O leque de Oxum
Parte 2
A
caravana engrossada de várias famílias do povoado pôs-se a
caminho. Em fila indiana, vagarosa e compassada, deixamos o
arruamento, entramos na trilha feita a facão. Vegetação rica
nos ceicava, rebentando de fôrça e beleza. Coqueiros que iam ao
céu, penachos voando nos espaços, cajueiros esparramando-se no
chão, estercando as raízes com os próprios frutos, entontecendo o
ar com a resina, resina misturada ao cheiro da terra, terra que
virava em mangueiras, mangabeiras, araçàzeiros, explodindo
de viço, de frutos graúdos e coloridos. Samambaias
derramavam-se dos galhos, parasitas agarradas nos troncos, pintadas
de flôres exóticas. Lagoas negras, misteriosas, adornadas de
baronesas lilases. Fontes límpidas e claras, brotando água como se
fôsse leite. Cascatinhas cristalinas escorregavam pelas rochas
escuras, desfazendo-se entre as pedras-de- fogo, rutilando ao sol. E
do tope das colinas, panoramas estendiam-se, deslumbramentos de
côr e de luz, verdes e roxos da vegetação, brancos e amarelos
das praias, azuis, verdes e lilases do mar, azul- rei cromado no céu
sem nuvem. Cantos, côres e vida pulavam em redor: rubros
sangues-de-boi, canários de ouro, alvinegras lavadeiras de
Deus, cardeais de barrete purpúreo, bem-te-vis, sanhaços,
azulões, periquitos e beija-flôres.
—
Isto é de fato o paraíso — comentei comigo mesmo.
De
repente, numa volta do caminho, na descida do último morro, a
opulência cessava. Área dura e sêca, terra parda, poeirenta,
vegetação baixa, rala, de espinhos. Raros dendêzeiros lutando por
viver, um ou outro coqueiro entregue à morte, xiquexique humilhado
no chão. Urubus pairavam em vôos baixos, anuns pretos pousados
nos galhos pobres, petrificados. Vapores subiam do solo, o ar
parado, abafado. Comecei a suar, aquela mudança doendo-me como
uma agressão inesperada; e só melhorou com o milagre lá embaixo no
vale, da gigantesca e verdejante gameleira branca: “loko” —
pensei emocionado, fazendo como os outros, levando os dedos, da
terra à testa, num gesto de humildade.
O
barracão estendia-se sob a proteção da árvore sagrada, paredes
levantadas da própria terra, telhas também feitas da terra,
inclinadas em duas águas. Alguém nos vira, com pouco juntava-se
multidão na capoeira a nos esperar. Era a comitiva de um reino
chegando a outro reino. Uma rainha recepcionada por um rei.
Todos ajoelhavam-se à passagem de Mariana, beijavam sua mão que ela
concedia como um favor — “Bênção, minha mãe”, “Bênção,
minha mãe!” — rogos elevavam-se como o côro de uma cantiga, até
a “ialorixá” encontrar-se com o “ojé-agbá”.
* * *
0
barracão era vasto e fechado como um convento, de enorme salão
sem janela, centro do edifício ligado com o exterior por uma única
porta. Dossel de sêda azul, enfeitado de veludos e cetins, cobrindo
vários tronos ajaezados. À frente do dossel, rente à parede, um
banco comprido onde descansavam os atabaques, os agogôs, uma cabaça.
Contra a parede oposta, uma cadeira de braço, com o nome de
Mariana. Um largo espaço vazio, cimentado, à disposição
dos “babás” — se surgissem. O resto, para os fundos, era dos
crentes e assistentes: o lado esquerdo, bancos simples de
madeira, sem encosto, para os homens; o lado direito, esteiras para
as mulheres e crianças. E lá para dentro da construção, um
labirinto de saletas e camarinhas, onde se hospedavam as
famílias que chegavam. Já os preparativos da festa se ultimavam.
Grupos faziam a derradeira refeição. Gamelas de barro eram
servidas, moqueca de peixe com forófia de dendê, e abará,
acarajé, acaçá. Quartinhas de “aluá” quebravam os ardores da
pimenta. Por fim, o cafèzinho quente, temperado com rapadura.
O
sol se escondia, luxuosos lençóis de côres estiravam-se no
céu, foguetões subiam aos espaços. Os “babás” iam ser
chamados, os “eguns” poderiam derramar-se pela terra, a selva
vibraria de sons e vi- sagens, ninguém se atrevesse a cruzar os seus
caminhos. Toques de atabaques exigiam que todos entrassem.
A noite fechava-se sôbre a ilha. A escuridão cobria o
barracão. As estrêlas projetavam-se com nitidez. Entrei também.
Fifós
acesos espalhavam bruxuleante claridade, projetando sombras pelo
chão, pelos cantos, pelo teto. Os atabaques tornaram a bater, desta
vez com mais fôrça e ritmo. O “padê” iniciava-se. Mulheres
vestidas de branco, só branco, puseram-se a dançar em redor da
vela acesa, movimento de pernas, braços, mãos, ancas e cabeça
variando de acôrdo com o ritmo dos atabaques. Mulheres, mais de
cinqüenta, de torço, de bata, saia rodada, a pele negra ou
mulata destacando-se das roupas alvas. Velhas, adultas,
adolescentes, gordas, magras, altas, baixas, dançavam com
harmoniosa exatidão, graça e elegância. “Oh! Exu, mensageiro
entre os homens e os deuses, prote- gei-nos com sua interferência,
recomendai-nos aos
“eguns”;
que êles desçam em paz, tolerantes e sábios; impedi as
desavenças entre vossos servidores, propiciai alegria a todos e em
particular a esta festa feita com fé, amor, obediência.”
Terminado
o “padê”, os atabaques calaram-se. As mulheres sentaram-se. Os
alabês descansaram. Depois de pequeno intervalo começou uma
ladainha vibrante, puxada pelo “eiedun”, respondida pelo coral
dos homens e das mulheres. Era em dialeto africano, melodia em
“kêto”, de variações e tonalidades musicais
embevecedoras. Os atabaques soavam fracamente, em segundo plano.
Quando a ladainha se finou, ardente silêncio se fêz, a expectativa
reinou, era uma coisa física e palpável, tão respeitosa e
intocada que se ouvia lá fora o leve farfalhar da game- leira,
o serrar dos grilos, o coaxo de sapos perdidos no brejo. No interior
do barracão, entretanto, só o queimar das torcidas dos bibianos
arranhava a quietude ansiosa. Eu olhava as duzentas pessoas
acumuladas no salão, sem conforto nem trégua, vivendo
religiosamente, perigosamente, aquêle momento grave. E todos os
olhares se fixavam na única porta para o exterior, a respiração de
quatrocentos pulmões represada, os músculos e nervos esticados,
retesos, à espera, à espera.
Rumores
esquisitos fizeram todos ainda mais tensos. Sôbre a leve agitação
das fôlhas, dos sapos e dos grilos, ecoaram exclamações humanas,
grunhidos inumanos, corridas súbitas, chicotadas, lamentos,
gemidos. O “eiedun” ergueu-se e entoou vigoroso canto. Foi como o
estouro de uma reprêsa. Atabaques rugiram e duzentas vozes
retiniram, respondendo em côro. No atordoamento das vozes e dos
toques reboantes, oito homens em grupo, oito titãs pularam
de uma só vez para dentro da sala, batendo no chão varas longas e
flexíveis:
• Bogbô mariwô delewô — bramia o “ojé lesé egum”.
• Rei! rei! rei! — respondiam os oito homens, tonitruantes.
• Etielerió! Etielerió! Etielerió! Ero!. . . Ero!... —
cantavam as filhas mais velhas da seita.
• Iyá! Iyá! Iyá! Oôô!... — respondiam as demais.
Ainda
bem não me refizera da surpresa com a entrada brusca dos “ojés”,
outra maior assaltou-me: entre êles havia um que era branco de
cabelos louros, branco de olhos azuis.
Julgava-me
preparado para tudo naquela noite, para tôdas as manifestações
fantásticas de fé, de fanatismo até o paroxismo. Jamais
esperara encontrar num povoado de negros, entre os sacerdotes dum
legítimo culto negro, um homem branco e louro, um estrangeiro
europeu como “ojé” de “babá”, dançando, cantando,
falando “kêto”.
À
luz dos bibianos êle me parecia como um deus. E tinha a estampa de
um deus, o rosto duma nobreza serena, os traços duma perfeição
excepcional, o corpo belo e vigoroso, as espáduas largas,
cinlura (' quadris estreitos, braços possantes, músculos u ílor da
pele fremindo e revelando-se a qualquer movimento.
Com
a mesma subitaneidade que haviam surgido, cinco “ojés”, o
branco inclusive, desapareceram porta afora. Ficaram três a
guarnecer o salão. Um prolongado grito chegou aos meus ouvidos. O
“eiedun” fêz um gesto. O mesmo silêncio de antes, opressivo e
elétrico, reinou. Os “ojés” deixaram livre o caminho da porta e
esperaram. Apertavam convulsivamente as varas que traziam. Suave
farfalhar de sêdas aproximavam-se. Alguma coisa estava prestes
a acontecer — pensava eu, sabiam todos, olhos arregalados,
respiração suspensa, coração acelerado. E aconteceu. Uma figura
estranhíssima — se é lícito chamar “aquilo” de figura —
vinha chegando, mansamente, confiadamente. Passou pela porta sem se
abaixar. E dentro da sala eu vi assombrado que sua altura ia até as
vigas que sustentavam o telhado!
De
humano só se via os pés, calçados com sapatos exóticos. E exótica
roupagem cobria-o, mistura caótica de veludos, sêdas, cetins,
bordados, espelhos, vidrilhos, contas, numa profusão indescritível
de côres, de formas e reflexos. No silêncio de cemitério,
circulou pelo espaço vazio deixado pelos “ojés”. Não
parecia andar. Flutuava. Os atabaques voltaram a bramir: e o “babá”
pôs-se a dançar com impressionante vigor e soberba
masculinidade. Dançou muito. Sua energia parecia inesgotável.
Finalmente parou. Os atabaques, obedientes, pararam. Mansamente
como entrara o “babá” flutuou até o dossel,
sentou-se
num trono e dali pôs-se a articular sons, para mim ininteligíveis,
que o “eiedun” ou a “ialorixá” iam decifrando para
todos ou, se era o caso, para cada pessoa em particular.
* * *
Depois
dêste vieram mais sete “babás”. Até o “Babá-Olukotum”
dignou-se a comparecer. Era o rei de todos e a todos suplantava em
luxo e extravagância de roupas, na viril sobriedade de danças
e extrema doçura ao falar. Há trinta anos não descia na Bahia. E
estrondosas ovações o acolheram, foguetes estouraram no
espaço, os atabaques, os agogôs, vibraram com furiosa alegria,
todos se rojaram aos seus pés, tocando a testa no chão, suplicando
sua bondade, sua magnanimidade, sua bênção:
—
Axé Babá!
Tôda
a noite, tôda a madrugada, em conjunto ou isoladamente, os “babás”
permaneceram em nossa companhia, dançando, conversando,
resolvendo casos, dando conselhos judiciosos, reclamando coisas
erradas, no meio de comovente adoração. Eu sentia, emocionado, a
atmosfera de fé absoluta, mas sem angústia, sem sofrimento, uma fé
plena de euforia. E sem pestanejar, sem cochilar, sentando,
ajoelhando-se, ficando de pé, passamos doze horas seguidas, a
atenção prêsa ao cerimonial. E só quando o sol nasceu, quando sua
claridade penetrou pelas frestas do telhado, o último “babá” se
foi.
Os
“ojés” também se retiraram. “Rum”, “rumpi”, “lé”,
emudeceram. O “eiedun” da “casa” recolheu-se. Mariana
também. Erguemo-nos. Saí com os outros para a luz do dia,
espreguiçando os ossos que estalavam. Os caminhos molhados de
sereno ofereciam-se, puros e inocentes. Fui caminhando à
toa, esticando os músculos cansados. Adiante achei uma fontinha
gelada, mergulhei a cabeça, lavei o rosto. Galos cantavam muito
distantes, um ou outro pássaro piava. Deitei-me no chão, a cabeça
apoiada nas mãos, o olhar no céu que se tingia de rosas e amarelos.
Meus pensamentos perdiam-se no tempo e no espaço em confusas
reflexões sôbre os mistérios além de nós mesmos, nos desígnios
das forças imponderáveis.
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