O leque de Oxum
Parte 6 - Ultima
Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961
O
seu pequeno mundo de paz, beleza e tranqüilidade, até então
preservado com tenacidade, ruiu. Tudo em redor apequenava-se, perdia
o valor, como se estivesse incompleto. As mulheres com quem tentou
enganar-se pareciam-lhe vulgares, tolas, sem gôsto. Procurava em
tôdas aquela dignidade congênita e não a encontrava. Sonhava com
Matilde dançando, tôda de branco, leve e elegante, consciente de
seu pôsto e, por isso mesmo, fora, muito fora de seu alcance. O
contato da mão áspera c quente, a profundidade de seu olhar negro,
tinham-no marcado indelèvelmente. E lhe doía. Numa madrugada
desamarrou o saveiro de vela pena e singrou para o Mercado. Tomou um
carro que o levou ao fim de Brotas. Depois de várias paradas e
informações, chegou ao seu destino. Empurrou a porteira duma roça,
mergulhou numa floresta de jaqueiras, cajàzeiras, mangueiras. Uma
estradinha limpa levou-o a uma clareira. Passou por “loke”,
rodeado de velas acesas, tigelas com comida e azeite, quartinhas
contendo água. Um carneiro tinha sido imolado. Sua cabeça jazia
entre duas raí-zes salientes, seu sangue misturando-se, ensopando a
terra. Pequenas cabanas de sopapo, pintadas de várias côres,
rodeavam o barracão fechado. Tudo estava silencioso e deserto, menos
uma casinha amarela atrás do barracão. Sentada no batente da porta,
uma menina chupava roletes de cana. À aproximação de Undset,
ergueu-se e entrou. Reapareceu com uma velha gorda que vestia saia
vermelha, blusa branca, colares e pulseiras vermelhas e brancas. Não
pareceu surpreender-se à sua chegada. Não perguntou quem era nem o
que desejava. Não deu boas-vindas, não estendeu a mão. Os olhos
não o encaravam. Quando Undset perguntou por Matilde, a velha disse
apenas que entrasse. Ofereceu-lhe uma cadeira e foi seu único gesto
de delicadeza. Undset
sentou-se,
esperou. A menina voltou ao batente e aos roletes. A velha sentara-se
diante dêle, calada, uma expressão de inequívoca tristeza, de
grande pesar, a tingir-lhe o rosto. Undset começou a sentir-se
constrangido. Outras mulheres, velhas ou maduras, entravam ou saíam
de vários quartos, passavam silenciosas, fitavam Undset com
hostilidade, desapareciam. O sueco sentia-se agressivamente
indesejado. Já se enchia de impaciência quando Matilde apareceu.
Perfume de folhas silvestres exalava de seu corpo. Calçava sandálias
brancas, vestia ampla saia de cetim amarelo. Sôbre os ombros,
deixando entrever a nudez dos seios soltos, uma bata de rendas finas.
Vários colares, assim como pulseiras, onde preponderavam amarelo e
âmbar, rodeavam seu pescoço e os punhos. Duas escravas de ouro
pendiam de suas orelhas. Os cabelos, penteados rentes à cabeça,
formavam meticuloso coque na nuca.
Undset
levantou-se, mudo, mirando-a apaixonadamente. Ela permaneceu no
umbral da porta, também muda, os olhos no chão, as mãos no regaço.
—
Não pude deixar de vir — disse êle por fim, como se estivesse
desculpando-se dum crime.
—
Já o esperava — sussurrou ela, quase para si mesma.
* * *
Já
o esperava — e tempos depois êle veio a saber por que. Soube
também a causa de seu olhar medroso na praia quando a carregara para
o saveiro.
Soube
u significação da tristeza e da animosidade das mulheres de sua
“casa”. “Filha de Oxum”, Matilda
no recesso de seu “peji”, jogava os “obis”.
—
Alafia! — exclamava quando a sorte lhe era benéfica.
Mas
seu rosto ensombreceu. Via uma Oxum muito feliz, rodeada de sua
côrte, servida por suas escravas, morando num palácio sem igual.
Suas irmãs visitavam-na, suas filhas adoravam-na, suas servas
idolatravam-na. E os “orixás” abençoavam seu reino, ela
inteiramente entregue ao sacerdócio. De repente um furacão a
preveni-la, Iansã tentando salvá-la, Xangô enfurecido, jogando
raios em seu “aché”, ela sem escutar os “avisos”. Um
estrangeiro louro, tão diferente dos seus “ogans” afastando
furacão, aparando os raios no peito, levando-a pelos caminhos do
amor.
Esperava-o,
seu destino estava, de nascença, ligado ao dêle. “Ifá” jamais
a enganara. Sabia também que a vida lhe seria curta se o seguisse.
Que “Xangô” expulsá-la-ia da vida se se fôsse com êle. Mas
sabia também — e isso quem lhe dizia era seu próprio coração —
que fôrça nenhuma, humana ou sobrenatural, a impediria de segui-lo.
Não
partiu logo, porém. Os sagrados deveres de zeladora de sua “casa”,
de “mãe” espiritual de muitas “filhas”, de instrutora de
muitas noviças, de guardiã dos segredos e mistérios de seu rito,
fizeram-na vacilar e lutar, sofrer e macerar-se. Procurou resistir.
Mas Undset passara a viver em Salvador. E em todos os crepúsculos
vinha cortejar sua deusa.
Trazia-lhe
flôres e doces, peixe e incenso, sêdas e cetins, jóias e perfumes,
frutas e búzios, cumulando-a de gentilezas, galanteios e palavras de
amor. Esta constância serviu-lhe também de iniciação no candomblé
de “orixás”. Assistia a tôdas as festas, “Xangô” e
“Omolu”, “Oxosse” e “Oxalá”, “Iansã”, “Ogum”,
“Iemanjá”, “Oxum”. Penetrava na essência dos espetáculos,
compreendia pouco a pouco a linguagem dos instrumentos musicais, dos
cânticos, das danças. Aprendia os valores das homenagens e o poder
de cada “orixá”. Ouvia as suas lendas. Percebia o requinte
espiritual daquela côrte aparentemente pagã e bárbara, e teve a
convicção de que estava bebendo uma civilização consistente,
caracterizada e forte.
Matilde
lhe ensinava o dialeto africano, toques, cantigas e histórias.
Sentia-se num mundo extraordinariamente agitado e colorido, cheio de
preceitos, fundamentos e quizilas. Por isso compreendia o combate
travado no espírito da amada. Juntos, os dois tudo fizeram para
acalmar os caprichos e os ciúmes de Xangô. Undset ofereceu-se para
casar com Matilde sem tirá-la de seu “aché”. Ela viveria metade
do ano em “Barro Vermelho” e em Brotas todo o tempo do seu ciclo
de “obrigações” e “festas”. Mas de nada adiantaram
penitências, preces, sacrifícios, “despachos” e “boris”.
Xangô não recebera Exu, ignorara as imolações de galos, bodes e
carneiros, tapara os ouvidos a todos os rogos. Queria sua Oxum
inteira sem repartir com estrangeiros. Queria sua Oxum só para si.
Queria sua renúncia absoluta.
Vencida,
Matilde entregou o mando a sua “dagã”. E quase às escondidas,
como se tivesse corrida pelos “orixás” do terreiro, saiu da
roça, refugiou-se no carro que Undset trouxera.
* * *
Barco
amarelo, vermelho, côr de Oxum, côr de Xangô. Bandeiras de papel,
amarradas em cordão, do mastro à pôpa, estiradas em festa. Peles
de carneiro, colchão de pétalas, brancas-de-neve, leito de amor.
Noite de lua, quarto crescente, chuva de lua caindo ao mar. O céu
prateado, inundado de estréias, no fundo das águas.
Peixes-voadores, brilhando no espaço, tombando no mar, levantando
incêndios. “Caravelas”, “arraias”, fosforescências nas
ondas, Iemanjá guardando sua irmã trânsfuga da ira dos irmãos.
Lanternas vermelhas, velas enfunadas, saveiros cruzando. Barco
amarelo, vermelho, balouçando nas ondas, ao sabor das correntes. A
deusa nua, pétalas esmagadas, luar prateando sua pele negra. Noite
aspirando gemidos de dor, o vento levando suspiros de gôzo, Iemanjá
recebendo, de Oxum jubilosa, vermelho sôbre branco, imaculada rosa.
* * *
Amou-a
como a verdadeira espôsa. Não só na lua de mel. Todo o tempo com
ela vivido, serviu-a, dignificou-a, no que era apaixonadamente
retribuído. Não tinha a fragilidade das mulheres comuns. Nem sua
fácil coqueteria. Às sensações novas, vibrava com um prazer
telúrico. Undset comparava-a a uma árvore sôlta na natureza,
esplêndida e sadia, imune aos ventos e às tempestades. Tornou-se
sua companheira ideal, tanto em casa, quando era dócil e meiga, como
nas aventuras, nas caçadas, nas pescarias, quando demonstrava
coragem, sangue-frio, energia. Nadava e mergulhava tão bem quanto
êle. E se era dona dos mistérios dos céus, participava igualmente
da beleza do mar. Entretanto, se na selva ou no mar, integrava-se
perfeitamente, sofria de timidez e inibição perto das fontes, dos
lagos, dos regatos e das cascatas. Se uma caça procurasse refúgio
perto dum dêsses lugares, Matilde desistiria de persegui-la. Para
banho doce só utilizava o banheiro da casa, nunca as fontes e
cascatas que abundavam em redor. E virava a cara se passava perto
duma lagoa, evitava caminhos que passassem por cima dos rios.
*
* *
Um
ano correu assim, num alumbramento de amor, Undset dedicando-se
inteiramente a Matilde, ela também absolutamente dêle. Até que
houve a primeira festa dos “babás” depois da união dos dois. À
chegada do pessoal da Bahia, da comitiva de sua ex-“casa”,
Matilde escondeu-se. Não apareceu à visita que lhe quiseram fazer,
não recebeu sua substituta. Metida numa toca, chorava. Quando ia
anoitecendo, voltou para casa. Undset nada lhe disse. Estavam à mesa
quando o primeiro atabaque soou. Ela parou o garfo no ar, desceu
lentamente a mão que o segurava, deixou-o ao lado do prato.
Observando-a disfarçadamente, Undset reparou no aperto de seus
maxilares, na tensão dos músculos de seu pescoço. Acabou de tomar
o cafèzinho como se nada houvesse, levantou-se, chamou-a para um
passeio. Ela afastou-se em sentido contrário ao vento, levou Undset
para longe, até onde não pudessem ouvir os toques chamando os
“eguns”. Deitaram-se ao abrigo duma canoa virada e ela se lhe
entregou com selvagem lascívia. Voltaram quando o sol se erguia.
* * *
Na
noite seguinte e nas outras treze noites, os atabaques não pararam.
Undset conseguiu distraí- la alguns dias. Nos outros, foi
impossível. Seu olhar tornou-se quase desesperado. Undset chamava-a,
ela não o ouvia. Entrava no quarto, deitava-se e ficava de olhos
abertos, escutando. Undset deitava-se também, deixava-a com sua dor,
com sua luta. Mantinha-se entretanto alerta. Quando os toques dos
atabaques recrudesciam, êle sentia, no escuro, as vibrações
repercutirem no corpo de sua mulher. Ela só vinha a adormecer,
exausta, quando o sol invadia o quarto.
* * *
Com
o ciclo das festas acabou-se a tranqüilidade dos dois. Matilde
perdia o controle sôbre si mesma.
Nas
noites mais angustiantes ela erguia-se da cama e precipitava-se para
fora. Punha-se a correr cegamente pelo coqueiral, batendo-se nos
troncos, escorregando nas raízes, tropeçando nas pedras. Alcançava
a praia, continuava a correr até tombar de cansaço, aos soluços.
Undset, que trotava silenciosamente em seu encalço, chegava,
levantava-se nos braços, trazia-a para casa se a aurora estava
prestes a raiar ou metia-a no saveiro, rumando para fora de alcance
dos atabaques se a noite ainda demorasse. Com febre alta, em delírio,
ela soltava palavras em português e em “kêto”, que Undset ia
juntando e compreendendo, cheio de apreensão, palavras que falavam
num Xangô furioso exigindo, pura e íntegra, sua Oxum de volta.
Quando
as festas terminavam, Matilde serenava, tornava-se de novo
inteiramente de Undset. Êle procurava então convencê-la de que sua
dúvida não passava de auto-sugestão, levando-a a falar,
acreditando que isto contribuísse para afastá-la de seu passado
mítico. Matilde não se esquivava. Reconhecia que a presença de seu
pessoal trazia à tona tudo aquilo que ela quisera sufocar, que
preterira pelo que ela julgava mais forte. Sabia agora ser inútil
matar o que estava ainda vivo em seu sangue e em seu espírito; que
continuaria até sua morte. Mas os atabaques agitavam seus
pensamentos, conseguiam vencer seu raciocínio, trazendo para dentro
da casa, na intimidade do quarto, a dançar em sua volta, suas irmãs
de santo, suas “filhas” e seus “ogans”. Mais do que luta
mental, era também um envolvimento físico, a criticá-la, a
censurá-la, a amaldiçoá-la. Suportava quando podia, estòicamente
a flagelação. Sentia-se no dever de enfrentá-la. Enquanto não
surgia Oxum, podia combater com forças iguais. O seu pessoal era de
carne e de sangue, ela lhe respondia com argumentos de amor. Mas
quando sua Oxum “montava-a”, quando ela era a própria Oxum
materializada, aparecia Xangô a chamá-la, resplandecente e
implacável.
—
Os “obis” não mentem, Undset. “Ifá” não engana. Estou
marcada, não me deixe só, não me abandone.
* * *
Avistamos
o barracão. O sol morria do outro lado e botava sangue pela boca.
Céu e nuvens empastavam-se de vermelho e púrpura. Cigarras
azucrinavam o ar. Mosquitos noturnos zuniam em nossos ouvidos. Os
primeiros toques de atabaque soaram indecisos, espaçados, como o
afinamento duma orquestra. Paramos sob a gameleira branca, gozando o
último cigarro daquela noite.
—
Três anos passaram-se — continuou Undset. — Uma noite, depois do
jantar, demos longo passeio pela praia. Uma paz intocada reinava na
ilha. As ondas, muito leves, desfaziam-se sem ruído aos nossos pés.
Era uma dessas noites sem nuvens, sem lua, em que as estrêlas
brilham sozinhas, destacam-se com todo o fulgor. Um silêncio quase
absoluto nos rodeava. Do outro lado da baía, a cidade do Salvador
estendia-se nítida e bela, banhada de luzes. Matilde ficou a olhá-la
como se seu olhar pudesse ser uma ponte:
—
Hoje é o dia do “Petê de Oxum”. Como estará a festa, em
Brotas?
Voltamos
e nos recolhemos. A brisa refrescava o quarto. A maré enchia e sua
música nos embalava. Adormeci, mergulhando num sono profundo, sem
sonho nem susto. Nada havia para temer. Matilde já adormecera em
meus braços e nenhum ruído estranho perturbava a ilha. Dormi muitas
horas. Acordei com estalos de trovões dentro do quarto. Relâmpagos
acendiam-se contra a parede. E a chuva copiosa encharcava a cama. O
vento acicatava o mar e os penachos dos coqueiros. O barulho do mar e
da folhagem abatia-se com fragor sôbre a casa. Levantei-me dum
salto, atirei-me às janelas. Ao voltar para o leito, dei por falta
de Matilde. Julguei que tinha acordado e, como eu, estivesse fechando
as outras dependências. Chamei-a. Não veio resposta. Procurei-a
pela casa tôda. Não a encontrei. Estranhei sua ausência: naqueles
dias não havia festa dos “eguns”. Contudo corri para a praia. A
chuva abundante encharcava-me até os ossos, penetrava-me nos olhos,
mas os relâmpagos facilitaram a busca. Matilde não estava na praia.
Um raio coriscou no espaço e precipitou-se no pomar. Suas predições
acudiram-me à cabeça. Um violento arrepio, que não era nem de
febre, nem de frio, correu-me no corpo. Saí pelos fundos, corri em
direção à fonte mais próxima. À fonte de Oxum. Um relâmpago
fosforejou e enxerguei-a. Vagava entre os coqueiros como se estivesse
sendo arrastada.
—
Matilde! — gritei o mais alto que pude.
Meu
grito foi esmagado por outro raio que fuzilou um coqueiro. O caule
gigantesco tombou ardendo em minha frente, barrando meu caminho, como
se tivesse caído para impedir meu caminho.
—
Matilde! Matilde! — eu gritava sem cessar.
Os
trovões retumbavam como eu jamais ouvira.
A
chuva era uma só cascata. Meus pés chapinhavam na areia
escorregadia, afundavam como se mãos dentro da terra os puxassem.
Mesmo assim consegui chegar à fonte. Na pedra, elevava-se uma
claridade estranha, fosforescente, a lembrar a forma de uma mulher,
uma mulher que chamava. Aquele clarão me ofuscou e me fêz parar.
Pregado ao chão, percebi Matilde entrar no poço, sua imagem
confundir-se, fundir-se na outra. E então a luz dourada se esvaiu, a
fonte tornou-se escura como antes, os relâmpagos apagaram-se, os
trovões calaram-se, a chuva amainou e o silêncio ficou no ar. Meu
corpo, que parecia amarrado a correntes pesadas, obedeceu então ao
meu mando. Arrastei-me, entrei nágua, mergulhei repetidas vêzes no
escuro sem que minhas mãos tocassem em ser humano. Manhã cedo é
que vi, frio e dourado sôbre a pedra, o leque de Oxum.
Undset
calou-se, jogou a baga de cigarro no chão, apagou-a com a ponta do
pé. Os atabaques começaram a tocar, chamando para o salão os que
ainda estavam no sereno. Foguetes subiram, espoucaram no espaço,
anunciando que os “babás” seriam de novo chamados. A selva ia
sacudir-se de sons e assombrações, os “eguns” poderiam descer à
terra. Mas não me atemorizariam. Senti profundamente que estava no
“caminho” dêles e seu “encanto” também me penetrara para
sempre.
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