Cerimonias
Sociais – O Casamento
Conforme
já tratei em outros textos, a sociedade que vivemos impõe a
existência de cerimônias que unem o laico e o religioso fazendo o
religioso ter que se adaptar a sociedade laica. No nosso caso, somos
uma sociedade de base predominantemente católica, isso está em
nossa origem e formação como povo e nação e introduzir novas
religiões nesta sociedade significa desenvolver uma tradição
religiosa adaptada a nossa sociedade.
Quando
uma religião surge ela traz dentro de sí mais do que apenas dogmas
religiosos, ela também traz em sua configuração a cultura social
que a gerou. Introduzir uma nova religião em uma sociedade implica
em um choque cultural ou social que tem que ser administrado para o
sucesso da prática religiosa. Não se pode esperar que as pessoas de
uma sociedade tenham que se comportar como de outra totalmente
diferente para que possa praticar ou adotar a nova religião. Isso é
grotesco e agressivo.
A
origem do termo “tradição religiosa” esta nesta adaptação.
Uma tradição religiosa é o resultado da adaptação da religião
original à nova sociedade. O Candomblé é uma tradição religiosa,
ele tem origem na religião Yorùbá mas se adaptou à nossa
sociedade ou ainda está se adaptando.
Um
dos pontos dessa adaptação é relativo às cerimônias sociais.
Elas existem na sociedade e são necessárias serem representadas na
religião. Uma delas, que já comentei, é o batismo. Outra que
comentarei agora é o casamento.
Conforme
já citei em texto anterior, não existe dentro da religião Yorùbá
a cerimônia de Casamento. Não existe dogma ou fundamento religioso
que estabeleça e união unívoca entre homem e mulher para o resto
da vida, de fato não existe o conceito desta união dentro da
religião, nem permanente nem temporária. O casamento existe na
sociedade Yorùbá mas é uma cerimônia da sociedade e não da
religião.
Na
nossa sociedade o casamento veio através da vertente religiosa e
dessa maneira é uma cerimônia que inicia no contexto religioso e
depois se estende a vivência social, missa e comemoração. O
Candomblé, como uma tradição religiosa brasileira não pode se
omitir de integrar uma cerimônia de casamento, por mais que isso não
faça parte da religião. A sociedade assim o requer.
Contudo,
não se pode buscar em uma religião a mesma cerimônia ou formato de
outra porque cerimônias e liturgias estão baseadas em dogmas e
fundamentos da religião e determinados ritos podem não ter sentido.
O
que tem ocorrido no Candomblé em seus ditos “casamentos” são
cerimônias sem pé nem cabeça, que sincretizam coisas de várias
religiões, as pessoas usam a estrutura da religião católica e
adicionam coisas de outras cerimônias que viram um Frankstein. Nada
do que é feito aqui no Brasil como casamento religioso no Candomblé
é autêntico.
A
primeira visão que devem ter é essa informação que eu trago, de
que não existe na religião Yorùbá uma cerimônia de casamento,
não existe o dogma de união indissolúvel entre homem e mulher. A
base da religião não tem isso. A religião yorùbá reflete a
sociedade yoruba, nunca podemos esquecer isso.
A
religião é voltada para o indivíduo e sua vida e integrada
totalmente no seu papel na sociedade como membro útil. Além disso a
religião é coletiva, é impossível de ser praticada sozinho e
desta forma existe este paradoxo, tudo na religião é feito para
atender ao indivíduo mas ele não consegue fazer nada sem a
sociedade.
A
constituição da família é importante assim como ter filhos. A
religião é baseada em renascimento das pessoas em viver várias
vidas e dessa maneira esse é um dos dogmas, a pessoa deve constituir
uma família e ter filhos para que o renascimento possa ocorrer.
Se
existe um dogma na religião, sobre a questão da união entre as
pessoas esse é relativo ao casal gerar filhos.
Dessa
forma, na visão da religião Yorùbá não existe casamento. Isto é
uma união civil. Contudo não é um evento menos importante por ser
apenas um evento civil, pelo contrário, é carregado de
significados, passos e responsabilidades!
O
Candomblé tem vários buracos litúrgicos, seja porque não foram
trazidos, porque foram perdidos ou porque nunca existiram. A história
mostra isso, o que conhecemos hoje está muito longe do que foi no
passado, o nível de informação e aperfeiçoamento da própria
prática do Candomblé melhorou muito com o tempo e à medida que uma
parte maior, mais informada, mais educada e mais ética entra para o
Candomblé, mais modificações ocorrerão.
Não
pensem que isto seja diferente para pessoas de Ifá. Aliás muito
menos ainda. Brasileiros crias de nigerianos não sabem nada e os
nigerianos vivem em uma sociedade dominada por religiões cristãs,
possivelmente pelo Islã.
Como
entender as pessoas que fazem casamento em Candomblé, como eu já vi
em vídeos?
Entenda
como quiser. Eu já disse que não tem. O que essas pessoas fazem é,
primeiro não entender da sua religião, não entender de teologia da
sua própria religião, ai eles copiam uma liturgia de outra religião
e transformam em uma coisa deles inventando ritos e simbolismo.
Está
cheio de gente mal-informada e despreparada se dizendo sacerdote de
religião. A pessoa aprende a fazer ebó e dedica a sua vida a
atender clientes. Ela se autodeclara tendo um título e um
conhecimento que não tem. Essas pessoas que atendem clientes não
necessariamente são sacerdotes e conhecem sua religião.
Mas
o que fazer então?
Claro
que temos que nos adaptar, a sociedade incorporou ritos religioso
como ritos sociais e temos que responder a isso, mas não se faz isso
dessa forma boba como se está fazendo, copiando o que outras
religiões fazem.
É
necessário algum esforço para se buscar uma forma de harmonizar o
que a religião pode oferecer com o que a sociedade demanda. Em
termos de casamento, temos que entender que existe um rito social
laico bastante importante e que marca e união das pessoas. Podemos
adicionar a este contexto algumas ideias e inserir uma participação
religiosa no contexto.
Dentro
do princípio que temos que criar uma cerimônia de casamento podemos
até entender que pessoas que copiam a cerimônia católica não
estão totalmente erradas, afinal a sociedade esta acostumada àquele
formato.
Entendam,
eu iniciei criticando essas cerimônias inventadas que são feitas,
mas, digo que, na ausência de uma cerimônia formal e na necessidade
da sociedade de ter uma cerimônia, as pessoas devem estabelecer uma
cerimônia que faça sentido para a nossa sociedade, nossa história
e povo.
O
que eu procurei saber é como é a cerimônia tradicional Yorùbá e
descrever aqui já com simplificações para que pessoal possam se
espelhar em outro modelo. O Casamento tradicional Yorùbá segue um
conjunto de ritos bem complexos, entendo que existem partes que não
nos interessam.
A
grande diferença entre a cerimônia deles e a nossa é a deles é um
evento social e não religioso. Apesar de que muita gente hoje se
casa com festa em uma cerimônia social, a combinação de rico rito
religioso mais festa tem caído em desuso.
No
caso Yorùbá a cerimônia deles tem com foco a família e não o
indivíduo. Esta é a principal diferença. Na nossa o foco são as 2
pessoas que se unem, na deles é a formação de uma nova família
estendida com a noiva se integrando à família do noivo.
Na
sociedade Yorùbá a noiva deixa sua família e vai morar com o
noivo, com a família do noivo, as vezes no que chamam de “compound”
um conjunto de casas junto. Se isso se mantêm até hoje não sei,
mas, a ritualística da cerimônia é familiar.
O
Casamento tradicional Yorùbá
Existe
alguns rituais sociais que antecedem ao casamento, mas, que não vou
explicar aqui.
O
dia da cerimônia de casamento Yorùbá é muito especial para o
noivo e a noiva. A cerimônia Yorùbá é oficiada por 2 pessoas ao
mesmo tempo, uma de cada família e elas serão os porta-vozes de
cada família e são muito importantes para o tom e andamento da
cerimônia. Eles precisam conhecer a cultura Yorùbá bem como serem
divertidos, articulados e preferencialmente poéticos uma vez que a
sociedade valoriza o bom uso da língua deles.
Essas
pessoas serão chamados de Alaga Iduro no caso da família do noivo e
de Alaga Ijoko no caso da família da noiva, eles são os porta-vozes
das duas famílias.
Os
yorùbá tomam os cumprimentos muito a sério. Cumprimentos são
feitos com sorrisos, alegria e respeito de forma que a pessoa que
estiver sendo saudada sentirá que o cumprimento é sincero. Os
homens e mulheres devem fazer reverência para quem está sendo
saudado como se estivessem saudando a rainha da Inglaterra.
Os
dois Alaga devem receber e cumprimentar todos os convidados da
cerimônia.
Uma
vez que o noivo está tomando a mão da noiva em casamento, o Alaga
Iduro e membros da família do noivo se levantarão dos seus
assentos e saudarão a família da noiva com dança e canto, no
início da cerimônia.
Inicia-se
uma pequena encenação entre o Alaga Iduro e o Alaga Ijoko com eles
falando sobre a intenção da família do noivo trazer para ela, a
noiva. Isso é feito porque esse é o entendimento. A Mulher sempre
vai para a família do noivo, ela sai da sua família e vai para
outra família. O homem é o único que permanece na mesma família.
O
diálogo entre os dois porta-vozes ocorre durante um tempo, com a
finalidade de entreter os familiares e adicionar alegria e humor à
cerimônia.
A
próxima etapa é a leitura da carta de pedido.
O
alaga Iduro traz a carta de pedido em um pacote acompanhada de canto
e dança. A carta é aberta e lida por uma representante designada
pela família da noiva, normalmente uma jovem entre 12 e 15 anos de
idade.
A
carta de pedido é uma carta onde a família do noivo exorta o amor
do noivo pela noiva e o carinho da família por ela e pede que a
família da noiva formalize a aceitação do relacionamento entre
eles. Esta carta terá que ser respondida e existe uma pausa entre a
leitura e a resposta sempre preenchida com canto e dança.
Observem
que a participação da família é fundamental no casamento yorùbá.
Não é apenas uma cerimônia entre duas pessoas que se amam e
decidem se casar, essa é uma diferença fundamental. O casamento é
uma cerimônia social e por isso mesmo familiar. A família do noivo
recebe a noiva e para isso pede a dá garantias a família da noiva
que faz isso de bom grado e com alegria.
Após
a aceitação da carta pela família da noiva, é feita a entrada do
cortejo do noivo.
A
entrada do noivo é feita com música e tambores. As esposas jovens
da família do noivo que já tenham casado por menos de 15 anos irão
acompanhá-lo, dançando ao redor do noivo, junto com seus amigos
homens e membros homens da família do noivo.
O
cortejo segue até onde estão as esposas da família da noiva que
vão estender um pano decorativo característico da vestimenta
tradicional para que o noivo coloque dinheiro em retribuição ao
trabalho delas que durante o dia preparam a festa e a recepção.
As
esposas da família da noiva vão recolhes seus panos e também
dançar à frente do cortejo enquanto ele dança até o local onde
estão os mais velhos da família da noiva.
Chegando a esse local as
esposas saem da frente e o noivo e seus amigos farão reverência a
esses mais velhos. A família da noiva saudará e abençoará o
noivo.
Depois
disse ele deve ainda dançar sozinho até onde estão as 2 cadeiras
altas preparadas para ele e sua noiva.
É
chamado então o cortejo da noiva. O Alaga Iduro pedirá ao Alaga
Ijoko para trazer a noiva, através de um cortejo similar ao cortejo
da noiva, sendo que a noiva vem com sua cabeça totalmente coberta.
Ela é levada até a sua família para que eles a abençoem.
Os
parentes rezarão para que a noiva não seja estéril e darão os
seguintes conselhos:
- Ela deve ser uma mulher virtuosa para seu marido e filhos e ter o melhor comportamento em sua nova família.
- Ela não deve fazer nada que traga vergonha a sua família.
- Ela deve suportar o seu marido.
A
noiva vai então para a família do noivo que farão o seguinte:
- Eles a receberão com os braços abertos.
- Garantirão que ela está casando em uma boa família.
- Prometerão cuidar dela e de seus filhos.
- A cobrirão de bençãos.
Ela
vai então até o noivo, acompanhada de canto e dança.
Os
presentes da família do noivo serão apresentados para a noiva pelo
Alaga Ijoko que instruirá a noiva a escolher o que ela mais ama
entre eles.
Os
presentes são os seguintes:
óleo
vegetal: Para trazer calma e frescos ao corpo e também ao
casamento. Ele deve trazer facilidade ao casal para resolver suas
dificuldades.
Mel:
A união deve ser doce e agradável.
Orogbo:
A amêndoa tem gosto amargo e significa que para o resto de sua vida
eles serão apenas um, não importa os amargores da vida.
Obi:
eles são medicinais e trazem saúde para o corpo. O casal será
abençoado com saúde.
Pimenta
da costa: significa que a noiva terá muitos filhos.
Sal:
um preservativo, significa que o casal será um exemplo para os
outros e que a união será preservada até longa idade e que o casal
possa ver os filhos dos filhos.
Água:
Ninguém vive sem água, o que significa que até os inimigos do
casal vão deixar eles em paz.
Bíblia
ou Quran: significa que eles viverão em sua fé e manterão a
família junto independente das situações que passem.
Ela
deve escolher a bíblia ou o Quran dependendo de sua religião e a
audiência deverá comemorar isso. Ela será orientada a abrir o
livro e dentro dele estará a aliança.
O
noivo deverá colocar na noiva o anel com um beijo e abraço e a
noiva deverá dançar ao redor mostrando para todos a aliança.
Em
alguns casos é feito a cerimônia do sabor, na qual os noivos provam
4 sabores:
- Limão: acidez
- Vinagre: amargor
- Cana: calor
- Mel: doce
Experimentando
os sabores junto simboliza que os momentos dominados por esses
sabores serão superados pelo casal. Agora ele sabem o que
encontrarão juntos e juntos superarão.
Depois
disso a noiva vai até o noivo e vai colocar nele o seu chapéu. Isso
é considerado um “coroamento” do noivo, uma vez que o marido é
visto como a coroa na cabeça da mulher, em outras palavras ele é a
cabeça do casal. Ao colocar o chapéu na cabeça do noivo a noiva
selará a sua parte da cerimônia com um beijo.
Depois
disso todos os membros de ambas as famílias devem esticar suas mãos
em direção ao casal e rezar pela união dos dois. Parte das preces
é que nenhum homem ou mulher estranho irá se colocar entre os dois
e que a coroa não cairá da cabeça da mulher.
A
parte seguinte da cerimônia, os Alagas introduziram todos os membros
das famílias presentes. É parte da cultura yorùbá que cada membro
da família deve conhecer o outro de forma que quando eles se
encontrarem na comunidade eles devem se reconhecer e se saudar e não
agir como estranhos uns aos outros.
As
duas famílias estão agora unidas.
As
famílias podem adicionar nesta parte as bençãos religiosas,
convidando representantes de sua religião para abençoarem o casal.
Resumo
Como
podem ver, a cerimônia de casamento é um evento social e voltado
para a família e sociedade. Não é uma cerimônia religiosa e mesmo
a religião tradicional tem, hoje, pouco espaço, uma vez que eles
consideram que as pessoas são cristãs ou muçulmanas.
Na
minha descrição eu simplifiquei algumas coisas (poucas), existem
coisas que são muito próprias deles e que não adicionam nada ao
entendimento da cerimônia.
Existe
por parte de brasileiros uma ensandecida vontade de parecerem
africanos. Isso é ridículo. Não se importa cultura, a cultura é
algo complexo e parte do povo. Jamais um outro povo pode absorver a
cultura de outro, um povo ou pessoas podem absorver pequenos aspectos
de uma cultura, como estética, arte e religião, mas, jamais serão
o outro povo.
Brasileiros
serão sempre brasileiros. Essa vontade de fazerem negros se
comportarem como africanos ou insinuar que negros devem estar ligados
a sua raiz africana é uma bobagem sem fim, é como se você condenar
para sempre uma parte de nossa sociedade para ser discriminada por
toda a sua vida. Não se pode segregar pessoas orientando elas a se
comportarem como outra sociedade. Igualdade significa aceitar a todos
como membros da mesma sociedade onde todos adotam a mesma cultura.
Essa
cerimônia tem alguns aspectos interessantes, ligados às famílias
que devem ser usados, porque isso é parte da religião. Mas, claro
que outros aspectos naturais de nossa sociedade e que já tenham sido
incorporados em nossa cultura podem ser adicionados ao se formar uma
cerimônia religiosa para o Candomblé.
O
que recomendo é que pessoas do Candomblé entendam a estrutura da
cerimônia ao fazerem sua cerimônia. Não vejo problema em usarem
elementos cerimoniais de outras religiões que as pessoas já estejam
acostumados, mas, não vejo porque fazerem invenções como faixas
nas mãos e outras esquisitices e veem em filmes para dizer que
aquilo é do Candomblé.
O
Candomblé não tem cerimônia de casamento assim como a religião
Yorùbá não tem. Uma cerimônia deve ser estabelecida para atender
a sociedade e não vejo nem um problema da parte religiosa ser
inserida apenas como uma benção ao final, como está nesta que eu
descrevi uma vez que a religião não tem o dogma da união
indissolúvel. Ou seja, integrar a religião em uma cerimônia social
é uma opção vem adequada.
O
que não é adequado é fazer uma cerimônia religiosa formal, em
terreiro ou em outro lugar encenando o estabelecimento de uma relação
que não existe na religião. Isso existe na religião católica e
por isso eles fazem o casamento religioso.