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sexta-feira, novembro 29, 2019

O leque de Oxum Parte 6 - Ultima

O leque de Oxum

Parte 6 - Ultima


Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961

O seu pequeno mundo de paz, beleza e tranqüilidade, até então preservado com tenacidade, ruiu. Tudo em redor apequenava-se, perdia o valor, como se estivesse incompleto. As mulheres com quem tentou enganar-se pareciam-lhe vulgares, tolas, sem gôsto. Procurava em tôdas aquela dignidade congênita e não a encontrava. Sonhava com Matilde dançando, tôda de branco, leve e elegante, consciente de seu pôsto e, por isso mesmo, fora, muito fora de seu alcance. O contato da mão áspera c quente, a profundidade de seu olhar negro, tinham-no marcado indelèvelmente. E lhe doía. Numa madrugada desamarrou o saveiro de vela pena e singrou para o Mercado. Tomou um carro que o levou ao fim de Brotas. Depois de várias paradas e informações, chegou ao seu destino. Empurrou a porteira duma roça, mergulhou numa floresta de jaqueiras, cajàzeiras, mangueiras. Uma estradinha limpa levou-o a uma clareira. Passou por “loke”, rodeado de velas acesas, tigelas com comida e azeite, quartinhas contendo água. Um carneiro tinha sido imolado. Sua cabeça jazia entre duas raí-zes salientes, seu sangue misturando-se, ensopando a terra. Pequenas cabanas de sopapo, pintadas de várias côres, rodeavam o barracão fechado. Tudo estava silencioso e deserto, menos uma casinha amarela atrás do barracão. Sentada no batente da porta, uma menina chupava roletes de cana. À aproximação de Undset, ergueu-se e entrou. Reapareceu com uma velha gorda que vestia saia vermelha, blusa branca, colares e pulseiras vermelhas e brancas. Não pareceu surpreender-se à sua chegada. Não perguntou quem era nem o que desejava. Não deu boas-vindas, não estendeu a mão. Os olhos não o encaravam. Quando Undset perguntou por Matilde, a velha disse apenas que entrasse. Ofereceu-lhe uma cadeira e foi seu único gesto de delicadeza. Undset

sentou-se, esperou. A menina voltou ao batente e aos roletes. A velha sentara-se diante dêle, calada, uma expressão de inequívoca tristeza, de grande pesar, a tingir-lhe o rosto. Undset começou a sentir-se constrangido. Outras mulheres, velhas ou maduras, entravam ou saíam de vários quartos, passavam silenciosas, fitavam Undset com hostilidade, desapareciam. O sueco sentia-se agressivamente indesejado. Já se enchia de impaciência quando Matilde apareceu. Perfume de folhas silvestres exalava de seu corpo. Calçava sandálias brancas, vestia ampla saia de cetim amarelo. Sôbre os ombros, deixando entrever a nudez dos seios soltos, uma bata de rendas finas. Vários colares, assim como pulseiras, onde preponderavam amarelo e âmbar, rodeavam seu pescoço e os punhos. Duas escravas de ouro pendiam de suas orelhas. Os cabelos, penteados rentes à cabeça, formavam meticuloso coque na nuca.

Undset levantou-se, mudo, mirando-a apaixonadamente. Ela permaneceu no umbral da porta, também muda, os olhos no chão, as mãos no regaço.

— Não pude deixar de vir — disse êle por fim, como se estivesse desculpando-se dum crime.

— Já o esperava — sussurrou ela, quase para si mesma.

* * *

Já o esperava — e tempos depois êle veio a saber por que. Soube também a causa de seu olhar medroso na praia quando a carregara para o saveiro.

Soube u significação da tristeza e da animosidade das mulheres de sua “casa”. “Filha de Oxum”, Matilda no recesso de seu “peji”, jogava os “obis”.

— Alafia! — exclamava quando a sorte lhe era benéfica.

Mas seu rosto ensombreceu. Via uma Oxum muito feliz, rodeada de sua côrte, servida por suas escravas, morando num palácio sem igual. Suas irmãs visitavam-na, suas filhas adoravam-na, suas servas idolatravam-na. E os “orixás” abençoavam seu reino, ela inteiramente entregue ao sacerdócio. De repente um furacão a preveni-la, Iansã tentando salvá-la, Xangô enfurecido, jogando raios em seu “aché”, ela sem escutar os “avisos”. Um estrangeiro louro, tão diferente dos seus “ogans” afastando furacão, aparando os raios no peito, levando-a pelos caminhos do amor.

Esperava-o, seu destino estava, de nascença, ligado ao dêle. “Ifá” jamais a enganara. Sabia também que a vida lhe seria curta se o seguisse. Que “Xangô” expulsá-la-ia da vida se se fôsse com êle. Mas sabia também — e isso quem lhe dizia era seu próprio coração — que fôrça nenhuma, humana ou sobrenatural, a impediria de segui-lo.

Não partiu logo, porém. Os sagrados deveres de zeladora de sua “casa”, de “mãe” espiritual de muitas “filhas”, de instrutora de muitas noviças, de guardiã dos segredos e mistérios de seu rito, fizeram-na vacilar e lutar, sofrer e macerar-se. Procurou resistir. Mas Undset passara a viver em Salvador. E em todos os crepúsculos vinha cortejar sua deusa.

Trazia-lhe flôres e doces, peixe e incenso, sêdas e cetins, jóias e perfumes, frutas e búzios, cumulando-a de gentilezas, galanteios e palavras de amor. Esta constância serviu-lhe também de iniciação no candomblé de “orixás”. Assistia a tôdas as festas, “Xangô” e “Omolu”, “Oxosse” e “Oxalá”, “Iansã”, “Ogum”, “Iemanjá”, “Oxum”. Penetrava na essência dos espetáculos, compreendia pouco a pouco a linguagem dos instrumentos musicais, dos cânticos, das danças. Aprendia os valores das homenagens e o poder de cada “orixá”. Ouvia as suas lendas. Percebia o requinte espiritual daquela côrte aparentemente pagã e bárbara, e teve a convicção de que estava bebendo uma civilização consistente, caracterizada e forte.

Matilde lhe ensinava o dialeto africano, toques, cantigas e histórias. Sentia-se num mundo extraordinariamente agitado e colorido, cheio de preceitos, fundamentos e quizilas. Por isso compreendia o combate travado no espírito da amada. Juntos, os dois tudo fizeram para acalmar os caprichos e os ciúmes de Xangô. Undset ofereceu-se para casar com Matilde sem tirá-la de seu “aché”. Ela viveria metade do ano em “Barro Vermelho” e em Brotas todo o tempo do seu ciclo de “obrigações” e “festas”. Mas de nada adiantaram penitências, preces, sacrifícios, “despachos” e “boris”. Xangô não recebera Exu, ignorara as imolações de galos, bodes e carneiros, tapara os ouvidos a todos os rogos. Queria sua Oxum inteira sem repartir com estrangeiros. Queria sua Oxum só para si. Queria sua renúncia absoluta.

Vencida, Matilde entregou o mando a sua “dagã”. E quase às escondidas, como se tivesse corrida pelos “orixás” do terreiro, saiu da roça, refugiou-se no carro que Undset trouxera.

* * *

Barco amarelo, vermelho, côr de Oxum, côr de Xangô. Bandeiras de papel, amarradas em cordão, do mastro à pôpa, estiradas em festa. Peles de carneiro, colchão de pétalas, brancas-de-neve, leito de amor. Noite de lua, quarto crescente, chuva de lua caindo ao mar. O céu prateado, inundado de estréias, no fundo das águas. Peixes-voadores, brilhando no espaço, tombando no mar, levantando incêndios. “Caravelas”, “arraias”, fosforescências nas ondas, Iemanjá guardando sua irmã trânsfuga da ira dos irmãos. Lanternas vermelhas, velas enfunadas, saveiros cruzando. Barco amarelo, vermelho, balouçando nas ondas, ao sabor das correntes. A deusa nua, pétalas esmagadas, luar prateando sua pele negra. Noite aspirando gemidos de dor, o vento levando suspiros de gôzo, Iemanjá recebendo, de Oxum jubilosa, vermelho sôbre branco, imaculada rosa.

* * *

Amou-a como a verdadeira espôsa. Não só na lua de mel. Todo o tempo com ela vivido, serviu-a, dignificou-a, no que era apaixonadamente retribuído. Não tinha a fragilidade das mulheres comuns. Nem sua fácil coqueteria. Às sensações novas, vibrava com um prazer telúrico. Undset comparava-a a uma árvore sôlta na natureza, esplêndida e sadia, imune aos ventos e às tempestades. Tornou-se sua companheira ideal, tanto em casa, quando era dócil e meiga, como nas aventuras, nas caçadas, nas pescarias, quando demonstrava coragem, sangue-frio, energia. Nadava e mergulhava tão bem quanto êle. E se era dona dos mistérios dos céus, participava igualmente da beleza do mar. Entretanto, se na selva ou no mar, integrava-se perfeitamente, sofria de timidez e inibição perto das fontes, dos lagos, dos regatos e das cascatas. Se uma caça procurasse refúgio perto dum dêsses lugares, Matilde desistiria de persegui-la. Para banho doce só utilizava o banheiro da casa, nunca as fontes e cascatas que abundavam em redor. E virava a cara se passava perto duma lagoa, evitava caminhos que passassem por cima dos rios.

* * *

Um ano correu assim, num alumbramento de amor, Undset dedicando-se inteiramente a Matilde, ela também absolutamente dêle. Até que houve a primeira festa dos “babás” depois da união dos dois. À chegada do pessoal da Bahia, da comitiva de sua ex-“casa”, Matilde escondeu-se. Não apareceu à visita que lhe quiseram fazer, não recebeu sua substituta. Metida numa toca, chorava. Quando ia anoitecendo, voltou para casa. Undset nada lhe disse. Estavam à mesa quando o primeiro atabaque soou. Ela parou o garfo no ar, desceu lentamente a mão que o segurava, deixou-o ao lado do prato. Observando-a disfarçadamente, Undset reparou no aperto de seus maxilares, na tensão dos músculos de seu pescoço. Acabou de tomar o cafèzinho como se nada houvesse, levantou-se, chamou-a para um passeio. Ela afastou-se em sentido contrário ao vento, levou Undset para longe, até onde não pudessem ouvir os toques chamando os “eguns”. Deitaram-se ao abrigo duma canoa virada e ela se lhe entregou com selvagem lascívia. Voltaram quando o sol se erguia.

* * *

Na noite seguinte e nas outras treze noites, os atabaques não pararam. Undset conseguiu distraí- la alguns dias. Nos outros, foi impossível. Seu olhar tornou-se quase desesperado. Undset chamava-a, ela não o ouvia. Entrava no quarto, deitava-se e ficava de olhos abertos, escutando. Undset deitava-se também, deixava-a com sua dor, com sua luta. Mantinha-se entretanto alerta. Quando os toques dos atabaques recrudesciam, êle sentia, no escuro, as vibrações repercutirem no corpo de sua mulher. Ela só vinha a adormecer, exausta, quando o sol invadia o quarto.

* * *

Com o ciclo das festas acabou-se a tranqüilidade dos dois. Matilde perdia o controle sôbre si mesma.

Nas noites mais angustiantes ela erguia-se da cama e precipitava-se para fora. Punha-se a correr cegamente pelo coqueiral, batendo-se nos troncos, escorregando nas raízes, tropeçando nas pedras. Alcançava a praia, continuava a correr até tombar de cansaço, aos soluços. Undset, que trotava silenciosamente em seu encalço, chegava, levantava-se nos braços, trazia-a para casa se a aurora estava prestes a raiar ou metia-a no saveiro, rumando para fora de alcance dos atabaques se a noite ainda demorasse. Com febre alta, em delírio, ela soltava palavras em português e em “kêto”, que Undset ia juntando e compreendendo, cheio de apreensão, palavras que falavam num Xangô furioso exigindo, pura e íntegra, sua Oxum de volta.

Quando as festas terminavam, Matilde serenava, tornava-se de novo inteiramente de Undset. Êle procurava então convencê-la de que sua dúvida não passava de auto-sugestão, levando-a a falar, acreditando que isto contribuísse para afastá-la de seu passado mítico. Matilde não se esquivava. Reconhecia que a presença de seu pessoal trazia à tona tudo aquilo que ela quisera sufocar, que preterira pelo que ela julgava mais forte. Sabia agora ser inútil matar o que estava ainda vivo em seu sangue e em seu espírito; que continuaria até sua morte. Mas os atabaques agitavam seus pensamentos, conseguiam vencer seu raciocínio, trazendo para dentro da casa, na intimidade do quarto, a dançar em sua volta, suas irmãs de santo, suas “filhas” e seus “ogans”. Mais do que luta mental, era também um envolvimento físico, a criticá-la, a censurá-la, a amaldiçoá-la. Suportava quando podia, estòicamente a flagelação. Sentia-se no dever de enfrentá-la. Enquanto não surgia Oxum, podia combater com forças iguais. O seu pessoal era de carne e de sangue, ela lhe respondia com argumentos de amor. Mas quando sua Oxum “montava-a”, quando ela era a própria Oxum materializada, aparecia Xangô a chamá-la, resplandecente e implacável.

— Os “obis” não mentem, Undset. “Ifá” não engana. Estou marcada, não me deixe só, não me abandone.

* * *

Avistamos o barracão. O sol morria do outro lado e botava sangue pela boca. Céu e nuvens empastavam-se de vermelho e púrpura. Cigarras azucrinavam o ar. Mosquitos noturnos zuniam em nossos ouvidos. Os primeiros toques de atabaque soaram indecisos, espaçados, como o afinamento duma orquestra. Paramos sob a gameleira branca, gozando o último cigarro daquela noite.

— Três anos passaram-se — continuou Undset. — Uma noite, depois do jantar, demos longo passeio pela praia. Uma paz intocada reinava na ilha. As ondas, muito leves, desfaziam-se sem ruído aos nossos pés. Era uma dessas noites sem nuvens, sem lua, em que as estrêlas brilham sozinhas, destacam-se com todo o fulgor. Um silêncio quase absoluto nos rodeava. Do outro lado da baía, a cidade do Salvador estendia-se nítida e bela, banhada de luzes. Matilde ficou a olhá-la como se seu olhar pudesse ser uma ponte:

— Hoje é o dia do “Petê de Oxum”. Como estará a festa, em Brotas?

Voltamos e nos recolhemos. A brisa refrescava o quarto. A maré enchia e sua música nos embalava. Adormeci, mergulhando num sono profundo, sem sonho nem susto. Nada havia para temer. Matilde já adormecera em meus braços e nenhum ruído estranho perturbava a ilha. Dormi muitas horas. Acordei com estalos de trovões dentro do quarto. Relâmpagos acendiam-se contra a parede. E a chuva copiosa encharcava a cama. O vento acicatava o mar e os penachos dos coqueiros. O barulho do mar e da folhagem abatia-se com fragor sôbre a casa. Levantei-me dum salto, atirei-me às janelas. Ao voltar para o leito, dei por falta de Matilde. Julguei que tinha acordado e, como eu, estivesse fechando as outras dependências. Chamei-a. Não veio resposta. Procurei-a pela casa tôda. Não a encontrei. Estranhei sua ausência: naqueles dias não havia festa dos “eguns”. Contudo corri para a praia. A chuva abundante encharcava-me até os ossos, penetrava-me nos olhos, mas os relâmpagos facilitaram a busca. Matilde não estava na praia. Um raio coriscou no espaço e precipitou-se no pomar. Suas predições acudiram-me à cabeça. Um violento arrepio, que não era nem de febre, nem de frio, correu-me no corpo. Saí pelos fundos, corri em direção à fonte mais próxima. À fonte de Oxum. Um relâmpago fosforejou e enxerguei-a. Vagava entre os coqueiros como se estivesse sendo arrastada.

— Matilde! — gritei o mais alto que pude.

Meu grito foi esmagado por outro raio que fuzilou um coqueiro. O caule gigantesco tombou ardendo em minha frente, barrando meu caminho, como se tivesse caído para impedir meu caminho.

— Matilde! Matilde! — eu gritava sem cessar.

Os trovões retumbavam como eu jamais ouvira.

A chuva era uma só cascata. Meus pés chapinhavam na areia escorregadia, afundavam como se mãos dentro da terra os puxassem. Mesmo assim consegui chegar à fonte. Na pedra, elevava-se uma claridade estranha, fosforescente, a lembrar a forma de uma mulher, uma mulher que chamava. Aquele clarão me ofuscou e me fêz parar. Pregado ao chão, percebi Matilde entrar no poço, sua imagem confundir-se, fundir-se na outra. E então a luz dourada se esvaiu, a fonte tornou-se escura como antes, os relâmpagos apagaram-se, os trovões calaram-se, a chuva amainou e o silêncio ficou no ar. Meu corpo, que parecia amarrado a correntes pesadas, obedeceu então ao meu mando. Arrastei-me, entrei nágua, mergulhei repetidas vêzes no escuro sem que minhas mãos tocassem em ser humano. Manhã cedo é que vi, frio e dourado sôbre a pedra, o leque de Oxum.

Undset calou-se, jogou a baga de cigarro no chão, apagou-a com a ponta do pé. Os atabaques começaram a tocar, chamando para o salão os que ainda estavam no sereno. Foguetes subiram, espoucaram no espaço, anunciando que os “babás” seriam de novo chamados. A selva ia sacudir-se de sons e assombrações, os “eguns” poderiam descer à terra. Mas não me atemorizariam. Senti profundamente que estava no “caminho” dêles e seu “encanto” também me penetrara para sempre.

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