A separação do órun (Ọ̀run) e do Àiyé
A separação dimensional entre órun (Ọ̀run) e Àiyé é bem
documentada e caracterizada na teologia da religião. Mais do que
apenas dividir os espaços espirituais o culto de Orixá (Òrìṣà)
é estruturado para permitir a passagem entre órun (Ọ̀run) e Àiyé
para os Orixá (Òrìṣà).
Os mitos dizem que órun (Ọ̀run) e Àiyé eram ligados e que os
Orixá (Òrìṣà) podiam ir e vir de acordo com a necessidade, mas,
claramente e determinado momento isso foi interrompido para todos,
humanos e Orixá (Òrìṣà).
Osamaro Ibie foi bem direto ao posicionar
a separação entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé:
...há
sempre uma tendência de ver o homem estritamente de uma perspectiva
biológica. Um homem e uma mulher acasalam e um filho nasce deles e o
novo filho é visto como uma entidade independente, já vimos que no
início da habitação terrestre, os seres humanos viajavam para este
mundo sob a liderança de um ou de outro das divindades, veremos nos
próximos capítulos que a estada de um homem no mundo é apenas uma
continuação de suas atividades no céu, já vimos que antes que o
homem viesse a viver no mundo, os habitantes do céu continuaram
viajando seus pés de e para a terra, completaram suas atribuições
na terra, e voltaram para o céu, foi Èşu quem bloqueou a passagem
livre entre o céu e a terra e fez do útero feminino o caminho de
passagem entre os dois lugares. Antes, a pelve de todos os animais,
como nas plantas, ficava na testa e não era reconhecida nem
respeitada, tanto nos animais quanto nos seres humanos. A pélvis,
que era um organismo vivo no céu, foi para a divinação e foi
aconselhada a fazer um sacrifício com um bode preto para Èşu e
assim o fez. Depois disso, Èşu pediu à fêmea para abrir as pernas
e extrair a pélvis de sua testa "e" posicionou-a entre as
pernas. Ele então extraiu uma parte da pele do corpo do bode preto
com o qual a pélvis fez o sacrifício para ele, e Esu usou-o para
cobrir a pélvis em sua nova morada entre as pernas femininas.
Depois disso, Èşu foi para a
fronteira do céu e da terra e bloqueou para sempre com escuridão
total. Essa parte do sistema planetário se aproxima do que na
mitologia grega é chamado de Erebus (Ìrònà). Foi Èşu quem o
bloqueou permanentemente e ordenou que ao invés de manter os portões
do céu permanentemente ocupados por viajantes vindos da terra para
pedir filhos no céu, a partir de então, qualquer um, animais e
humanos, que quisesse ter filhos deveria apelar para a pélvis, e o
útero de todas as mulheres foi feito para simbolizar a escuridão e
os mistérios de Erebus (Ìrònà). O período de gestação que uma
fêmea leva para dar à luz um filhote também se aproxima do tempo
que costumava levar para diferentes espécies da família animal
viajarem de e para o céu para ter um filho.
Além disso, no Candomblé, temos um mito conhecido, no formato
orixalizado, que reputa a Oxalá (Òṣàlá) a separação entre o
órun (Ọ̀run) e o Àiyé. O mito a seguir está descrito por Prandi
(Mitologia dos Orixás, pag. 514). Lembro que o processo de
orixalização fez parte da diáspora em todos os lugares. As
divindades Olódùmarè, Exú (Èṣù), Ori e Órunmila (Ọ̀rúnmìlà),
bem como outros inrumolé (Irúnmọlẹ̀) não foram trazidos e toda
a teologia e cosmogonia foi adaptada e identificada quase que somente
por Orixá (Òrìṣà), que eram as divindades conhecidas. Em alguns
lugares isso foi muito exagerado e mal feito, como em Cuba, onde eles
criaram, praticamente, uma cosmogonia própria, visto que lá
conceitos muito básicos da teologia, como Ori e Exú (Èṣù) entre
outros, não existiam para eles. No Brasil isso ocorreu, também, mas
em menor intensidade e mais focado em Olódùmarè que aqui era
tratado como se fosse Oxalá (Òṣàlá), o Orixá (Òrìṣà) da
criação. Aqui, os inrumolé (Irúnmọlẹ̀) eram conhecidos, mas,
no dia a dia o papel deles era atribuído a um Orixá (Òrìṣà).
Essa situação de orixalização começou a ser corrigida a
partir da década de 50 do século XX, com o acesso dos sacerdotes às
obras de pesquisadores e antropólogos. Em cuba esse processo de
africanização fez um efeito muito grande, uma vez que eles são uma
pequena ilha, a comunicação mais fácil e conhecimento controlado
por poucas pessoas, eles inseriram rapidamente as divindades que
faltavam fazendo um certo estrago no todo (minha opinião), mas,
hoje, se comportam como se sempre tivesse sido assim lá, bem no
estilo cubano.
O mito a seguir, da separação do órun
(Ọ̀run) e do Àiyé, é bem tradicional no Candomblé.
Obatalá separa o Céu da Terra
No
início não havia a proibição de se transitar entre o Céu e a
Terra; A separação dos dois mundos foi fruto de uma transgressão,
do rompimento de um trato entre os homens e Obatalá. Qualquer um
podia passar livremente do Orum para o Aiê. Qualquer um podia ir sem
constrangimento do Aiê para o Orum. Certa feita um casal sem filhos
procurou Obatalá implorando que desse a eles o filho tão desejado.
Obatalá disse que não, pois os humanos que no momento fabricava
ainda não estavam prontos. Mas o casal insistiu e insistiu, até que
Obatalá se deu por vencido. Sim, daria a criança aos pais, mas
impunha uma condição: o menino deveria viver sempre no Aiê e
jamais cruzar a fronteira do Orum. Sempre viveria na Terra, nunca
poderia entrar no Céu. O casal concordou e foi-se embora. Como
prometido, um belo dia nasceu a criança. Crescia forte e sadio o
menino, mas ia ficando mais e mais curioso. Os pais viviam com medo
de que o filho um dia tivesse curiosidade de visitar o Orum. Por isso
escondiam dele a existência do Céu, morando num lugar bem distante
de seus limites. Acontece que o pai tinha uma plantação que
avançava para dentro do Orum. Sempre que ia trabalhar em sua roça,
o pai saía dizendo que ia para outro lugar, temeroso de que o menino
o acompanhasse. Mas o menino andava muito desconfiado. Fez um furo no
saco de sementes que o pai levava para a roça e, seguindo a trilha
das sementes que caíam no caminho, conseguiu finalmente chegar ao
Céu. Ao entrar no Orum, foi imediatamente preso pelos soldados de
Obatalá. Estava fascinado: tudo ali era diferente e miraculoso.
Queria saber tudo, tudo perguntava. Os soldados o arrastavam para
levá-lo a Obatalá e ele não entendia a razão de sua prisão.
Esperneava, gritava, xingava os soldados. Brigou com os soldados, fez
muito barulho, armou um escarcéu. Com o rebuliço, Obatalá veio
saber o que estava acontece Reconheceu o menino que dera para o casal
de velhos e ficou furioso com a quebra do tabu. O menino tinha
entrado no Orum! Que atrevimento! Em sua fúria, Obatalá bateu no
chão com seu báculo, ordenando a todos que acabassem com aquela
confusão. Fez isso com tanta raiva que seu opaxorô atravessou os
nove espaços do Orum. Quando Obatalá retirou de volta o báculo,
tinha ficado uma rachadura no universo. Dessa rachadura surgiu o
firmamento, separando o Aiê do Orum para sempre. Desde então, os
orixás ficaram residindo no Orum
A seguinte versão deste mito está no
excelente livro de José Beniste, Mitos Yorùbá.
O CONFLITO ENTRE O CÉU E A TERRA
Em
tempos primordiais, os dois planos (o céu e a terra) não eram
separados entre si — interligavam-se num ponto deno¬minado Akàsò.
Tudo que os visitantes dos dois planos tinham a fazer era cruzar uma
porta fronteiriça comandada pelo Oníbodè, o porteiro do espaço
celestial. O céu era comandado por Àjàlórun ou Olódúmarè, e a
terra por Àjàláiyé ou Onílè. Ambos eram grandes amigos e viviam
em constante confraternização, até que uma grande disputa surgiu
entre os dois.
Era
costume preservar-se uma grande floresta para abrigar muitos animais.
Depois se fazia uma grande queimada na esperança de encontrar ali os
animais que interessavam a todos. Num desses acontecimentos, a
floresta ardeu por muito tempo, mas nenhum animal saiu dela. Quando
estava completamente queimada, Àjàláiyé e Àjàlórun entraram
nela vasculhando as tocas dos animas, mas nada foi encontrado, exceto
o Emò, um pequeno roedor do mato. Começaram a discutir sobre quem
ficaria com ele. Àjàláiyé dizia que era o mais velho e por isso o
Emò deveria ser dele. Àjàlórun não concordou, dizendo que ele é
que era o mais velho. A discussão tornou-se violenta, o que fez
Àjàlórun ficar furioso, largando tudo e voltando para o céu, que
era a sua morada, não sem antes dizer que não demoraria muito e
todos iriam saber quem era o mais velho dos dois.
O
resultado foi que a chuva deixou de cair e o orvalho deixou de
pingar; a colheita cessou e os rios secaram. As mulheres não mais
engravidaram, os doentes se tornaram inseguros de sua cura, e a fome
se alastrou. Quando todo mundo já não tinha mais paz, resolveu se
reunir e sair em busca dos sacerdotes de Ifá para uma consulta a fim
de saber o que fazer.
Realizou-se,
então, um grande sacrifício, nele incluindo o Emò, o pivô da
crise, como forma de reconhecimento definitivo da supremacia de
Àjàlórun sobre todos os habitantes da Terra.
Como
a oferenda deveria ser levada para o òrun, Esü tomou a iniciativa
de fazer soar o seu gongo, convocando todos os pássaros, demais
animais e as pessoas da região, reunindo-os no palácio de Àjàláiyé.
Um dos pássaros escolhidos para a tarefa se de¬parou com a oferenda
e, olhando para o céu, recusou a empreitada. Um outro pássaro
surgiu diante de todos, arrebatou a oferenda e alçou vôo, ganhando
altura. Não demorou muito, desistiu, retor¬nando extenuado. Mais
outro pássaro foi chamado e se disse capaz de realizar a tarefa. Não
demorou muito e retornou ao sentir as asas doerem. A seguir foi a vez
da águia, que, tomada de fúria, jactou-se de que levaria a oferenda
até o céu em instantes. Todos ficaram esperançosos de que a águia
seria bem-sucedida e começaram a cantar. Não demorou muito, ela
retornou dizendo-se cansada.
Um
pouco distante, apreciando os acontecimentos, estava Igún, o abutre.
Silenciosamente, ele foi se aproximando e se ofereceu para levar a
oferenda. Os sábios, em princípio, não aceitaram, pois o abutre
era visto como uma ave sombria devido a sua aparência desajeitada, e
por isso duvidaram de sua capa¬cidade. Mas não tiveram outra saída
senão concordar, pois todos já haviam tentado e ninguém havia
conseguido.
O
abutre começou a ajeitar a oferenda em suas costas e, como sua mãe
estava doente quando ele saiu de casa, perguntou quem poderia
ajudá-la enquanto ele conduzia a oferenda ao céu. Todos os
habitantes responderam a uma só voz que cuidariam dela. Mas, tão
logo o abutre desapareceu no espaço, sua mãe morreu, já que
ninguém lhe dera importância.
Quando
o abutre chegou ao portão que dava ligação com o céu, bateu
repetidamente na porta. O porteiro perguntou quem era e o abutre se
identificou, expondo-lhe a sua missão. O portão foi aberto e o
abutre chegou diante de Àjàlórun, prostrando-se imediatamente no
chão em sinal de profundo respeito. E disse: “Àjàláiyé me
enviou aqui para vos saudar e dizer-lhe que, desde que houve a briga,
a Terra ficou mergulhada em confusão. A chuva deixou de cair e todos
estão aflitos com a seca. Pede também que expresse a sua completa
submissão e que vos aceita como seu superior.
Então,
Àjàlórum balançou a cabeça repetidamente e deu uma sonora
gargalhada. Levou o abutre para os fundos de seu palácio e mandou
que arrancasse três pequenas cabaças, mas somente aquelas que
permanecessem em silêncio, evitando as que pe¬dissem para ser
colhidas. Em seguida, foi instruído para que, quando transpusesse o
portão, quebrasse uma cabaça; quando atingisse o meio do caminho,
quebrasse a segunda cabaça; e quando já estivesse perto do solo
quebrasse a terceira cabaça.
E
assim tudo foi feito, de forma que, quando o abutre estava se
aproximando da Terra, a chuvarada começou. Chovia tanto que os rios
transbordaram e as pessoas se esconderam dentro de suas casas. O
abutre, todo molhado, não conseguiu distinguir as coisas devido ao
aguaceiro. Começou a entrar nas casas dos outros pedindo guarida.
Mas todos lhe negavam, e mais, desfe¬riam-lhe uma pancada na cabeça.
De tanto ser espancado naquele dia, a cabeça do abutre ficou pelada
até hoje. Não tendo outra saída, foi empoleirar-se no alto da
árvore de Irókò e cobriu-se com as próprias asas até o romper do
dia.
Antes
de raiar o dia, o abutre sentiu fome. Olhou à sua frente e viu um
grande corpo inchado; começou a comê-lo sem saber que era o corpo
de sua própria mãe, que não havia merecido, por parte do povo, um
tratamento decente quando morrera, tendo sido jogada no lixo.
Quando
o dia clareou totalmente e os habitantes da Terra avistaram o abutre,
começaram a saudá-lo: “Bem-vindo, bem- vindo...”, mas o abutre
foi dizendo que, antes de saudá-lo, eles deveriam dizer-lhe onde
haviam colocado a sua mãe. E responderam: “Você não havia nem
chegado no céu quando sua mãe morreu. E como não sabíamos onde
você queria que ela fosse enterrada, e também porque ela cheirava
muito mal, arrastamos o seu corpo até ali, ao ar livre.” O abutre,
chegando até o local indicado, viu que fora o cadáver de sua mãe
que ele havia devorado. E exclamou: “Então é assim que é a
Terra? Pois eu lhes digo, de hoje em diante, a criança que não
tiver provado de as mãe jamais será ítil na terra. E a partir
desse dia, os filhos recém-nascidos passaram a sugar o leite materno
Sem querer ser extensivo e entediante, em Ifá encontramos também
alguns versos descrevendo a mesma coisa, Olódùmarè chama de volta
os Orixá (Òrìṣà) ao órun (Ọ̀run), não vou transcrevê-los
aqui, apenas afirmo a sua existência, de modo que essa separação
não é uma coisa da diáspora ou do Candomblé é um componente da
religião.
Para aprofundar a questão da divisão dimensional entre o órun
(Ọ̀run) e o Àiyé eu tenho que mostrar os versos de Ogbè Ògúndá
sobre Orí, além de incluir uma longa descrição do processo do
ciclo de nascimento. Não vou fazer isso nesse momento, este
abordagem de Orí será feita quando eu tratar da construção
de individualidade, peço esta licença e vou apenas explicar isso e
sugiro aos leitores buscarem essas informações.
O processo de nascimento no Àiyé é longo e repleto de
protocolos. Quando uma alma no órun (Ọ̀run) decide vir ao Àiyé,
ela deverá seguir um protocolo de preparação para isso que têm
como um dos passos importantes, a entrevista com Olódùmarè, na
qual ela obterá de Olódùmarè os recursos de axé (àṣẹ) para
cumprir seus objetivos de vida. Esta entrevista é testemunhada por
Órunmila (Ọ̀rúnmìlà) e por Elenini. Após isso mais etapas para
ela escolher seu caráter e seu Orí na casa de Àjàlá e por fim
Oxalá (Òṣàlá) moldará seu corpo.
Tudo isso não será finalizado sem antes esta alma passar por
Oníbodé o porteiro do órun (Ọ̀run) e obter dele a permissão
para sua viagem ao Àiyé. É ele que determina quem pode sair do
órun (Ọ̀run) e quem e quando você pode retornar ao órun (Ọ̀run).
A data de retorno fixada para a volta, antecipadamente com Olódùmarè
e com Oníbodé é um elemento básico na religião. Tudo isso está
fartamente documentado em versos e mitos.
A ida para o Àiyé é longa e o nascimento é apenas através do
útero na mulher, que como está documentado no Odù osá (Ọ̀sá)
Méjì foi quem recebeu a capacidade de dar passagem entre o órun
(Ọ̀run) e o Àiyé de Olódùmarè. Não existe outra maneira de
surgir na dimensão Àiyé, vindo do órun (Ọ̀run) que não seja
por esse processo através do útero.
Considero pacificado o pensamento que o órun (Ọ̀run) e o Àiyé
são instâncias dimensionais diferentes, que não existe tráfego
livre entre essas instâncias, que o tráfego passa pela vontade de
Olódùmarè, que como está documentado no verso de Ogbè Ògúndá,
estabelece um rito de nascimento que passa por ele (a entrevista de
Olódùmarè que está em Ìwòrì Méjì ) e que o tráfego entre o
órun (Ọ̀run) e o Àiyé têm um controlador, uma divindade
Oníbodé, que é subordinada a Olódùmarè.
Não temos relato em versos de divindades indo e vindo ao Àiyé,
muito menos os Orixá (Òrìṣà), que são os ministros de
Olódùmarè destacados a cuidar da humanidade e que poderiam ter
esse privilégio. Não tem.
A presença dos Orixá (Òrìṣà) ocorre através das pessoas
que são preparadas para isso, por iniciações, feitas para
despertar isso, sendo que a essência do Orixá (Òrìṣà) já
existe na pessoa antes do seu nascimento, a pessoa no Àiyé e o
Orixá (Òrìṣà) no órun (Ọ̀run), já são ligados. A iniciação
não cria o Orixá (Òrìṣà) na pessoa, apenas desperta uma
energia, uma essência, que a pessoa já veio ao mundo com ela, a
essência do próprio Orixá (Òrìṣà) fazendo parte dela.
Chamo a atenção para isso.
Todo o culto de Orixá (Òrìṣà) é baseado na separação
dimensional do órun (Ọ̀run) e do Àiyé e que o Orixá (Òrìṣà)
precisa de um elégùn preparado para que ele possa se materializar
no Àiyé. Não existe libre trânsito, se esse trânsito de almas
entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé existir então temos que jogar
todo o culto de Orixá (Òrìṣà) fora.
Antes de fechar esta conclusão destaco o texto a seguir retirado
de Cuoco (pag. 634) que explica a necessidade de um elégùn.
Elégùn
Um
orixá é um elemento puro, uma força da natureza e ase, que é uma
energia que só se torna visível quando o orixá possui os humanos e
se torna um deles. A pessoa que o orixá escolheu possuir é chamada
de "elegun", aquela que obteve o privilégio de ser
"montada" pelo orixá. Em Yorubaland, os pais de uma
criança recém-nascida geralmente consultam um Bàbáláwo para
determinar o destino da criança. Nesse momento, o orixá-chefe da
criança é certificado e ele se torna um futuro elégùn. Por volta
dos sete anos de idade, a criança receberá cuidados espirituais de
um padre guardião, que pertence ao mesmo orixá da criança. Isso é
feito para que a criança viva na atmosfera de seu Orixá (Òrìṣà)
designado.
Por
meio da possessão, os corpos dos devotos tornam-se veículos que
permitem aos orixás retornar à terra para serem saudados,
participarem de ritos cerimoniais, bem como receberem sacrifícios e
serem capacitados a se comunicarem diretamente com aqueles que os
evocaram. Na terra Yorùbá, o termo Iyawoorisa é frequentemente
dado a um elégùn, que significa "esposa do orixá"
(Iyawo). Este termo é usado para referir-se a homens e mulheres e
não representa uma ideia de união nem de posse carnal, mas sim de
subordinação e dependência. Normalmente é realizada uma cerimônia
de consagração de um novo elégùn. O noviço, deve suportar um
longo ritual de iniciação de seu orixá. Um lugar sagrado especial
para a iniciação é estabelecido e o futuro elégùn deve ir lá
alguns dias antes do início das cerimônias, a fim de atender aos
preparativos. O novato então viverá em um local privado que deve
ser próximo ao "igbo iku" (a floresta da morte), que é o
local onde as cerimônias acontecerão. Apesar do nome, este local
não é uma floresta real, mas sim um cômodo simples de uma casa ou
qualquer outro cômodo vazio. A permanência do noviço no igbo iku
representa a passagem ao Órun (Ọ̀run) infinito, entre a existência
antiga e profana do noviço e a nova que será consagrada ao seu
orixá. O noviço é então submetido a ingerir infusões feitas com
folhas e raízes sagradas, que irão reforçar a ligação entre ele
e seu futuro Orixá (Òrìṣà) . Essas infusões, que contêm ase,
o poder do Orixá (Òrìṣà), têm um efeito influente na mente do
novato ou contribuir para levá-lo a um estado de entorpecimento e
sugestão, o que o torna um ser dócil, pronto para a iniciação e
para receber seu orixá. Uma vez que o processo de iniciação é
concluído, o novato renasce como um elégùn. Da ai em diante, seus
sentidos serão constantemente aprimorados e poderão ser: avaliados
durante os rituais de adoração. Um elégùn é mais vulnerável à
possessão de um orixá durante cerimônias religiosas onde tambores,
cantos e danças criam uma atmosfera carregada de axé (àṣẹ) que
permite que o orixá adorado monte em seu corpo. No estado de transe,
o elégùn se torna um orixá e é adorado por outros devotos, que
oferecem sacrifícios e o saúdam. Por sua vez, o evocado Orixá
(Òrìṣà) oferece orientação aos devotos através do elégùn.
O culto de Orixá (Òrìṣà), oferece aos associados, crentes, o
contato com o Orixá (Òrìṣà) e com a religiosidade e para isso é
necessária a preparação dos elégùn para que o Orixá (Òrìṣà)
se faça presente no Àiyé. Não se trata, esta, de uma religião
contemplativa, mas uma religião de ação e reação, de circulação
de axé (àṣẹ) e neste sentido é o Orixá (Òrìṣà) o
ministro de Olódùmarè é quem traz isso para as pessoas.
Para que a religião possa ser praticada é necessária a presença
do Orixá (Òrìṣà), repito esta não é uma religião de
contemplação e de fé cega, não guiamos nossa vida por proibições
e medos, sem Orixá (Òrìṣà) não tem religião e é necessário
o Orixá (Òrìṣà) presente para vermos e tocarmos. Não temos que
ficar imaginando um Orixá (Òrìṣà) ele se apresenta. O
supernatural, o divino não é uma fantasia na nossa cabeça.
Para que esta religião ocorra é necessária a presença do Orixá
(Òrìṣà) e isso será feito através da iniciação e da
preparação do elégùn, que é a cabeceira da ponte entre o órun
(Ọ̀run) e o Àiyé. O elégùn é quem estabelece a ligação com o
Orixá (Òrìṣà) que está no órun (Ọ̀run), atenção, no órun
(Ọ̀run) separado do Àiyé, dimensionalmente distintos. A via que
liga o órun (Ọ̀run) e o Àiyé será o egbe (Ẹgbẹ́) órun
(Ọ̀run) e isto veremos mais adiante.
Se o órun (Ọ̀run) e o Àiyé estivessem ligados energeticamente
ou dimensionalmente, então bastaria o Orixá (Òrìṣà) estalar os
dedos e aparecer aqui no Àiyé, nós veríamos uma imagem dele e não
de um elégùn montado. Poderia ainda fazer uma entrada mais
dramática, saindo de dentro de uma garrafa, como uma nuvem de fumaça
colorida. Podia inclusive falar com a gente a partir do órun
(Ọ̀run), imagina todo mundo em um terreiro e aquela voz soando nas
nossas cabeças, tipo deus em filmes de Hollywood.
Se não é nada disso que ocorre então órun (Ọ̀run) e Àiyé
estão separados.
E mais, lembro da existência dos fantasmas, almas que se perdem
quando morrem e ficam vagando pelo Àiyé. Isso jamais ocorreria, as
almas estariam o tempo todo indo e vindo.
Para nossa vinda ao Àiyé, está pacificado também, que o único
caminho é o útero da mulher. Este é o portal. Um novo corpo é
criado no Àiyé, energeticamente ligado a essa dimensão e o útero
é o que faz a passagem do espírito entre o órun (Ọ̀run) e o
Àiyé. A questão do útero é extremamente importante na mulher. No
Odù Òfún Méjì está a descrição de que Olódùmarè deu a Odù
a mítica esposa de Órunmila (Ọ̀rúnmìlà) o poder total sobre o
axé (àṣẹ), que é a energia de Olódùmarè. Foi Odù a mulher,
que recebe de Olódùmarè o poder supremo que é representado pela
cabaça. Todos os Orixá (Òrìṣà) da criação, conforme descrito
no Odù oxé (Ọ̀ṣẹ́) Òtúwá eram masculinos, eles tinham a
ação, mas, somente Odù foi a mãe, a que recebeu o poder de gerar
vida. Ela traz na mão na sua vinda ao Àiyé a cabaça da criação,
na verdade, o útero dado por Olódùmarè para ela ser a mãe da
humanidade. Esta questão do útero, de Odù de Óba (Ọba) Àiyé e
Ìyá Nlá estão explicados no Odù Òfún Méjì.
O útero é o repositório do axé (àṣẹ) e por isso mesmo a
mulher e não o homem é o elégùn preferencial. Mesmo o Bàbáláwo
recebe o seu poder, o seu axé (àṣẹ) da mulher. A fonte de poder
do Bàbáláwo é o Igbádú,
que é necessário para ele se tornar um Bàbáláwo. O Igbádù
é a representação do útero da mulher e isso é lhe dado pela
própria Odù, conforme verso existente em osá (Ọ̀sá) Méjì. Sem
isso o poder do Bàbáláwo não se manifesta, foi o útero de Odù
na cabaça que dá o poder ao Bàbáláwo.
O Bàbáláwo é um sacerdote que trabalha continuamente com a
ligação órun (Ọ̀run) – Àiyé e seus 2 únicos instrumentos
para isso são o ópon Ifá (Ọpọ́n Ifá) ifá, uma representação
do Àiyé e um portal energético para o órun (Ọ̀run) e o Igbádù.
Digo mais, afirmo que o modelo de um órun (Ọ̀run) e um Àiyé
ligados tornaria impossível a vida no Àiyé. Um dos elementos
importantes na vinda para uma nova vida, conforme descrito por Ibie e
por Salami, de maneira um pouco diferente, mas, com o mesmo
significado, como está no Odù Ìrsòsùn Méjì, é que ao vir para
o Àiyé nós perdemos o contato e a lembrança de memórias, somos
um livro em branco, deixamos o órun (Ọ̀run) para trás.
Mesmo o nosso Énikeji (Ẹnìkéjì), nossa divindade pessoal, a
divindade mais importante para nós, nosso anjo-da-guarda não tem
contato com a gente aqui! Ele somente se comunica de forma bastante
restrita através do oráculo de Ifá
e sua atuação não é no Àiyé e sim no órun (Ọ̀run), junto as
divindades que tem a capacidade de vir ao Àiyé, que são os Orixá
(Òrìṣà) e Egúngún.
Sem esse isolamento seria impossível viver uma nova vida, assim
como seria impossível viver se ficarmos sendo continuamente
importunados por espíritos do órun (Ọ̀run) que nos conhecem.
Salami cria a figura da árvore do esquecimento para estabelecer esse
processo de esquecimento.
Qualquer outra religião, séria, no mundo, que prevê o
renascimento de uma alma também tem o mesmo processo de esquecimento
e isolamento.