texto anterior: Os demais espíritos do egbé (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run))
A origem dos Àbíkú, quem são eles?
Neste ponto podemos, finalmente, abordar a trágica origem dos Àbíkú. Sem as informações anteriores isso ficaria muito complicado.
O que ocorre é que, como explicado, esses espíritos infantis que compõem o egbé (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run) perdem o vínculo com suas famílias devido a rejeição e guardam a memória do sofrimento e da rejeição. Uma das coisas que os espíritos que estão no Ìrònà não passam é pela árvore do esquecimento, porque a árvore do esquecimento surge quando os espíritos vão do órun (Ọ̀run) para o Àiyé. Mas os espíritos que vão do Àiyé para o Ìrònà não passam por ela.
O esquecimento das vidas anteriores e o nascimento com suas lembranças limpas é uma das coisas maravilhosas do nascimento, que possibilita a você viver de fato uma nova vida. Sem isso você traria para cada vida as dores ou rancores das vidas anteriores e isso o impediria de buscar novos caminhos. Eu já vi isso em algumas religiões orientais, esse conceito do esquecimento.
Nesse ponto, abro um parêntese para falar dos kardecistas que creem que carregamos o “karma” para as vidas seguintes. Esse conceito é rejeitado por mim. É um absurdo teológico que influenciam muito mal as pessoas que acreditam nisso. Isso é viver olhando o retrovisor e trazer para cada nova vida os problemas e erros das anteriores, seja porque são lembrados ou porque se paga por eles, mudando o destino desta vida. Esse conceito é estúpido. Fecha o parêntese.
Para os yorùbá, segundo Salami, Ifá nos ensina que cada pessoa toca na árvore chamada Igi igbàgbé ou a árvore da perda da memória. Isso é explicado no Odù Ìròsùn Méjì. Tocar na árvore é uma metáfora claro, os yorùbá gostam muito de árvores. Os chineses tem uma deusa chamada Meng Po, que é uma divindade feminina cuja tarefa consiste em preparar as almas para entrem no ciclo da reencarnação. Tendo purgado-as de todo conhecimento prévio, o espírito é enviado para renascer em uma nova vida. A poção de Meng Po é feita de ervas do mundo humano e é conhecida como “os cinco sabores do esquecimento”: doce, amargo, azedo, ácido e salgado. Quem for reencarnar, deverá beber a poção, que produzirá na pessoa amnésia instantânea, apagando toda lembrança de vidas passadas. Diz-se que a poção de Meng Po pode apagar a memória dos acontecimentos passados, e é por isto que as pessoas vêm a este mundo sem nenhuma lembrança de suas vidas anteriores no mundo humano.
Devemos entender que as vezes nem toda a memória é apagada, pode ficar uma memória residual e isso explica os gênios infantis, crianças que nascem com habilidades extremas. A mesma mitologia chinesa da deusa Meng Po também prevê essa situação.
Mas a árvore de Igi igbàgbé é que permite o renascimento com as páginas do livro em branco, possibilitando que a gente escreva a cada vida um novo livro sem carregar remorsos, ressentimentos, erros e raivas do passado.,
Os espíritos do egbe (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run), que estão no Ìrònà não passam por isso e desta forma eles guardam com eles, no seu espírito, essa memória da vida anterior.
No Ìrònà, com a convivência com os seus companheiros de Ìrònà, de estadia, eles desenvolvem novos laços familiares dentro do egbe (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run). Como eles perderam as famílias, foram rejeitados e machucados, seus companheiros de egbe (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run) se tornam sua nova família. Essa nova família será de amigos, companheiros, camaradas, justamente o conceito que é extensivamente traduzido para o egbe (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run). Só que não são os camaradas do órun (Ọ̀run), não são nossos amigos que deixamos no órun (Ọ̀run), são os amigos que temos ou deixamos no Ìrònà.
Esses companheiros, todos, compartilham do mesmo sentimento de rejeição, da mesma violência que sofreram pela rejeição e eles criarão nessa nova convivência um vínculo muito especial de amor, compreensão e proteção.
Mas, eles não podem ficar o resto de sua existência no Ìrònà, merecem uma nova chance. Eles não estão abandonados no Ìrònà. Os Orixá (Òrìṣà) estão com eles. Quando um Orixá (Òrìṣà) decide que é hora de um deles renascer, haverá um conflito interno em alguns deles com essa definição de renascimento, porque alguns desses espíritos podem não querem voltar a essa vida no Àiyé, principalmente os que guardam a memória dos maiores sofrimentos e perdas. Eles guardam esse sofrimento, não querem de novo passar por isso e querem se manter na segurança de sua nova família os seus, bons, camaradas no egbe (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run) até voltarem para o órun (Ọ̀run).
Isso não ocorre com todos do egbé (Ẹgbẹ́) órun (Ọ̀run), uma parte apenas desenvolve essa reação e são esses que se transformam nos Àbíkú. Apesar dos Orixá (Òrìṣà) os designarem para renascer, eles farão de tudo para voltar para os seus amigos no Ìrònà, e é nesse ponto que os mitos que eu mencionei que estão na religião Yorùbá.
Os mitos do Salami e do Cuoco (mais completo) detalham o comportamento dos Àbíkú que são este tipo especial de espíritos.
Desta maneira, fechando essa explicação sem delongas porque entendo que já está mais do que claro a nova proposta para os Àbíkú. O que estou fazendo aqui é estabelecer um modelo simples e mais amplo, mais útil, que é mais facilmente aplicável e mais relacionado com nós mesmos e que cobre toda uma série de intercorrência de nascimento. O meu modelo teológico explica o Ìrònà, explica o nascimento das crianças trazidas por Orixá (Òrìṣà) e explica o comportamento humano dos Àbíkú. Nesse modelo eu saio dos dogmas e das explicações bizarras, eu aplico a Lâmina de Occam (princípio filosófico de simplicidade) e cubro todas as situações através de reações humanas normais. Tenho certeza que qualquer um aqui entenderia perfeitamente as razões que transformam um espírito em um Àbíkú.
Não se trata de ódio a família que o recebe, não se trata de punição se trata de medo ou rejeição. Medo de renascer e passar por tudo de novo, o sofrimento que não foi esquecido ou de rejeição, por não querer voltar a quem já o rejeitou.
Podemos inclusive ter o caso de um Àbíkú que retorne à própria família que o rejeitou e por essa razão, por guardar esse rancor de sofrimento, de ressentimento ele se recuse a renascer trazendo para aquela família tanto sofrimento.
Em Ifá temos um enorme repertório de casos para justificar isso. Encontramos mães que rejeitaram a gravidez de forma agressiva, que praguejaram o filho, tentaram o aborto várias vezes com sofrimentos, abortaram várias vezes e um bom número de casos que justificam o ressentimento.
Esses são os sentimentos que norteiam o comportamento dos Àbíkú. Comportamentos humanos e previsíveis.
Àbíkú são vítimas.
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