente, temperado com rapadura.
O
sol se escondia, luxuosos lençóis de côres estiravam-se no
céu, foguetões subiam aos espaços. Os “babás” iam ser
chamados, os “eguns” poderiam derramar-se pela terra, a selva
vibraria de sons e vi- sagens, ninguém se atrevesse a cruzar os seus
caminhos. Toques de atabaques exigiam que todos entrassem.
A noite fechava-se sôbre a ilha. A escuridão cobria o
barracão. As estrêlas projetavam-se com nitidez. Entrei também.
Fifós
acesos espalhavam bruxuleante claridade, projetando sombras pelo
chão, pelos cantos, pelo teto. Os atabaques tornaram a bater, desta
vez com mais fôrça e ritmo. O “padê” iniciava-se. Mulheres
vestidas de branco, só branco, puseram-se a dançar em redor da
vela acesa, movimento de pernas, braços, mãos, ancas e cabeça
variando de acôrdo com o ritmo dos atabaques. Mulheres, mais de
cinqüenta, de torço, de bata, saia rodada, a pele negra ou
mulata destacando-se das roupas alvas. Velhas, adultas,
adolescentes, gordas, magras, altas, baixas, dançavam com
harmoniosa exatidão, graça e elegância. “Oh! Exu, mensageiro
entre os homens e os deuses, prote- gei-nos com sua interferência,
recomendai-nos aos
“eguns”;
que êles desçam em paz, tolerantes e sábios; impedi as
desavenças entre vossos servidores, propiciai alegria a todos e em
particular a esta festa feita com fé, amor, obediência.”
Terminado
o “padê”, os atabaques calaram-se. As mulheres sentaram-se. Os
alabês descansaram. Depois de pequeno intervalo começou uma
ladainha vibrante, puxada pelo “eiedun”, respondida pelo coral
dos homens e das mulheres. Era em dialeto africano, melodia em
“kêto”, de variações e tonalidades musicais
embevecedoras. Os atabaques soavam fracamente, em segundo plano.
Quando a ladainha se finou, ardente silêncio se fêz, a expectativa
reinou, era uma coisa física e palpável, tão respeitosa e
intocada que se ouvia lá fora o leve farfalhar da game- leira,
o serrar dos grilos, o coaxo de sapos perdidos no brejo. No interior
do barracão, entretanto, só o queimar das torcidas dos bibianos
arranhava a quietude ansiosa. Eu olhava as duzentas pessoas
acumuladas no salão, sem conforto nem trégua, vivendo
religiosamente, perigosamente, aquêle momento grave. E todos os
olhares se fixavam na única porta para o exterior, a respiração de
quatrocentos pulmões represada, os músculos e nervos esticados,
retesos, à espera, à espera.
Rumores
esquisitos fizeram todos ainda mais tensos. Sôbre a leve agitação
das fôlhas, dos sapos e dos grilos, ecoaram exclamações humanas,
grunhidos inumanos, corridas súbitas, chicotadas, lamentos,
gemidos. O “eiedun” ergueu-se e entoou vigoroso canto. Foi como o
estouro de uma reprêsa. Atabaques rugiram e duzentas vozes
retiniram, respondendo em côro. No atordoamento das vozes e dos
toques reboantes, oito homens em grupo, oito titãs pularam
de uma só vez para dentro da sala, batendo no chão varas longas e
flexíveis:
• Bogbô mariwô delewô — bramia o “ojé lesé egum”.
• Rei! rei! rei! — respondiam os oito homens, tonitruantes.
• Etielerió! Etielerió! Etielerió! Ero!. . . Ero!... —
cantavam as filhas mais velhas da seita.
• Iyá! Iyá! Iyá! Oôô!... — respondiam as demais.
Ainda
bem não me refizera da surpresa com a entrada brusca dos “ojés”,
outra maior assaltou-me: entre êles havia um que era branco de
cabelos louros, branco de olhos azuis.
Julgava-me
preparado para tudo naquela noite, para tôdas as manifestações
fantásticas de fé, de fanatismo até o paroxismo. Jamais
esperara encontrar num povoado de negros, entre os sacerdotes dum
legítimo culto negro, um homem branco e louro, um estrangeiro
europeu como “ojé” de “babá”, dançando, cantando,
falando “kêto”.
À
luz dos bibianos êle me parecia como um deus. E tinha a estampa de
um deus, o rosto duma nobreza serena, os traços duma perfeição
excepcional, o corpo belo e vigoroso, as espáduas largas,
cinlura (' quadris estreitos, braços possantes, músculos u ílor da
pele fremindo e revelando-se a qualquer movimento.
Com
a mesma subitaneidade que haviam surgido, cinco “ojés”, o
branco inclusive, desapareceram porta afora. Ficaram três a
guarnecer o salão. Um prolongado grito chegou aos meus ouvidos. O
“eiedun” fêz um gesto. O mesmo silêncio de antes, opressivo e
elétrico, reinou. Os “ojés” deixaram livre o caminho da porta e
esperaram. Apertavam convulsivamente as varas que traziam. Suave
farfalhar de sêdas aproximavam-se. Alguma coisa estava prestes
a acontecer — pensava eu, sabiam todos, olhos arregalados,
respiração suspensa, coração acelerado. E aconteceu. Uma figura
estranhíssima — se é lícito chamar “aquilo” de figura —
vinha chegando, mansamente, confiadamente. Passou pela porta sem se
abaixar. E dentro da sala eu vi assombrado que sua altura ia até as
vigas que sustentavam o telhado!
De
humano só se via os pés, calçados com sapatos exóticos. E exótica
roupagem cobria-o, mistura caótica de veludos, sêdas, cetins,
bordados, espelhos, vidrilhos, contas, numa profusão indescritível
de côres, de formas e reflexos. No silêncio de cemitério,
circulou pelo espaço vazio deixado pelos “ojés”. Não
parecia andar. Flutuava. Os atabaques voltaram a bramir: e o “babá”
pôs-se a dançar com impressionante vigor e soberba
masculinidade. Dançou muito. Sua energia parecia inesgotável.
Finalmente parou. Os atabaques, obedientes, pararam. Mansamente
como entrara o “babá” flutuou até o dossel,
sentou-se
num trono e dali pôs-se a articular sons, para mim ininteligíveis,
que o “eiedun” ou a “ialorixá” iam decifrando para
todos ou, se era o caso, para cada pessoa em particular.
* * *
Depois
dêste vieram mais sete “babás”. Até o “Babá-Olukotum”
dignou-se a comparecer. Era o rei de todos e a todos suplantava em
luxo e extravagância de roupas, na viril sobriedade de danças
e extrema doçura ao falar. Há trinta anos não descia na Bahia. E
estrondosas ovações o acolheram, foguetes estouraram no
espaço, os atabaques, os agogôs, vibraram com furiosa alegria,
todos se rojaram aos seus pés, tocando a testa no chão, suplicando
sua bondade, sua magnanimidade, sua bênção:
—
Aché Babá!
Tôda
a noite, tôda a madrugada, em conjunto ou isoladamente, os “babás”
permaneceram em nossa companhia, dançando, conversando,
resolvendo casos, dando conselhos judiciosos, reclamando coisas
erradas, no meio de comovente adoração. Eu sentia, emocionado, a
atmosfera de fé absoluta, mas sem angústia, sem sofrimento, uma fé
plena de euforia. E sem pestanejar, sem cochilar, sentando,
ajoelhando-se, ficando de pé, passamos doze horas seguidas, a
atenção prêsa ao cerimonial. E só quando o sol nasceu, quando sua
claridade penetrou pelas frestas do telhado, o último “babá” se
foi.
Os
“ojés” também se retiraram. “Rum”, “rumpi”, “lé”,
emudeceram. O “eiedun” da “casa” recolheu-se. Mariana
também. Erguemo-nos. Saí com os outros para a luz do dia,
espreguiçando os ossos que estalavam. Os caminhos molhados de
sereno ofereciam-se, puros e inocentes. Fui caminhando à
toa, esticando os músculos cansados. Adiante achei uma fontinha
gelada, mergulhei a cabeça, lavei o rosto. Galos cantavam muito
distantes, um ou outro pássaro piava. Deitei-me no chão, a cabeça
apoiada nas mãos, o olhar no céu que se tingia de rosas e amarelos.
Meus pensamentos perdiam-se no tempo e no espaço em confusas
reflexões sôbre os mistérios além de nós mesmos, nos desígnios
das forças imponderáveis.
* * *
Voltei
repousado ao barracão. Na saleta reservada a Mariana, a
“ialorixá” tinha pôsto a mesa. Cuscuz de tapioca, pamonha de
puba, beijus, banana cozida. Agradeci-lhe seus favores, a viagem, a
ilha, a festa, aquele gordo café.
—
Bondade sua! — ela respondeu, esquivando- se aos elogios, com
modéstia sincera. Agora você precisa dormir. Deve estar cansado. Já
providenciei sua dormida.
Olhei
em redor à cata duma esteira, rêde ou cama. Mariana surpreendeu meu
olhar, tranqüilizou-me:
• Você vai dormir na beira da praia. Na casa de Undset.
• Undset? — e lembrei-me do “ojé” louro.
• Êle tem um coqueiral lá embaixo.
• Quem é êste homem?
• Um estrangeiro. Um sueco. Mora na ilha há muitos anos.
• Que coisa estranha!. . .
Ela
sorriu:
• Que é estranho? Êle nada tem de estranho. É um homem como
outro qualquer, como qualquer dêsses negros ou mulatos.
• Não, não é isso que quero dizer.. . — balbuciei
temendo tê-la ofendido.
• Sei o que você quer dizer: achou estranho um homem louro, um
branco legítimo, um europeu fazer parte de nossa religião, religião
de africano, de negro.
Fiquei
ainda mais constrangido pela observação. Era exata. Procurei
desculpar minha besteira. Mariana, porém, não se ofendera:
• Não se preocupe, meu filho. Eu também em seu lugar acharia
isto muito estranho. E coisas realmente estranhas contribuíram
para Undset ser um dos nossos.
A
conversa tomava rumo apaixonante. Mas não pude alimentá-la. Undset
chegava. Mariana apresentou-nos. À luz do dia, nas
circunstâncias normais, vestido como eu, falando português, já
não me parecia tão excepcional nem tão exótico. Mas pude reparar
que êle não demonstrava o mínimo cansaço.
Como
se seus nervos fôssem de aço. Conversaram os dois sôbre fatos da
noite passada. Comia com apetite. Levantou-se, chamou-me. Saímos
do barracão e retornamos à praia. Duma colina enveredamos por um
atalho. Esbarramos numa cêrca viva de hibiscos. Undset afastou
a folhagem, me deu passagem. Penetramos em seu coqueiral.
Acordei
ao meio-dia. Fôra um sono como há mais de dez anos não
experimentara: profundo, pesado, reparador. Levantei-me, saí do
quarto, dei na varanda. Numa rêde, Undset estendia-se. Tentou
levantar-se. Não o permiti.
• Que prefere agora? — perguntou-me. — Almoço ou banho?
O
mar estendia-se pouco abaixo do coqueiral, muito manso, muito azul. O
sol a pino levantava incêndios na água clara.
• Um banho antes, seria ideal.
• De mar, fonte ou cascata?
Era
muito luxo para um paulista acostumado só a chuveiro:
• Primeiro, de mar. Depois tiraremos a sorte.
Ele
já estava de calção. Vesti o meu. Fomos
para
a praia. A areia fôfa, morna e fina acolheu- nos. Ficamos
voluptuosamente derreados, gozando na carne a calidez do sol. Caímos
nágua. Undset nadava como um peixe. Depois de algumas braçadas,
parei ofegante, fiquei a apreciá-lo; fazia circunvoluções,
mergulhava, deslizava na superfície, identificado com o mar.
• Esta vida é engraçada — falei quando êle se deixou também
ficar boiando, submerso até o pescoço: minha profissão é
corretagem de imóveis. Compro terrenos baldios, trabalho-os,
lotei-os, encho-os de casas, edifícios, gente. Nunca, porém,
cometeria o crime de meter um trator nesta ilha, de transformar
êste paraíso num inferno humano.
Undset
sorriu alegremente:
• Também penso assim. Quando aqui cheguei meu entusiasmo
foi igual ao seu.
• A diferença — objetei — é que você o descobriu
antes de mim. Confesso-lhe que, pela primeira vez, sinto inveja de
outro homem. Gostaria de morar aqui, de viver esta vida. Em vez
disso continuo a vegetar num apartamento rodeado de apartamentos
por todos os lados.
• É preciso coragem para abdicar do conforto, do progresso.
Sempre fui contra o progresso que nos afaste da natureza. Para mim,
de certo modo, foi fácil a escolha. Aqui mesmo quero morrer, e,
embora nunca pense nisso com tristeza, já escolhi onde vou ser
sepultado.
Subitamente
mudou de conversa:
• Estou com uma fome danada. Vamos comer?
* * *
Construção
simples, paredes de tijolos sôbre alvenaria de pedra bruta.
Telhado em duas águas, beirais salientes, sombreando a varanda larga
que
rodeava
a casa. Uma sala, três quartos, biblioteca, banheiro, copa, cozinha,
tudo bem grande, bem amplo, cheio de luz, varrido de vento. Janelas
abertas, rêdes estendidas, cortinas de cordas, de fieiras de
contas, mobília essencial, peças de vinhático e jacarandá,
sem rigor de estilo. Arcas e santuários, imagens católicas de sabor
primitivo, um Gauguin e outro Van Gogh autênticos. No resto das
paredes, emblemas de candomblé.
Tomamos
duas cachacinhas puras, saímos em busca da fonte de água doce.
Andamos sob coqueiros. Galinhas ciscavam livres, saqués gemiam
aos bandos, uma esquadrilha de pombos ficou a esvoaçar em tôrno
da cabeça de Undset. Tínhamos andado uns duzentos metros
quando estaquei, agradàvelmente surpreendido. O quadro ante
meus olhos era maravilhoso. Primeiro destacava-se, florido e viçoso,
o pé de acácia. Estava carregado de flôres e opulentos cachos
dourados chegavam ao chão. No chão, de areia alva, abria-se o poço.
Era muito fundo mas transparente. Refletia todo o ouro das flôres
que se debruçavam em seu espelho. Formava um círculo irregular e
alimentava-se do âmago da terra e de uma fonte de água límpida
que, gôta a gôta, escorria pela folhagem densa e selvagem de
parasitas. Os pingos caíam mansamente sem perturbar sua serenidade.
Roseiras de pontudos espinhos, de rosas rubras explodindo de
beleza, rodeavam a fonte. Uma pedra negra, lisa, luzidia, emergia
perto da margem. E sôbre a pedra, faiscando ao sol, um leque
amarelo, de ouro maciço.
• É aqui o banho doce? — inquiri, antegozando aquela
pureza, aquele frescor.
• Não — disse Undset. — Há dois anos ninguém toma
banho nesta fonte.
• Algum tabu?
Êle
não respondeu diretamente à minha pergunta:
• É a fonte de Oxum — disse simples, sêca- mente.
* * *
“Batidas”
de cachaça com limão, catuaba, pitanga. Salada de lagosta
viva, arroz-de-auçá, vatapá, moqueca de siri-mole, frigideira
de camarão fresco, ein louça de Limoges, com talheres brasonados.
Água de côco verde no próprio côco, um velho vinho branco em
cristal Fratelli Vita. E mangas de Itaparica, abius, sapotis,
melancias. Cumbucas de araçá, doce de caju. Sôbre a toalha
imaculada, o jarro popular onde brotavam flôres silvestres. A
negrinha nova, bonita e risonha servia-nos com perfeição.
Depois,
a varanda de brisa gostosa, o cafèzinho, a cachacinha final. O
abraço da rêde, o fumo puro do “Suerdieck”, os olhos
perdendo-se no azul profundo do céu tão próximo. O sangue
mornando, a memória perdendo-se, as pálpebras quebrando-se,
músculos evanescendo-se. E a rêde elevando-se por artes de mágica,
negrinhas esbeltas de sorriso branco, mãos de carícias
levando-me à fonte. Embaixo da chuva de acácias, dançavam negras
delgadas, miravam-se na água, engrinaldavam-se de rosas, cantavam
cantigas maviosas e doces. E do fundo do poço, tão longínqua,
diáfana, subia Oxum que o arco-íris coroava. E as negrinhas
cantavam, davam- se as mãos; em redor de Oxum, tôdas giravam.
Sentada na pedra, Oxum se abanava, do fundo da fonte música evolava.
Dos céus, entretanto, roncou o trovão. Oxum e as negras pararam,
escutaram. Nuvens fecharam-se, raios rolaram. As negrinhas viraram
rosas, de Oxum restou seu leque.
Eu
estirava a mão para tocá-lo quando acordei, amparado por Undset:
—
Você estava caindo da rêde. Cheguei a tempo de impedi-lo.
—-
E também de impedir de roubar seu leque — observei.
Contei-lhe
o sonho.
—
Alguém já lhe falou da história da fonte e do leque? —
perguntou-me.
—
Não. Ninguém precisaria falar dêles para me impressionar. Sonharei
com o que vi, a fonte, o poço e o leque, pelo resto da vida. Mas
adoraria saber a causa real da presença do leque, um leque de ouro
maciço naquela pedra sem que ninguém lente roubá-lo.
—
A história real? Até quando podemos saber que as coisas são
“reais”? Quanto à sua origem, ao seu aparecimento, não só
intriga a você como a mim, como a todos os nativos da ilha
ERA
uma emprêsa gráfica, especializava-se em livros de arte. Êle, o
irmão e o pai, dirigindo os operários, controlando máquinas,
debruçados ansiosamente na impressora, aguardando as estampas,
comparando-as, examinando-as, consumindo-se. “A Pintura Egípcia”,
“A Pintura Etrusca”, “A Pintura Bizantina”, “História da
Pintura Italiana”, “Os Criadores da Renascença”, “História
da Pintura Moderna”, “Leonardo da Vinci”, “Rembrandt”,
“Picasso”. Eram edições de luxo, belas e requintadas. Os
melhores críticos da Europa prefaciavam-nas. As reproduções
aproximavam-se quase milagrosamente dos originais. O negócio corria
próspero. Veio, porém, a Segunda Guerra. A Suécia permaneceu
neutra. Mas a emprêsa perdeu mercado, o consumo interno não
compensava os gastos, a falência aproximou-se. O jovem Undset era
antinazista por convicção, embarcou para a Inglaterra. Estêve em
Dunquerque e participou do dia D. Sentiu a guerra na carne, na alma,
no pensamento. Foi ferido, hospitalizado, morre-não-morre, escapou.
A guerra, o hospital, expulsaram-no da Europa. Achava que não
poderia viver mais na Europa, na Suécia, fazendo ginástica no
ginásio, curvando-se sôbre a impressora, mandando nos operários,
economizando dinheiro, medindo salários, obrigando horários, tempo
para trabalho, para almoço, para raciocinar, para amar.
O
mundo chamava-o. Depois do armistício atirou-se pelo mundo. Entregou
ao irmão sua parte da indústria que de novo tomava fôlego. Viajou
como piloto dum navio cargueiro. Foi assim que aportou na Bahia.
Os
dez dias que o navio demorou-se no cais, fizeram-no decidir-se. A
cidade do Salvador penetrou- lhe até a medula. O navio se foi,
Undset ficou. A cidade tinha um sortilégio que o enfeitiçou.
Encantado, descobria a cidade, engolfava-se em seu mistério. Era uma
vida ociosa, deliciosa, boêmia. Noites nos cabarés, envolvido com
mulheres, brigando com marinheiros, comendo sarapatéis nas Sete
Portas. Noites vagabundando pelos labirintos do Pelourinho, com
outras mulheres, subindo escadas gementes, bebendo e amando,
purificando-se na primeira missa da igreja de São Francisco. Dias
perambulando pela cidade, pelos seus becos e ladeiras, por suas
praias, por suas ruínas, pelos seus trapiches. Dinheiro acabou, êle
se arranjou nas Docas, na carga e descarga dos navios, comendo nas
barracas do Mercado Modelo, dormindo nos molhes das pontes ou no
quarto duma amiga reconhecida.
A
carta veio sem êle esperar. Era do irmão que o chamava à Suécia.
Conseguira equilibrar a firma. Undset negou-se. O irmão insistiu: se
não queria continuar sócio, tinha direito a retirar sua parte.
E
com um cheque que era uma fortuna, vinham os papéis do distrato. A
primeira coisa que Undset fêz foi tão grande farra que ficou nos
anais do Tabaris. A segunda, comprou um saveiro, pequeno, leve, ágil,
veloz, de vela pena e fácil manejo. Então a baía de Todos os
Santos passou a ser sua. Deixava seu destino ao sabor dos ventos. Os
ventos, um dia, levaram- no a “Barro Vermelho”. O preço pedido
pela pequena fazenda, êle o pagou sem regatear. Comprou também um
grande saveiro de carga. Reformou a casa ao seu gôsto.
—
E aqui sentei praça, como o povo costuma dizer. Como você vê, uma
história banal, sem drama nem mistério. A história de um homem
simples que por acaso realizou o seu mais caro sonho da juventude,
identificando-se com a beleza da natureza, o amor com as mulheres e a
paz entre os homens.
Undset
calou-se, balançava-se na rêde, o charuto prêso aos dentes. Eu lhe
havia pedido para contar como chegara até a Bahia. E ouvi-o com
inusitado interêsse, procurando recompor, apesar de seu laconismo e
modéstia, como realmente teria sido a sua vida, perigosa e
aventurosa, que êle dizia banal, sem drama ou mistério. A tarde
quebrava-se, e, do mar, a brisa soprava mais forte. A maré baixava,
a praia tornava-se mais larga, mais alva, como um lençol bem lavado,
estirado a secar. Ao longe, as outras ilhas da baía recortavam-se no
firmamento. Diversos foguetes espoucaram. A cozinheira, mãe da jovem
que nos servira, aproximou-se:
—
Nós já vamos, seu Undset.
Êle
respondeu:
—
Diga ao pessoal que subirei já.
A
mulher saiu. Undset jogou fora a baga do charuto:
—
Vamos subir? A festa recomeçará daqui a uma hora.
Eu
não sabia da repetição da festa:
—
Por quantas noites se prolongará?
—
Desta vez, cinco. Apenas.
—
“Apenas”?
—
Está surpreendido?
—
Desde que cheguei não paro de surpreender-me.
—
Às vêzes, a festa se estende por quinze noites.
—
Quinze noites? Seguidas? Dançando, cantando, tocando,
emocionando-se, sem dormir, sem poder sequer cochilar?
—
É a regra.
—
Que energia possui esta gente!
—
E considere que todos têm obrigações diárias: são saveiristas,
simples marinheiros, pescadores, trabalhadores noutras fazendas,
quitandeiros. . . E as mulheres têm de lavar, cozinhar, cuidar das
crianças. . .
Undset
começou a fechar portas e janelas.
—
Por que tanto cuidado? — indaguei. — Ladrões?
—
Não há ladrões aqui — respondeu. — São as tempestades. Caem
às vêzes sem que as esperemos e estragam tudo.
* * *
Saímos
de casa, tomamos o caminho do barracão. Pedi-lhe para passarmos pela
fonte de Oxum. O perfume das rosas maduras, com a suavidade do
crepúsculo, enchia o ar. Pétalas de acácia haviam tombado sôbre a
água espelhante e a enfeitara de ouro. O poço tão limpo pela
manhã, tão transparente, ganharia impenetráveis tons de veludo
azul. Sôbre a pedra que luzia, continuava ali, desafiando minha
imaginação, enchendo minha cabeça de fantasia, símbolo de
mistério e de amor, o leque gracioso da deusa das fontes.
* * *
Depois
que comprara o coqueiral, dera duro no trabalho. Estava quase em
abandono, tinha muito o que fazer. Empregara dois homens. Com êles,
consertara cêrcas, limpara o terreno do mato daninho, curara
coqueiros doentes. Aprendeu a subir pelos longos caules com o auxílio
dum cinturão de corda; e êle próprio, facão na mão, podava
folhas, derrubava côcos. No correr das cêrcas plantara os hibiscos,
cujas flores finas, róseas ou vermelhas, subiam a colina. Organizara
a horta. E, no pomar, revivescera tudo, acrescentara outros enxertos.
Mesmo depois de reorganizar a fazendinha, sempre estava à frente do
serviço. Amava o trabalho violento e através do trabalho afastava a
moleza espiritual e a degenerescência física.
Também
êle próprio ia vender o côco recolhido. Enchia o saveiro grande,
tomava o leme e, com os dois empregados cuidando das velas e do
cordame, embicava para Água de Meninos ou o Mercado Modelo. Logo
achava comprador. Com o dinheiro no bôlso tomava uns goles na
barraca do Teles, comia as moquecas de Arlinda ou Maria de São
Pedro, dava um giro pelas ladeiras, pelas igrejas da cidade, visitava
livrarias, gastava o resto do tempo visitando mulheres.
Ao
retornar à “sua” ilha, imergia no trabalho, em leituras
noturnas, esportes. Nadava e mergulhava como um peixe. Caçava quando
tinha notícia de alguma capivara destruindo plantações, de alguma
paca entocada no mato. Mas preferia a pesca, não só pela emoção,
como também pela maior intimidade do mar e pelo pretexto de
vagabundar em seu saveirinho pelas ilhas vizinhas. E explorava os
rios, grandes ou pequenos, que desembocavam na baía de Todos os
Santos.
* * *
Passamos
sua cêrca. Começamos a subir o morro. Undset ia falando, sem
grandiloqüência, naturalmente, enquanto andava. Às vêzes
interrompia- se, parava, receando incomodar-me, como se sua vida não
me interessasse. Mas eu continuava a provocá-lo.
—
Outro fato que vai surpreendê-lo — disse- me, pousando a mão
sôbre meu ombro, — apesar de tôda a identificação com a terra,
não admitia intimidades com o povo daqui. Entenda-me: não era
preconceito racial ou social. Era uma maneira de defender meu
isolamento. Dava-me bem com todos. Mas superficialmente. Nas coisas
neutras, impessoais, eu os servia como êles poderiam me servir.
Vivíamos, aliás como até hoje, no maior respeito mútuo. Mas houve
um choque. Provocado por sua religião.
—
Não diga! — exclamei.
—
Eu já tinha ouvido, ocasionalmente, da bôca de alguns dêles,
quando viajávamos juntos, de casos dos “eguns”. Achava pitoresca
e mesmo linda, sua adoração pelos “babás”. De certo modo
divertia-me com a fertilidade de suas imaginações e com o
primitivismo de suas crenças. Não pensei contudo que viesse
sentir-me incomodado por elas. Aconteceu a primeira festa. Os
preparativos não deixaram de despertar minha curiosidade. Saveiros
chegavam cheios de gente. Caravanas desciam na praia, de roupas
vistosas, subiam a colina. À noite, os atabaques entraram em ação.
Dez noites seguidas, do crepúsculo à aurora, os atabaques rugiam
com pequenos intervalos. Você pode imaginar o meu desespêro? A
direção do vento, com o desaparecimento do sol, muda completamente.
E o vento trazia o toque bárbaro, trazia-o até minha casa, até
dentro de meu quarto, soltava-o em meus ouvidos, com furor, sem
piedade. Compreendi então por que o dono do coqueiral vendera-no tão
rapidamente. O paraíso que eu julgara ter encontrado não passava
dum inferno. Estava quebrado o encanto de seu intocado silêncio.
Remoendo minha decepção, atormentado pelo fracasso, saí no
saveirinho em busca doutro lugar. Mas em nenhuma dessas ilhas
encontrei as qualidades da minha. Resolvi aceitar a situação.
Consolou-me o fato de ser curto o período de festa. Com o correr do
tempo a elas me acostumei como me habituara com as tempestades.
* * *
Havíamos
chegado, Undset e eu, a uma cascata vaporosa. A água muito fina
escorregava num leito de seixos brilhantes e despencava aos nossos
pés como uma cauda de noiva, umedecendo-nos a roupa e o rosto.
Undset estendeu a mão como se fôsse uma concha: bebeu. Sentamo-nos
sôbre um tôco de coqueiro caído. Fiz-lhe uma observação um tanto
indiscreta:
—
Você fala apaixonadamente de mulheres. No entanto, não vi mulheres
em sua casa a não ser aquela negrinha. . .
—
Nunca faltaram em minha casa — respondeu êle sem se perturbar.
Havia mulheres até demais. De dois anos para cá há uma lembrança
muito forte, muito viva a impedir que outras se sucedam. Quanto à
negrinha que tanto o sensibilizou é apenas uma copeira. Não mais do
que isso.
Amava
as mulheres como a tôdas as coisas belas e deliciosas da vida. Mas
detestava compromissos
de
ordem sentimental. Além disso as mulheres eram ameaças à sua
tranqüilidade. Como só as queria para o enlêvo dos sentidos, não
lhe foi difícil resolver o problema.
—
Em suas idas à Capital?
—
Isso foi apenas no começo.
—
Com as nativas?
—
Como você viu, como a que trabalha em casa, há por aqui mulheres,
negras ou mulatas, realmente apetecíveis. Mas sempre evitei-as. Esta
gente tem um incômodo conceito moral sôbre o assunto. Um passo em
falso redundaria em desagradáveis exigências de casamento, de
amigamento. De qualquer modo, compromissos pelo resto da vida. ..
Quando
ia à Capital, depois de noitadas com música, dança e champanha,
êle fazia-lhes a proposta. Geralmente elas acediam, não só pelo
ganho que o sueco oferecia como pela aventura em vista e pela beleza
viril de Undset. Se alguma chegou a amá-lo de verdade, êle não
procurou nem se interessou em sabê-lo. Não queria amor em seu
sentido mais profundo e afetivo, mas a satisfação física, o gôzo
do sexo, dos olhos, da bôca, das mãos. Jamais enganou alguma. Na
ocasião de realizar a proposta era como se o fizesse a uma artista
para o que êle considerava uma arte. Na ilha, tratava-as com o
máximo de cortesia. Proporcionava-lhes atrações esportivas,
passeios pitorescos. Às vêzes a separação levava lágrimas aos
olhos delas. Undset, porém, contornava a constrangedora situação
com excessos de delicadeza e sempre as conservava como amigas. Quando
não eram as profissionais do Tabaris, naquele tempo cheio de
mulheres bonitas, eram artistas que por êle se desgarravam das
companhias de revista, eram bailarinas de algum “show” em
evidência ou, no verão, algumas senhoras chiques que vinham para as
águas de Itaparica.
Podia
ser cínica e egoísta tal atitude. Mas não deixava de ser sábia,
infensa ao perigo dos compromissos legais.
Foi
uma dessas mulheres que o conduziu, sem o prever, ao destino que êle
jamais supusera.
* * *
Undset,
dentro do saveiro, distante da praia, jogava madeira e ferro velho
para enriquecer seu pesqueiro. Ela esquiava no mar tranqüilo puxada
a cem quilômetros por uma lancha de corrida; fingiu acidente. Undset
socorreu-a e levou-a, com a companheira que guiava a lancha, até sua
casa. Ela lhe confessou o propósito do acidente e a excitante
curiosidade que êle despertava nas veranistas de Itaparica. Os três
almoçaram juntos, juntos passaram a tarde e tôda uma noite agitada,
imaginativa e ardente. Na manhã seguinte, a companheira se foi,
Lúcia ficou. Ficou o resto da semana e o resto dos três meses de
veraneio, à exceção dos sábados, domingos e feriados, quando o
marido largava as diretorias comerciais e vinha desintoxicar-se em
Itaparica. Perto de findar o veraneio, Lícia surpreendera movimento
anormal no povoado. Saveiros embandeirados despejando gente vinda de
várias direções que se encaminhava a pé para o interior da ilha.
Negros e mulatos com roupas de cerimônia, cantando e tocando.
Homens, mulheres e crianças expandindo-se de alegria e felicidade.
Cheia de curiosidade, Lícia perguntou-lhes a origem daquilo. Apesar
de baiana, nunca tinha ido a um candomblé. Insistiu para Undset
levá-la.
* * *
Não
conhecia as regras do ritual: só depois das nove horas pôs-se a
caminho. Passou a cêrca da fazenda. Não chovia; mas nuvens pesadas
cobriam as estréias. A atmosfera estava quente e para os lados do
mar, no horizonte manchado pela massa das outras ilhas, clarões de
relâmpagos iluminavam o céu. Há muito que os atabaques soavam.
Seus toques se tornavam cada vez mais nítidos à medida que Undset e
Lícia aproximavam-se. A escuridão tornava a caminhada difícil. E
muitas vêzes êle teve de carregar a amiga. O calor e o exercício
inundavam seu corpo de suor. O barracão estava bem próximo. O
rugido dos atabaques entrava em seus ouvidos. Se de longe, refugiado
no quarto, êle se sentia atormentado, agora, tão perto, no escuro,
com tanto calor, o barulho começou a causar-lhe mal- estar. O
barracão surgiu aos seus olhos. Fiapos de claridade saíam das
telhas. Respirou quase aliviado. Ia descendo um degrau quando, no
meio da trilha,
surgiu
uma “coisa”. Não só êle enxergara. As unhas de I ácia
enterram-se em seu braço:
—
Undset, veja!
Não
era ser humano nem a êle se parecia. Não era tampouco bicho, nada
que tivesse visto até então. Lembrou-se das histórias que ouvira
no barco, nas travessias sem vento. Lícia aconchegava-se ao seu
corpo como se nêle quisesse penetrar, proteger-se. Abraçou-a. Ficou
expectante, parado onde estava, sem mêdo consciente mas também sem
coragem de iniciativa. A “coisa” também não se mexia. Não
fôssem grunhidos roucos, palavras ininteligíveis, que dali saíam,
Undset juraria ser alguma nuvem tocando o chão. Ocorreu-lhe que
poderia ser também algum guardião, uma sentinela a barrar a
passagem aos intrusos. Falou-lhe em português. Nenhuma resposta.
Disse algumas palavras de “kêto”, que aprendera. Não distinguiu
senão os mesmos grunhidos. Lícia pediu-lhe para avançar. O mêdo
dava-lhe uma excitação anormal. Undset segurou-a pela mão e
precedeu-a. Deu apenas dois passos. A “coisa” em sua frente
mexera-se e crescia, ficou redonda, uma bola enorme. O suor frio deu
banho em Undset. A mão da amiga crispara-se a dêle. O sueco
procurava convencer-se de que ainda não tinha mêdo. A “coisa”
parara. Mas continuava a rolar sôbre si mesma, girando em seu
próprio eixo.
—
Voltemos, Undset.
Lícia
tremia, estava vencida. Undset quis voltar. Ao virar o corpo,
estremeceu também. Outra forma fantástica cortava-lhes a volta. Era
comprida e chata, lâmina de vidro fôsco, tão alta quanto um
coqueiro. Aí, Undset teve a convicção do mêdo. Mêdo que não o
envergonhava, que se assemelhava ao pasmo diante do desconhecido, do
imponderável. Lícia se enroscava em seu corpo querendo nêle
esconder- se. Undset procurou guardar o pouco de serenidade que lhe
restava. A todo pulmão gritou o nome de um de seus empregados que
sabia “ojé” da seita. Receou que o barulho dos atabaques tivesse
afogado seu chamado. Ouviu, porém, chicotadas no chão, viu os
“eguns” afastarem-se, lenta, renitentemente, para dentro do mato.
Um homem de torso nu, vara na mão, surgiu das trevas.
* * *
Levantamos
do tronco do coqueiro caído e lentamente penetramos num bosque de
cajueiros. O forte odor de resina me invadia as narinas. Cajus gordos
e maduros, vermelhos e amarelos, ofereciam-se nos galhos. Passarinhos
e ondas de insetos os assaltavam com gula.
—
Foi a visão dêsses “eguns” que o converteu? — perguntei.
—
Não, mas me fêz levar a sério aquilo que até então considerava
pilhéria. O “ojé” que nos socorreu introduziu-nos no barracão.
Daí por diante, as sensações que Lícia e eu experimentamos foram
de encantamento. Aquilo era completamente novo
para
mim e para ela — nós, que nos julgávamos conhecedores de tôdas
as emoções humanas.
* * *
Voltaram
no dia seguinte. Desta vez chegaram antes do crepúsculo. Entraram
aos primeiros chamados dos atabaques. Ocuparam os lugares que lhes
foram designados, Undset no banco, em meio dos homens, Lícia sentada
numa esteira, entre as mulheres. O “padê” começou. As mulheres,
à exceção de Lícia, ergueram-se, puseram-se a dançar,
homenageando Exu. Os atabaques tocavam em surdina, as mulheres
cantavam baixinho. Seus pés descalços arranhavam o chão,
completavam a música. Undset prestou atenção e conseguiu
distinguir os toques. Sentiu prazer nisso. E, interpretados pelos
movimentos das mulheres a dançar, os atabaques já não lhe pareciam
monótonos nem desesperadores. Poucos bibianos acesos, pouca
claridade no salão. Mas dava para Undset compreender os detalhes.
Bandeirolas de papel de sêda enfeitando o teto, o dossel com os
tronos paramentados, a atenção das crianças, o respeito absoluto
de todos, a plasticidade dos “alabês”, a atitude de comando do
“eiedun”, o círculo móvel das mulheres que dançavam. Uma a
uma, elas emergiam da escuridão e Undset ficou a reparar nas
características, nas feições, no jeito de cada. Olhava seus
rostos, olhava seus corpos, olhava seus pés, as roupas e enfeites.
De repente, Undset parou. A luz do fifó focalizara uma mulher
lindíssima. Era negra, alta, esplêndida. Era uma beleza inesperada.
Submergiu na escuridão. Undset deixou escapar o ar que prendera nos
pulmões. Esperou ansiosamente que ela desse a volta, aparecesse de
novo sob o foco da luz. Quando isto se deu, sentiu-se tomado de
alegria e angústia. Havia majestade congênita na mulher. Dançava
com leveza e graça, garbo e dignidade. Os olhos de Undset nela se
grudaram, buscavam-na na escuridão, extasiavam-se quando o foco de
luz clareava-a. Vestia-se de branco como as outras, saia rodada,
engomada, bata rendada. Mesmo assim, escondida num mundo de anáguas,
êle adivinhava a perfeição de seu corpo, graças à esbeltez de
suas espáduas, à cintura que se afinava, aos tornozelos elegantes.
E rosto oval, duma nobreza de expressão que denunciava ascendência
de sangue real. E traços firmes, de integridade absoluta,
integridade que não era só física, manava da alma. A bôca, a mais
bela bôca que Undset já vira, tinha indefinível, atraente ar de
superioridade e desdém. Só se lembrava de ter tido emoção
semelhante aos dezoito anos. Seu sangue fluía, refluía à flor da
pele, inchava em suas veias. Perturbou-se, desviou a vista, encontrou
a de Lícia. Leve expressão de malícia brilhava nos olhos e no
sorriso da amiga. Lícia percebera o que se passava com Undset. Mas
não podia entendê-lo.
* * *
Tentou
por todos os meios reagir aos sentimentos que o invadiram. Ao nascer
do sol foi para a praia dos protestos de Lícia, não voltou às
lestas subseqüentes. Não precisou dizer-lhe a causa. Iícia
conhecia seus princípios de independência e paz e a ameaça que
agora pairava sôbre êles. Ela própria lhe confessara, ao sair da
festa:
—
Nunca vi mulher tão impressionantemente
bela!
Sabia
também que seu romance com Undset acabara. E quando a amiga da
lancha veio trazer- lhe uma carta do marido, aproveitou a ocasião
para ir-se. Undset ficou sozinho. E com êle, a aflição, a
angústia. Empenhou-se em trabalhos exaustivos. Nada adiantou. A
negra não lhe saía da cabeça. Frêmitos dum desejo dificilmente
contido fustigavam-no sem piedade. À noite, os toques de atabaque
chegavam num convite permanente. Seu sofrimento piorava.
* * *
—
Você há de pensar que pouco me custaria aproximar-me dela. Pelo
menos poderia ter tentado. Pensei nisso também. As mulheres não
tinham segredos para mim. Aquela, porém, me intimidava. Havia
qualquer coisa nela de distante e soberano, de frio e superior, que
tolhia meu ímpeto. Conversei com minha cozinheira. Descobri o que
lhe dava tanta dignidade. Não era uma simples “iaô”. Ao
contrário, era importante “ialorixá” e sua “casa” tinha
grande prestígio entre as demais. Estava ligada, portanto, a deveres
sagrados, além de qualquer sentimento estritamente pessoal.
* * *
As
festas acabaram-se. As comitivas desceram. Quando a de Matilde chegou
à praia, Undset adiantou-se, falou-lhe:
—
Será que nos encontraremos de novo?
Reparava
que à luz do dia, banhada de sol, era
ainda
mais linda. Os detalhes de seu rosto eram perfeitos. Um sorriso muito
leve entreabriu-lhe os lábios:
—
Quem sabe?
Foi
rápido o olhar que fixou em Undset. Foi um olhar, porém, que lhe
penetrou no fundo do ser. A mão que lhe estendeu não era macia nem
fria. Como faziam os outros homens com as outras mulheres, Undset
carregou-a, entrou nágua, colocou-a na pôpa do saveiro. Ela se foi
sem se voltar, erecta, muito séria, rodeada por sua côrte, o sol
nascente iluminando-a como a uma deusa.
* * *
O
seu pequeno mundo de paz, beleza e tranqüilidade, até então
preservado com tenacidade, ruiu. Tudo em redor apequenava-se, perdia
o valor, como se estivesse incompleto. As mulheres com quem tentou
enganar-se pareciam-lhe vulgares, tolas, sem gôsto. Procurava em
tôdas aquela dignidade congênita e não a encontrava. Sonhava com
Matilde dançando, tôda de branco, leve e elegante, consciente de
seu pôsto e, por isso mesmo, fora, muito fora de seu alcance. O
contato da mão áspera c quente, a profundidade de seu olhar negro,
tinham-no marcado indelèvelmente. E lhe doía. Numa madrugada
desamarrou o saveiro de vela pena e singrou para o Mercado. Tomou um
carro que o levou ao fim de Brotas. Depois de várias paradas e
informações, chegou ao seu destino. Empurrou a porteira duma roça,
mergulhou numa floresta de jaqueiras, cajàzeiras, mangueiras. Uma
estradinha limpa levou-o a uma clareira. Passou por “loke”,
rodeado de velas acesas, tigelas com comida e azeite, quartinhas
contendo água. Um carneiro tinha sido imolado. Sua cabeça jazia
entre duas raí-zes salientes, seu sangue misturando-se, ensopando a
terra. Pequenas cabanas de sopapo, pintadas de várias côres,
rodeavam o barracão fechado. Tudo estava silencioso e deserto, menos
uma casinha amarela atrás do barracão. Sentada no batente da porta,
uma menina chupava roletes de cana. À aproximação de Undset,
ergueu-se e entrou. Reapareceu com uma velha gorda que vestia saia
vermelha, blusa branca, colares e pulseiras vermelhas e brancas. Não
pareceu surpreender-se à sua chegada. Não perguntou quem era nem o
que desejava. Não deu boas-vindas, não estendeu a mão. Os olhos
não o encaravam. Quando Undset perguntou por Matilde, a velha disse
apenas que entrasse. Ofereceu-lhe uma cadeira e foi seu único gesto
de delicadeza. Undset
sentou-se,
esperou. A menina voltou ao batente e aos roletes. A velha sentara-se
diante dêle, calada, uma expressão de inequívoca tristeza, de
grande pesar, a tingir-lhe o rosto. Undset começou a sentir-se
constrangido. Outras mulheres, velhas ou maduras, entravam ou saíam
de vários quartos, passavam silenciosas, fitavam Undset com
hostilidade, desapareciam. O sueco sentia-se agressivamente
indesejado. Já se enchia de impaciência quando Matilde apareceu.
Perfume de folhas silvestres exalava de seu corpo. Calçava sandálias
brancas, vestia ampla saia de cetim amarelo. Sôbre os ombros,
deixando entrever a nudez dos seios soltos, uma bata de rendas finas.
Vários colares, assim como pulseiras, onde preponderavam amarelo e
âmbar, rodeavam seu pescoço e os punhos. Duas escravas de ouro
pendiam de suas orelhas. Os cabelos, penteados rentes à cabeça,
formavam meticuloso coque na nuca.
Undset
levantou-se, mudo, mirando-a apaixonadamente. Ela permaneceu no
umbral da porta, também muda, os olhos no chão, as mãos no regaço.
—
Não pude deixar de vir — disse êle por fim, como se estivesse
desculpando-se dum crime.
—
Já o esperava — sussurrou ela, quase para si mesma.
* * *
Já
o esperava — e tempos depois êle veio a saber por que. Soube
também a causa de seu olhar medroso na praia quando a carregara para
o saveiro.
Soube
u significação da tristeza e da animosidade das mulheres de sua
“casa”. “Filha de Oxum”, Matilda
no recesso de seu “peji”, jogava os “obis”.
—
Alafia! — exclamava quando a sorte lhe era benéfica.
Mas
seu rosto ensombreceu. Via uma Oxum muito feliz, rodeada de sua
côrte, servida por suas escravas, morando num palácio sem igual.
Suas irmãs visitavam-na, suas filhas adoravam-na, suas servas
idolatravam-na. E os “orixás” abençoavam seu reino, ela
inteiramente entregue ao sacerdócio. De repente um furacão a
preveni-la, Iansã tentando salvá-la, Xangô enfurecido, jogando
raios em seu “aché”, ela sem escutar os “avisos”. Um
estrangeiro louro, tão diferente dos seus “ogans” afastando
furacão, aparando os raios no peito, levando-a pelos caminhos do
amor.
Esperava-o,
seu destino estava, de nascença, ligado ao dêle. “Ifá” jamais
a enganara. Sabia também que a vida lhe seria curta se o seguisse.
Que “Xangô” expulsá-la-ia da vida se se fôsse com êle. Mas
sabia também — e isso quem lhe dizia era seu próprio coração —
que fôrça nenhuma, humana ou sobrenatural, a impediria de segui-lo.
Não
partiu logo, porém. Os sagrados deveres de zeladora de sua “casa”,
de “mãe” espiritual de muitas “filhas”, de instrutora de
muitas noviças, de guardiã dos segredos e mistérios de seu rito,
fizeram-na vacilar e lutar, sofrer e macerar-se. Procurou resistir.
Mas Undset passara a viver em Salvador. E em todos os crepúsculos
vinha cortejar sua deusa.
Trazia-lhe
flôres e doces, peixe e incenso, sêdas e cetins, jóias e perfumes,
frutas e búzios, cumulando-a de gentilezas, galanteios e palavras de
amor. Esta constância serviu-lhe também de iniciação no candomblé
de “orixás”. Assistia a tôdas as festas, “Xangô” e
“Omolu”, “Oxosse” e “Oxalá”, “Iansã”, “Ogum”,
“Iemanjá”, “Oxum”. Penetrava na essência dos espetáculos,
compreendia pouco a pouco a linguagem dos instrumentos musicais, dos
cânticos, das danças. Aprendia os valores das homenagens e o poder
de cada “orixá”. Ouvia as suas lendas. Percebia o requinte
espiritual daquela côrte aparentemente pagã e bárbara, e teve a
convicção de que estava bebendo uma civilização consistente,
caracterizada e forte.
Matilde
lhe ensinava o dialeto africano, toques, cantigas e histórias.
Sentia-se num mundo extraordinariamente agitado e colorido, cheio de
preceitos, fundamentos e quizilas. Por isso compreendia o combate
travado no espírito da amada. Juntos, os dois tudo fizeram para
acalmar os caprichos e os ciúmes de Xangô. Undset ofereceu-se para
casar com Matilde sem tirá-la de seu “aché”. Ela viveria metade
do ano em “Barro Vermelho” e em Brotas todo o tempo do seu ciclo
de “obrigações” e “festas”. Mas de nada adiantaram
penitências, preces, sacrifícios, “despachos” e “boris”.
Xangô não recebera Exu, ignorara as imolações de galos, bodes e
carneiros, tapara os ouvidos a todos os rogos. Queria sua Oxum
inteira sem repartir com estrangeiros. Queria sua Oxum só para si.
Queria sua renúncia absoluta.
Vencida,
Matilde entregou o mando a sua “dagã”. E quase às escondidas,
como se tivesse corrida pelos “orixás” do terreiro, saiu da
roça, refugiou-se no carro que Undset trouxera.
* * *
Barco
amarelo, vermelho, côr de Oxum, côr de Xangô. Bandeiras de papel,
amarradas em cordão, do mastro à pôpa, estiradas em festa. Peles
de carneiro, colchão de pétalas, brancas-de-neve, leito de amor.
Noite de lua, quarto crescente, chuva de lua caindo ao mar. O céu
prateado, inundado de estréias, no fundo das águas.
Peixes-voadores, brilhando no espaço, tombando no mar, levantando
incêndios. “Caravelas”, “arraias”, fosforescências nas
ondas, Iemanjá guardando sua irmã trânsfuga da ira dos irmãos.
Lanternas vermelhas, velas enfunadas, saveiros cruzando. Barco
amarelo, vermelho, balouçando nas ondas, ao sabor das correntes. A
deusa nua, pétalas esmagadas, luar prateando sua pele negra. Noite
aspirando gemidos de dor, o vento levando suspiros de gôzo, Iemanjá
recebendo, de Oxum jubilosa, vermelho sôbre branco, imaculada rosa.
* * *
Amou-a
como a verdadeira espôsa. Não só na lua de mel. Todo o tempo com
ela vivido, serviu-a, dignificou-a, no que era apaixonadamente
retribuído. Não tinha a fragilidade das mulheres comuns. Nem sua
fácil coqueteria. Às sensações novas, vibrava com um prazer
telúrico. Undset comparava-a a uma árvore sôlta na natureza,
esplêndida e sadia, imune aos ventos e às tempestades. Tornou-se
sua companheira ideal, tanto em casa, quando era dócil e meiga, como
nas aventuras, nas caçadas, nas pescarias, quando demonstrava
coragem, sangue-frio, energia. Nadava e mergulhava tão bem quanto
êle. E se era dona dos mistérios dos céus, participava igualmente
da beleza do mar. Entretanto, se na selva ou no mar, integrava-se
perfeitamente, sofria de timidez e inibição perto das fontes, dos
lagos, dos regatos e das cascatas. Se uma caça procurasse refúgio
perto dum dêsses lugares, Matilde desistiria de persegui-la. Para
banho doce só utilizava o banheiro da casa, nunca as fontes e
cascatas que abundavam em redor. E virava a cara se passava perto
duma lagoa, evitava caminhos que passassem por cima dos rios.
*
* *
Um
ano correu assim, num alumbramento de amor, Undset dedicando-se
inteiramente a Matilde, ela também absolutamente dêle. Até que
houve a primeira festa dos “babás” depois da união dos dois. À
chegada do pessoal da Bahia, da comitiva de sua ex-“casa”,
Matilde escondeu-se. Não apareceu à visita que lhe quiseram fazer,
não recebeu sua substituta. Metida numa toca, chorava. Quando ia
anoitecendo, voltou para casa. Undset nada lhe disse. Estavam à mesa
quando o primeiro atabaque soou. Ela parou o garfo no ar, desceu
lentamente a mão que o segurava, deixou-o ao lado do prato.
Observando-a disfarçadamente, Undset reparou no aperto de seus
maxilares, na tensão dos músculos de seu pescoço. Acabou de tomar
o cafèzinho como se nada houvesse, levantou-se, chamou-a para um
passeio. Ela afastou-se em sentido contrário ao vento, levou Undset
para longe, até onde não pudessem ouvir os toques chamando os
“eguns”. Deitaram-se ao abrigo duma canoa virada e ela se lhe
entregou com selvagem lascívia. Voltaram quando o sol se erguia.
* * *
Na
noite seguinte e nas outras treze noites, os atabaques não pararam.
Undset conseguiu distraí- la alguns dias. Nos outros, foi
impossível. Seu olhar tornou-se quase desesperado. Undset chamava-a,
ela não o ouvia. Entrava no quarto, deitava-se e ficava de olhos
abertos, escutando. Undset deitava-se também, deixava-a com sua dor,
com sua luta. Mantinha-se entretanto alerta. Quando os toques dos
atabaques recrudesciam, êle sentia, no escuro, as vibrações
repercutirem no corpo de sua mulher. Ela só vinha a adormecer,
exausta, quando o sol invadia o quarto.
* * *
Com
o ciclo das festas acabou-se a tranqüilidade dos dois. Matilde
perdia o controle sôbre si mesma.
Nas
noites mais angustiantes ela erguia-se da cama e precipitava-se para
fora. Punha-se a correr cegamente pelo coqueiral, batendo-se nos
troncos, escorregando nas raízes, tropeçando nas pedras. Alcançava
a praia, continuava a correr até tombar de cansaço, aos soluços.
Undset, que trotava silenciosamente em seu encalço, chegava,
levantava-se nos braços, trazia-a para casa se a aurora estava
prestes a raiar ou metia-a no saveiro, rumando para fora de alcance
dos atabaques se a noite ainda demorasse. Com febre alta, em delírio,
ela soltava palavras em português e em “kêto”, que Undset ia
juntando e compreendendo, cheio de apreensão, palavras que falavam
num Xangô furioso exigindo, pura e íntegra, sua Oxum de volta.
Quando
as festas terminavam, Matilde serenava, tornava-se de novo
inteiramente de Undset. Êle procurava então convencê-la de que sua
dúvida não passava de auto-sugestão, levando-a a falar,
acreditando que isto contribuísse para afastá-la de seu passado
mítico. Matilde não se esquivava. Reconhecia que a presença de seu
pessoal trazia à tona tudo aquilo que ela quisera sufocar, que
preterira pelo que ela julgava mais forte. Sabia agora ser inútil
matar o que estava ainda vivo em seu sangue e em seu espírito; que
continuaria até sua morte. Mas os atabaques agitavam seus
pensamentos, conseguiam vencer seu raciocínio, trazendo para dentro
da casa, na intimidade do quarto, a dançar em sua volta, suas irmãs
de santo, suas “filhas” e seus “ogans”. Mais do que luta
mental, era também um envolvimento físico, a criticá-la, a
censurá-la, a amaldiçoá-la. Suportava quando podia, estòicamente
a flagelação. Sentia-se no dever de enfrentá-la. Enquanto não
surgia Oxum, podia combater com forças iguais. O seu pessoal era de
carne e de sangue, ela lhe respondia com argumentos de amor. Mas
quando sua Oxum “montava-a”, quando ela era a própria Oxum
materializada, aparecia Xangô a chamá-la, resplandecente e
implacável.
—
Os “obis” não mentem, Undset. “Ifá” não engana. Estou
marcada, não me deixe só, não me abandone.
* * *
Avistamos
o barracão. O sol morria do outro lado e botava sangue pela boca.
Céu e nuvens empastavam-se de vermelho e púrpura. Cigarras
azucrinavam o ar. Mosquitos noturnos zuniam em nossos ouvidos. Os
primeiros toques de atabaque soaram indecisos, espaçados, como o
afinamento duma orquestra. Paramos sob a gameleira branca, gozando o
último cigarro daquela noite.
—
Três anos passaram-se — continuou Undset. — Uma noite, depois do
jantar, demos longo passeio pela praia. Uma paz intocada reinava na
ilha. As ondas, muito leves, desfaziam-se sem ruído aos nossos pés.
Era uma dessas noites sem nuvens, sem lua, em que as estrêlas
brilham sozinhas, destacam-se com todo o fulgor. Um silêncio quase
absoluto nos rodeava. Do outro lado da baía, a cidade do Salvador
estendia-se nítida e bela, banhada de luzes. Matilde ficou a olhá-la
como se seu olhar pudesse ser uma ponte:
—
Hoje é o dia do “Petê de Oxum”. Como estará a festa, em
Brotas?
Voltamos
e nos recolhemos. A brisa refrescava o quarto. A maré enchia e sua
música nos embalava. Adormeci, mergulhando num sono profundo, sem
sonho nem susto. Nada havia para temer. Matilde já adormecera em
meus braços e nenhum ruído estranho perturbava a ilha. Dormi muitas
horas. Acordei com estalos de trovões dentro do quarto. Relâmpagos
acendiam-se contra a parede. E a chuva copiosa encharcava a cama. O
vento acicatava o mar e os penachos dos coqueiros. O barulho do mar e
da folhagem abatia-se com fragor sôbre a casa. Levantei-me dum
salto, atirei-me às janelas. Ao voltar para o leito, dei por falta
de Matilde. Julguei que tinha acordado e, como eu, estivesse fechando
as outras dependências. Chamei-a. Não veio resposta. Procurei-a
pela casa tôda. Não a encontrei. Estranhei sua ausência: naqueles
dias não havia festa dos “eguns”. Contudo corri para a praia. A
chuva abundante encharcava-me até os ossos, penetrava-me nos olhos,
mas os relâmpagos facilitaram a busca. Matilde não estava na praia.
Um raio coriscou no espaço e precipitou-se no pomar. Suas predições
acudiram-me à cabeça. Um violento arrepio, que não era nem de
febre, nem de frio, correu-me no corpo. Saí pelos fundos, corri em
direção à fonte mais próxima. À fonte de Oxum. Um relâmpago
fosforejou e enxerguei-a. Vagava entre os coqueiros como se estivesse
sendo arrastada.
—
Matilde! — gritei o mais alto que pude.
Meu
grito foi esmagado por outro raio que fuzilou um coqueiro. O caule
gigantesco tombou ardendo em minha frente, barrando meu caminho, como
se tivesse caído para impedir meu caminho.
—
Matilde! Matilde! — eu gritava sem cessar.
Os
trovões retumbavam como eu jamais ouvira.
A
chuva era uma só cascata. Meus pés chapinhavam na areia
escorregadia, afundavam como se mãos dentro da terra os puxassem.
Mesmo assim consegui chegar à fonte. Na pedra, elevava-se uma
claridade estranha, fosforescente, a lembrar a forma de uma mulher,
uma mulher que chamava. Aquele clarão me ofuscou e me fêz parar.
Pregado ao chão, percebi Matilde entrar no poço, sua imagem
confundir-se, fundir-se na outra. E então a luz dourada se esvaiu, a
fonte tornou-se escura como antes, os relâmpagos apagaram-se, os
trovões calaram-se, a chuva amainou e o silêncio ficou no ar. Meu
corpo, que parecia amarrado a correntes pesadas, obedeceu então ao
meu mando. Arrastei-me, entrei nágua, mergulhei repetidas vêzes no
escuro sem que minhas mãos tocassem em ser humano. Manhã cedo é
que vi, frio e dourado sôbre a pedra, o leque de Oxum.
Undset
calou-se, jogou a baga de cigarro no chão, apagou-a com a ponta do
pé. Os atabaques começaram a tocar, chamando para o salão os que
ainda estavam no sereno. Foguetes subiram, espoucaram no espaço,
anunciando que os “babás” seriam de novo chamados. A selva ia
sacudir-se de sons e assombrações, os “eguns” poderiam descer à
terra. Mas não me atemorizariam. Senti profundamente que estava no
“caminho” dêles e seu “encanto” também me penetrara para
sempre.