O leque de Oxum
Parte 5
Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961
Havíamos
chegado, Undset e eu, a uma cascata vaporosa. A água muito fina
escorregava num leito de seixos brilhantes e despencava aos nossos
pés como uma cauda de noiva, umedecendo-nos a roupa e o rosto.
Undset estendeu a mão como se fôsse uma concha: bebeu. Sentamo-nos
sôbre um tôco de coqueiro caído. Fiz-lhe uma observação um
tanto indiscreta:
—
Você fala apaixonadamente de mulheres. No entanto, não vi mulheres
em sua casa a não ser aquela negrinha. . .
—
Nunca faltaram em minha casa — respondeu êle sem se perturbar.
Havia mulheres até demais. De dois anos para cá há uma lembrança
muito forte, muito viva a impedir que outras se sucedam. Quanto à
negrinha que tanto o sensibilizou é apenas uma copeira. Não mais do
que isso.
Amava
as mulheres como a tôdas as coisas belas e deliciosas da vida. Mas
detestava compromissos
de
ordem sentimental. Além disso as mulheres eram ameaças à sua
tranqüilidade. Como só as queria para o enlêvo dos sentidos, não
lhe foi difícil resolver o problema.
—
Em suas idas à Capital?
—
Isso foi apenas no começo.
—
Com as nativas?
—
Como você viu, como a que trabalha em casa, há por aqui mulheres,
negras ou mulatas, realmente apetecíveis. Mas sempre evitei-as.
Esta gente tem um incômodo conceito moral sôbre o assunto. Um passo
em falso redundaria em desagradáveis exigências de casamento, de
amigamento. De qualquer modo, compromissos pelo resto da vida. ..
Quando
ia à Capital, depois de noitadas com música, dança e champanha,
êle fazia-lhes a proposta. Geralmente elas acediam, não só pelo
ganho que o sueco oferecia como pela aventura em vista e pela beleza
viril de Undset. Se alguma chegou a amá-lo de verdade, êle não
procurou nem se interessou em sabê-lo. Não queria amor em seu
sentido mais profundo e afetivo, mas a satisfação física, o gôzo
do sexo, dos olhos, da bôca, das mãos. Jamais enganou alguma. Na
ocasião de realizar a proposta era como se o fizesse a uma artista
para o que êle considerava uma arte. Na ilha, tratava-as com o
máximo de cortesia. Proporcionava-lhes atrações esportivas,
passeios pitorescos. Às vêzes a separação levava lágrimas aos
olhos delas. Undset, porém, contornava a constrangedora situação
com excessos de delicadeza e sempre as conservava como amigas. Quando
não eram as profissionais do Tabaris, naquele tempo cheio de
mulheres bonitas, eram artistas que por êle se desgarravam das
companhias de revista, eram bailarinas de algum “show” em
evidência ou, no verão, algumas senhoras chiques que vinham para as
águas de Itaparica.
Podia
ser cínica e egoísta tal atitude. Mas não deixava de ser sábia,
infensa ao perigo dos compromissos legais.
Foi
uma dessas mulheres que o conduziu, sem o prever, ao destino que êle
jamais supusera.
* * *
Undset,
dentro do saveiro, distante da praia, jogava madeira e ferro velho
para enriquecer seu pesqueiro. Ela esquiava no mar tranqüilo puxada
a cem quilômetros por uma lancha de corrida; fingiu acidente. Undset
socorreu-a e levou-a, com a companheira que guiava a lancha, até
sua casa. Ela lhe confessou o propósito do acidente e a excitante
curiosidade que êle despertava nas veranistas de Itaparica. Os três
almoçaram juntos, juntos passaram a tarde e tôda uma noite agitada,
imaginativa e ardente. Na manhã seguinte, a companheira se foi,
Lúcia ficou. Ficou o resto da semana e o resto dos três meses de
veraneio, à exceção dos sábados, domingos e feriados, quando o
marido largava as diretorias comerciais e vinha desintoxicar-se em
Itaparica. Perto de findar o veraneio, Lícia surpreendera movimento
anormal no povoado. Saveiros embandeirados despejando gente vinda de
várias direções que se encaminhava a pé para o interior da ilha.
Negros e mulatos com roupas de cerimônia, cantando e tocando.
Homens, mulheres e crianças expandindo-se de alegria e felicidade.
Cheia de curiosidade, Lícia perguntou-lhes a origem daquilo. Apesar
de baiana, nunca tinha ido a um candomblé. Insistiu para Undset
levá-la.
* * *
Não
conhecia as regras do ritual: só depois das nove horas pôs-se a
caminho. Passou a cêrca da fazenda. Não chovia; mas nuvens pesadas
cobriam as estréias. A atmosfera estava quente e para os lados do
mar, no horizonte manchado pela massa das outras ilhas, clarões de
relâmpagos iluminavam o céu. Há muito que os atabaques soavam.
Seus toques se tornavam cada vez mais nítidos à medida que Undset e
Lícia aproximavam-se. A escuridão tornava a caminhada difícil. E
muitas vêzes êle teve de carregar a amiga. O calor e o exercício
inundavam seu corpo de suor. O barracão estava bem próximo. O
rugido dos atabaques entrava em seus ouvidos. Se de longe, refugiado
no quarto, êle se sentia atormentado, agora, tão perto, no escuro,
com tanto calor, o barulho começou a causar-lhe mal- estar. O
barracão surgiu aos seus olhos. Fiapos de claridade saíam das
telhas. Respirou quase aliviado. Ia descendo um degrau quando, no
meio da trilha,
surgiu
uma “coisa”. Não só êle enxergara. As unhas de I ácia
enterram-se em seu braço:
—
Undset, veja!
Não
era ser humano nem a êle se parecia. Não era tampouco bicho, nada
que tivesse visto até então. Lembrou-se das histórias que ouvira
no barco, nas travessias sem vento. Lícia aconchegava-se ao seu
corpo como se nêle quisesse penetrar, proteger-se. Abraçou-a. Ficou
expectante, parado onde estava, sem mêdo consciente mas também sem
coragem de iniciativa. A “coisa” também não se mexia. Não
fôssem grunhidos roucos, palavras ininteligíveis, que dali saíam,
Undset juraria ser alguma nuvem tocando o chão. Ocorreu-lhe que
poderia ser também algum guardião, uma sentinela a barrar a
passagem aos intrusos. Falou-lhe em português. Nenhuma resposta.
Disse algumas palavras de “kêto”, que aprendera. Não distinguiu
senão os mesmos grunhidos. Lícia pediu-lhe para avançar. O mêdo
dava-lhe uma excitação anormal. Undset segurou-a pela mão e
precedeu-a. Deu apenas dois passos. A “coisa” em sua frente
mexera-se e crescia, ficou redonda, uma bola enorme. O suor frio deu
banho em Undset. A mão da amiga crispara-se a dêle. O sueco
procurava convencer-se de que ainda não tinha mêdo. A “coisa”
parara. Mas continuava a rolar sôbre si mesma, girando em seu
próprio eixo.
—
Voltemos, Undset.
Lícia
tremia, estava vencida. Undset quis voltar. Ao virar o corpo,
estremeceu também. Outra forma fantástica cortava-lhes a volta. Era
comprida e chata, lâmina de vidro fôsco, tão alta quanto um
coqueiro. Aí, Undset teve a convicção do mêdo. Mêdo que não o
envergonhava, que se assemelhava ao pasmo diante do desconhecido, do
imponderável. Lícia se enroscava em seu corpo querendo nêle
esconder- se. Undset procurou guardar o pouco de serenidade que lhe
restava. A todo pulmão gritou o nome de um de seus empregados que
sabia “ojé” da seita. Receou que o barulho dos atabaques tivesse
afogado seu chamado. Ouviu, porém, chicotadas no chão, viu os
“eguns” afastarem-se, lenta, renitentemente, para dentro do mato.
Um homem de torso nu, vara na mão, surgiu das trevas.
* * *
Levantamos
do tronco do coqueiro caído e lentamente penetramos num bosque de
cajueiros. O forte odor de resina me invadia as narinas. Cajus gordos
e maduros, vermelhos e amarelos, ofereciam-se nos galhos. Passarinhos
e ondas de insetos os assaltavam com gula.
—
Foi a visão dêsses “eguns” que o converteu? — perguntei.
—
Não, mas me fêz levar a sério aquilo que até então considerava
pilhéria. O “ojé” que nos socorreu introduziu-nos no
barracão. Daí por diante, as sensações que Lícia e eu
experimentamos foram de encantamento. Aquilo era completamente novo
para
mim e para ela — nós, que nos julgávamos conhecedores de tôdas
as emoções humanas.
* * *
Voltaram
no dia seguinte. Desta vez chegaram antes do crepúsculo. Entraram
aos primeiros chamados dos atabaques. Ocuparam os lugares que lhes
foram designados, Undset no banco, em meio dos homens, Lícia sentada
numa esteira, entre as mulheres. O “padê” começou. As mulheres,
à exceção de Lícia, ergueram-se, puseram-se a dançar,
homenageando Exu. Os atabaques tocavam em surdina, as mulheres
cantavam baixinho. Seus pés descalços arranhavam o chão,
completavam a música. Undset prestou atenção e conseguiu
distinguir os toques. Sentiu prazer nisso. E, interpretados pelos
movimentos das mulheres a dançar, os atabaques já não lhe pareciam
monótonos nem desesperadores. Poucos bibianos acesos, pouca
claridade no salão. Mas dava para Undset compreender os detalhes.
Bandeirolas de papel de sêda enfeitando o teto, o dossel com os
tronos paramentados, a atenção das crianças, o respeito absoluto
de todos, a plasticidade dos “alabês”, a atitude de comando do
“eiedun”, o círculo móvel das mulheres que dançavam. Uma a
uma, elas emergiam da escuridão e Undset ficou a reparar nas
características, nas feições, no jeito de cada. Olhava seus
rostos, olhava seus corpos, olhava seus pés, as roupas e enfeites.
De repente, Undset parou. A luz do fifó focalizara uma mulher
lindíssima. Era negra, alta, esplêndida. Era uma beleza inesperada.
Submergiu na escuridão. Undset deixou escapar o ar que prendera nos
pulmões. Esperou ansiosamente que ela desse a volta, aparecesse de
novo sob o foco da luz. Quando isto se deu, sentiu-se tomado de
alegria e angústia. Havia majestade congênita na mulher. Dançava
com leveza e graça, garbo e dignidade. Os olhos de Undset nela se
grudaram, buscavam-na na escuridão, extasiavam-se quando o foco de
luz clareava-a. Vestia-se de branco como as outras, saia rodada,
engomada, bata rendada. Mesmo assim, escondida num mundo de anáguas,
êle adivinhava a perfeição de seu corpo, graças à esbeltez de
suas espáduas, à cintura que se afinava, aos tornozelos elegantes.
E rosto oval, duma nobreza de expressão que denunciava ascendência
de sangue real. E traços firmes, de integridade absoluta,
integridade que não era só física, manava da alma. A bôca, a mais
bela bôca que Undset já vira, tinha indefinível, atraente ar de
superioridade e desdém. Só se lembrava de ter tido emoção
semelhante aos dezoito anos. Seu sangue fluía, refluía à flor da
pele, inchava em suas veias. Perturbou-se, desviou a vista,
encontrou a de Lícia. Leve expressão de malícia brilhava nos olhos
e no sorriso da amiga. Lícia percebera o que se passava com Undset.
Mas não podia entendê-lo.
* * *
Tentou
por todos os meios reagir aos sentimentos que o invadiram. Ao nascer
do sol foi para a praia dos protestos de Lícia, não voltou às
lestas subseqüentes. Não precisou dizer-lhe a causa. Iícia
conhecia seus princípios de independência e paz e a ameaça que
agora pairava sôbre êles. Ela própria lhe confessara, ao sair da
festa:
—
Nunca vi mulher tão impressionantemente
bela!
Sabia
também que seu romance com Undset acabara. E quando a amiga da
lancha veio trazer- lhe uma carta do marido, aproveitou a ocasião
para ir-se. Undset ficou sozinho. E com êle, a aflição, a
angústia. Empenhou-se em trabalhos exaustivos. Nada adiantou. A
negra não lhe saía da cabeça. Frêmitos dum desejo dificilmente
contido fustigavam-no sem piedade. À noite, os toques de atabaque
chegavam num convite permanente. Seu sofrimento piorava.
* * *
—
Você há de pensar que pouco me custaria aproximar-me dela. Pelo
menos poderia ter tentado. Pensei nisso também. As mulheres não
tinham segredos para mim. Aquela, porém, me intimidava. Havia
qualquer coisa nela de distante e soberano, de frio e superior, que
tolhia meu ímpeto. Conversei com minha cozinheira. Descobri o que
lhe dava tanta dignidade. Não era uma simples “iaô”. Ao
contrário, era importante “ialorixá” e sua “casa” tinha
grande prestígio entre as demais. Estava ligada, portanto, a deveres
sagrados, além de qualquer sentimento estritamente pessoal.
* * *
As
festas acabaram-se. As comitivas desceram. Quando a de Matilde chegou
à praia, Undset adiantou-se, falou-lhe:
—
Será que nos encontraremos de novo?
Reparava
que à luz do dia, banhada de sol, era
ainda
mais linda. Os detalhes de seu rosto eram perfeitos. Um sorriso muito
leve entreabriu-lhe os lábios:
—
Quem sabe?
Foi
rápido o olhar que fixou em Undset. Foi um olhar, porém, que lhe
penetrou no fundo do ser. A mão que lhe estendeu não era macia nem
fria. Como faziam os outros homens com as outras mulheres, Undset
carregou-a, entrou nágua, colocou-a na pôpa do saveiro. Ela se foi
sem se voltar, erecta, muito séria, rodeada por sua côrte, o sol
nascente iluminando-a como a uma deusa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário