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quinta-feira, novembro 28, 2019

O leque de Oxum Parte 5

O leque de Oxum

Parte 5


Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961

Havíamos chegado, Undset e eu, a uma cascata vaporosa. A água muito fina escorregava num leito de seixos brilhantes e despencava aos nossos pés como uma cauda de noiva, umedecendo-nos a roupa e o rosto. Undset estendeu a mão como se fôsse uma concha: bebeu. Sentamo-nos sôbre um tôco de coqueiro caído. Fiz-lhe uma observação um tanto indiscreta:

— Você fala apaixonadamente de mulheres. No entanto, não vi mulheres em sua casa a não ser aquela negrinha. . .

— Nunca faltaram em minha casa — respondeu êle sem se perturbar. Havia mulheres até demais. De dois anos para cá há uma lembrança muito forte, muito viva a impedir que outras se sucedam. Quanto à negrinha que tanto o sensibilizou é apenas uma copeira. Não mais do que isso.

Amava as mulheres como a tôdas as coisas belas e deliciosas da vida. Mas detestava compromissos

de ordem sentimental. Além disso as mulheres eram ameaças à sua tranqüilidade. Como só as queria para o enlêvo dos sentidos, não lhe foi difícil resolver o problema.

— Em suas idas à Capital?

— Isso foi apenas no começo.

— Com as nativas?

— Como você viu, como a que trabalha em casa, há por aqui mulheres, negras ou mulatas, realmente apetecíveis. Mas sempre evitei-as. Esta gente tem um incômodo conceito moral sôbre o assunto. Um passo em falso redundaria em desagradáveis exigências de casamento, de amigamento. De qualquer modo, compromissos pelo resto da vida. ..

Quando ia à Capital, depois de noitadas com música, dança e champanha, êle fazia-lhes a proposta. Geralmente elas acediam, não só pelo ganho que o sueco oferecia como pela aventura em vista e pela beleza viril de Undset. Se alguma chegou a amá-lo de verdade, êle não procurou nem se interessou em sabê-lo. Não queria amor em seu sentido mais profundo e afetivo, mas a satisfação física, o gôzo do sexo, dos olhos, da bôca, das mãos. Jamais enganou alguma. Na ocasião de realizar a proposta era como se o fizesse a uma artista para o que êle considerava uma arte. Na ilha, tratava-as com o máximo de cortesia. Proporcionava-lhes atrações esportivas, passeios pitorescos. Às vêzes a separação levava lágrimas aos olhos delas. Undset, porém, contornava a constrangedora situação com excessos de delicadeza e sempre as conservava como amigas. Quando não eram as profissionais do Tabaris, naquele tempo cheio de mulheres bonitas, eram artistas que por êle se desgarravam das companhias de revista, eram bailarinas de algum “show” em evidência ou, no verão, algumas senhoras chiques que vinham para as águas de Itaparica.

Podia ser cínica e egoísta tal atitude. Mas não deixava de ser sábia, infensa ao perigo dos compromissos legais.

Foi uma dessas mulheres que o conduziu, sem o prever, ao destino que êle jamais supusera.

* * *

Undset, dentro do saveiro, distante da praia, jogava madeira e ferro velho para enriquecer seu pesqueiro. Ela esquiava no mar tranqüilo puxada a cem quilômetros por uma lancha de corrida; fingiu acidente. Undset socorreu-a e levou-a, com a companheira que guiava a lancha, até sua casa. Ela lhe confessou o propósito do acidente e a excitante curiosidade que êle despertava nas veranistas de Itaparica. Os três almoçaram juntos, juntos passaram a tarde e tôda uma noite agitada, imaginativa e ardente. Na manhã seguinte, a companheira se foi, Lúcia ficou. Ficou o resto da semana e o resto dos três meses de veraneio, à exceção dos sábados, domingos e feriados, quando o marido largava as diretorias comerciais e vinha desintoxicar-se em Itaparica. Perto de findar o veraneio, Lícia surpreendera movimento anormal no povoado. Saveiros embandeirados despejando gente vinda de várias direções que se encaminhava a pé para o interior da ilha. Negros e mulatos com roupas de cerimônia, cantando e tocando. Homens, mulheres e crianças expandindo-se de alegria e felicidade. Cheia de curiosidade, Lícia perguntou-lhes a origem daquilo. Apesar de baiana, nunca tinha ido a um candomblé. Insistiu para Undset levá-la.

* * *

Não conhecia as regras do ritual: só depois das nove horas pôs-se a caminho. Passou a cêrca da fazenda. Não chovia; mas nuvens pesadas cobriam as estréias. A atmosfera estava quente e para os lados do mar, no horizonte manchado pela massa das outras ilhas, clarões de relâmpagos iluminavam o céu. Há muito que os atabaques soavam. Seus toques se tornavam cada vez mais nítidos à medida que Undset e Lícia aproximavam-se. A escuridão tornava a caminhada difícil. E muitas vêzes êle teve de carregar a amiga. O calor e o exercício inundavam seu corpo de suor. O barracão estava bem próximo. O rugido dos atabaques entrava em seus ouvidos. Se de longe, refugiado no quarto, êle se sentia atormentado, agora, tão perto, no escuro, com tanto calor, o barulho começou a causar-lhe mal- estar. O barracão surgiu aos seus olhos. Fiapos de claridade saíam das telhas. Respirou quase aliviado. Ia descendo um degrau quando, no meio da trilha,

surgiu uma “coisa”. Não só êle enxergara. As unhas de I ácia enterram-se em seu braço:

— Undset, veja!

Não era ser humano nem a êle se parecia. Não era tampouco bicho, nada que tivesse visto até então. Lembrou-se das histórias que ouvira no barco, nas travessias sem vento. Lícia aconchegava-se ao seu corpo como se nêle quisesse penetrar, proteger-se. Abraçou-a. Ficou expectante, parado onde estava, sem mêdo consciente mas também sem coragem de iniciativa. A “coisa” também não se mexia. Não fôssem grunhidos roucos, palavras ininteligíveis, que dali saíam, Undset juraria ser alguma nuvem tocando o chão. Ocorreu-lhe que poderia ser também algum guardião, uma sentinela a barrar a passagem aos intrusos. Falou-lhe em português. Nenhuma resposta. Disse algumas palavras de “kêto”, que aprendera. Não distinguiu senão os mesmos grunhidos. Lícia pediu-lhe para avançar. O mêdo dava-lhe uma excitação anormal. Undset segurou-a pela mão e precedeu-a. Deu apenas dois passos. A “coisa” em sua frente mexera-se e crescia, ficou redonda, uma bola enorme. O suor frio deu banho em Undset. A mão da amiga crispara-se a dêle. O sueco procurava convencer-se de que ainda não tinha mêdo. A “coisa” parara. Mas continuava a rolar sôbre si mesma, girando em seu próprio eixo.

— Voltemos, Undset.

Lícia tremia, estava vencida. Undset quis voltar. Ao virar o corpo, estremeceu também. Outra forma fantástica cortava-lhes a volta. Era comprida e chata, lâmina de vidro fôsco, tão alta quanto um coqueiro. Aí, Undset teve a convicção do mêdo. Mêdo que não o envergonhava, que se assemelhava ao pasmo diante do desconhecido, do imponderável. Lícia se enroscava em seu corpo querendo nêle esconder- se. Undset procurou guardar o pouco de serenidade que lhe restava. A todo pulmão gritou o nome de um de seus empregados que sabia “ojé” da seita. Receou que o barulho dos atabaques tivesse afogado seu chamado. Ouviu, porém, chicotadas no chão, viu os “eguns” afastarem-se, lenta, renitentemente, para dentro do mato. Um homem de torso nu, vara na mão, surgiu das trevas.

* * *

Levantamos do tronco do coqueiro caído e lentamente penetramos num bosque de cajueiros. O forte odor de resina me invadia as narinas. Cajus gordos e maduros, vermelhos e amarelos, ofereciam-se nos galhos. Passarinhos e ondas de insetos os assaltavam com gula.

— Foi a visão dêsses “eguns” que o converteu? — perguntei.

— Não, mas me fêz levar a sério aquilo que até então considerava pilhéria. O “ojé” que nos socorreu introduziu-nos no barracão. Daí por diante, as sensações que Lícia e eu experimentamos foram de encantamento. Aquilo era completamente novo

para mim e para ela — nós, que nos julgávamos conhecedores de tôdas as emoções humanas.

* * *

Voltaram no dia seguinte. Desta vez chegaram antes do crepúsculo. Entraram aos primeiros chamados dos atabaques. Ocuparam os lugares que lhes foram designados, Undset no banco, em meio dos homens, Lícia sentada numa esteira, entre as mulheres. O “padê” começou. As mulheres, à exceção de Lícia, ergueram-se, puseram-se a dançar, homenageando Exu. Os atabaques tocavam em surdina, as mulheres cantavam baixinho. Seus pés descalços arranhavam o chão, completavam a música. Undset prestou atenção e conseguiu distinguir os toques. Sentiu prazer nisso. E, interpretados pelos movimentos das mulheres a dançar, os atabaques já não lhe pareciam monótonos nem desesperadores. Poucos bibianos acesos, pouca claridade no salão. Mas dava para Undset compreender os detalhes. Bandeirolas de papel de sêda enfeitando o teto, o dossel com os tronos paramentados, a atenção das crianças, o respeito absoluto de todos, a plasticidade dos “alabês”, a atitude de comando do “eiedun”, o círculo móvel das mulheres que dançavam. Uma a uma, elas emergiam da escuridão e Undset ficou a reparar nas características, nas feições, no jeito de cada. Olhava seus rostos, olhava seus corpos, olhava seus pés, as roupas e enfeites. De repente, Undset parou. A luz do fifó focalizara uma mulher lindíssima. Era negra, alta, esplêndida. Era uma beleza inesperada. Submergiu na escuridão. Undset deixou escapar o ar que prendera nos pulmões. Esperou ansiosamente que ela desse a volta, aparecesse de novo sob o foco da luz. Quando isto se deu, sentiu-se tomado de alegria e angústia. Havia majestade congênita na mulher. Dançava com leveza e graça, garbo e dignidade. Os olhos de Undset nela se grudaram, buscavam-na na escuridão, extasiavam-se quando o foco de luz clareava-a. Vestia-se de branco como as outras, saia rodada, engomada, bata rendada. Mesmo assim, escondida num mundo de anáguas, êle adivinhava a perfeição de seu corpo, graças à esbeltez de suas espáduas, à cintura que se afinava, aos tornozelos elegantes. E rosto oval, duma nobreza de expressão que denunciava ascendência de sangue real. E traços firmes, de integridade absoluta, integridade que não era só física, manava da alma. A bôca, a mais bela bôca que Undset já vira, tinha indefinível, atraente ar de superioridade e desdém. Só se lembrava de ter tido emoção semelhante aos dezoito anos. Seu sangue fluía, refluía à flor da pele, inchava em suas veias. Perturbou-se, desviou a vista, encontrou a de Lícia. Leve expressão de malícia brilhava nos olhos e no sorriso da amiga. Lícia percebera o que se passava com Undset. Mas não podia entendê-lo.

* * *

Tentou por todos os meios reagir aos sentimentos que o invadiram. Ao nascer do sol foi para a praia dos protestos de Lícia, não voltou às lestas subseqüentes. Não precisou dizer-lhe a causa. Iícia conhecia seus princípios de independência e paz e a ameaça que agora pairava sôbre êles. Ela própria lhe confessara, ao sair da festa:

— Nunca vi mulher tão impressionantemente

bela!

Sabia também que seu romance com Undset acabara. E quando a amiga da lancha veio trazer- lhe uma carta do marido, aproveitou a ocasião para ir-se. Undset ficou sozinho. E com êle, a aflição, a angústia. Empenhou-se em trabalhos exaustivos. Nada adiantou. A negra não lhe saía da cabeça. Frêmitos dum desejo dificilmente contido fustigavam-no sem piedade. À noite, os toques de atabaque chegavam num convite permanente. Seu sofrimento piorava.

* * *

— Você há de pensar que pouco me custaria aproximar-me dela. Pelo menos poderia ter tentado. Pensei nisso também. As mulheres não tinham segredos para mim. Aquela, porém, me intimidava. Havia qualquer coisa nela de distante e soberano, de frio e superior, que tolhia meu ímpeto. Conversei com minha cozinheira. Descobri o que lhe dava tanta dignidade. Não era uma simples “iaô”. Ao contrário, era importante “ialorixá” e sua “casa” tinha grande prestígio entre as demais. Estava ligada, portanto, a deveres sagrados, além de qualquer sentimento estritamente pessoal.

* * *

As festas acabaram-se. As comitivas desceram. Quando a de Matilde chegou à praia, Undset adiantou-se, falou-lhe:

— Será que nos encontraremos de novo?

Reparava que à luz do dia, banhada de sol, era

ainda mais linda. Os detalhes de seu rosto eram perfeitos. Um sorriso muito leve entreabriu-lhe os lábios:

— Quem sabe?

Foi rápido o olhar que fixou em Undset. Foi um olhar, porém, que lhe penetrou no fundo do ser. A mão que lhe estendeu não era macia nem fria. Como faziam os outros homens com as outras mulheres, Undset carregou-a, entrou nágua, colocou-a na pôpa do saveiro. Ela se foi sem se voltar, erecta, muito séria, rodeada por sua côrte, o sol nascente iluminando-a como a uma deusa.

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