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segunda-feira, novembro 25, 2019

O leque de Oxum Parte 2

O leque de Oxum

Parte 2


Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961
(...continuação da parte 1)
A caravana engrossada de várias famílias do povoado pôs-se a caminho. Em fila indiana, vaga­rosa e compassada, deixamos o arruamento, entra­mos na trilha feita a facão. Vegetação rica nos ceicava, rebentando de fôrça e beleza. Coqueiros que iam ao céu, penachos voando nos espaços, cajueiros esparramando-se no chão, estercando as raízes com os próprios frutos, entontecendo o ar com a resina, resina misturada ao cheiro da terra, terra que vira­va em mangueiras, mangabeiras, araçàzeiros, explo­dindo de viço, de frutos graúdos e coloridos. Samam­baias derramavam-se dos galhos, parasitas agarradas nos troncos, pintadas de flôres exóticas. Lagoas ne­gras, misteriosas, adornadas de baronesas lilases. Fontes límpidas e claras, brotando água como se fôsse leite. Cascatinhas cristalinas escorregavam pe­las rochas escuras, desfazendo-se entre as pedras-de- fogo, rutilando ao sol. E do tope das colinas, pano­ramas estendiam-se, deslumbramentos de côr e de luz, verdes e roxos da vegetação, brancos e amare­los das praias, azuis, verdes e lilases do mar, azul- rei cromado no céu sem nuvem. Cantos, côres e vida pulavam em redor: rubros sangues-de-boi, ca­nários de ouro, alvinegras lavadeiras de Deus, car­deais de barrete purpúreo, bem-te-vis, sanhaços, azu­lões, periquitos e beija-flôres.

— Isto é de fato o paraíso — comentei comigo mesmo.

De repente, numa volta do caminho, na desci­da do último morro, a opulência cessava. Área dura e sêca, terra parda, poeirenta, vegetação baixa, rala, de espinhos. Raros dendêzeiros lutando por viver, um ou outro coqueiro entregue à morte, xiquexique humilhado no chão. Urubus pairavam em vôos bai­xos, anuns pretos pousados nos galhos pobres, petri­ficados. Vapores subiam do solo, o ar parado, aba­fado. Comecei a suar, aquela mudança doendo-me como uma agressão inesperada; e só melhorou com o milagre lá embaixo no vale, da gigantesca e verde­jante gameleira branca: “loko” — pensei emocio­nado, fazendo como os outros, levando os dedos, da terra à testa, num gesto de humildade.

O barracão estendia-se sob a proteção da árvore sagrada, paredes levantadas da própria terra, telhas também feitas da terra, inclinadas em duas águas. Alguém nos vira, com pouco juntava-se multidão na capoeira a nos esperar. Era a comitiva de um reino chegando a outro reino. Uma rainha recepcio­nada por um rei. Todos ajoelhavam-se à passagem de Mariana, beijavam sua mão que ela concedia como um favor — “Bênção, minha mãe”, “Bênção, minha mãe!” — rogos elevavam-se como o côro de uma cantiga, até a “ialorixá” encontrar-se com o “ojé-agbá”.

* * *

0 barracão era vasto e fechado como um con­vento, de enorme salão sem janela, centro do edifício ligado com o exterior por uma única porta. Dossel de sêda azul, enfeitado de veludos e cetins, cobrindo vários tronos ajaezados. À frente do dossel, rente à parede, um banco comprido onde descansavam os atabaques, os agogôs, uma cabaça. Contra a parede oposta, uma cadeira de braço, com o nome de Ma­riana. Um largo espaço vazio, cimentado, à dispo­sição dos “babás” — se surgissem. O resto, para os fundos, era dos crentes e assistentes: o lado esquer­do, bancos simples de madeira, sem encosto, para os homens; o lado direito, esteiras para as mulhe­res e crianças. E lá para dentro da construção, um labirinto de saletas e camarinhas, onde se hospeda­vam as famílias que chegavam. Já os preparativos da festa se ultimavam. Grupos faziam a derradeira refeição. Gamelas de barro eram servidas, moque­ca de peixe com forófia de dendê, e abará, acarajé, acaçá. Quartinhas de “aluá” quebravam os ardores da pimenta. Por fim, o cafèzinho quente, tempera­do com rapadura.

O sol se escondia, luxuosos lençóis de côres es­tiravam-se no céu, foguetões subiam aos espaços. Os “babás” iam ser chamados, os “eguns” poderiam derramar-se pela terra, a selva vibraria de sons e vi- sagens, ninguém se atrevesse a cruzar os seus ca­minhos. Toques de atabaques exigiam que todos en­trassem. A noite fechava-se sôbre a ilha. A escuri­dão cobria o barracão. As estrêlas projetavam-se com nitidez. Entrei também.

Fifós acesos espalhavam bruxuleante claridade, projetando sombras pelo chão, pelos cantos, pelo teto. Os atabaques tornaram a bater, desta vez com mais fôrça e ritmo. O “padê” iniciava-se. Mulheres vesti­das de branco, só branco, puseram-se a dançar em redor da vela acesa, movimento de pernas, braços, mãos, ancas e cabeça variando de acôrdo com o ritmo dos atabaques. Mulheres, mais de cinqüenta, de tor­ço, de bata, saia rodada, a pele negra ou mulata des­tacando-se das roupas alvas. Velhas, adultas, adoles­centes, gordas, magras, altas, baixas, dançavam com harmoniosa exatidão, graça e elegância. “Oh! Exu, mensageiro entre os homens e os deuses, prote- gei-nos com sua interferência, recomendai-nos aos

“eguns”; que êles desçam em paz, tolerantes e sá­bios; impedi as desavenças entre vossos servidores, propiciai alegria a todos e em particular a esta fes­ta feita com fé, amor, obediência.”

Terminado o “padê”, os atabaques calaram-se. As mulheres sentaram-se. Os alabês descansaram. Depois de pequeno intervalo começou uma ladainha vibrante, puxada pelo “eiedun”, respondida pelo coral dos homens e das mulheres. Era em dialeto africano, melodia em “kêto”, de variações e tonalida­des musicais embevecedoras. Os atabaques soavam fracamente, em segundo plano. Quando a ladainha se finou, ardente silêncio se fêz, a expectativa reinou, era uma coisa física e palpável, tão respeitosa e in­tocada que se ouvia lá fora o leve farfalhar da game- leira, o serrar dos grilos, o coaxo de sapos perdidos no brejo. No interior do barracão, entretanto, só o queimar das torcidas dos bibianos arranhava a quietude ansiosa. Eu olhava as duzentas pessoas acumuladas no salão, sem conforto nem trégua, vi­vendo religiosamente, perigosamente, aquêle mo­mento grave. E todos os olhares se fixavam na única porta para o exterior, a respiração de quatrocentos pulmões represada, os músculos e nervos esticados, retesos, à espera, à espera.

Rumores esquisitos fizeram todos ainda mais tensos. Sôbre a leve agitação das fôlhas, dos sapos e dos grilos, ecoaram exclamações humanas, grunhidos inumanos, corridas súbitas, chicotadas, lamen­tos, gemidos. O “eiedun” ergueu-se e entoou vigoroso canto. Foi como o estouro de uma reprêsa. Ataba­ques rugiram e duzentas vozes retiniram, responden­do em côro. No atordoamento das vozes e dos to­ques reboantes, oito homens em grupo, oito titãs pu­laram de uma só vez para dentro da sala, batendo no chão varas longas e flexíveis:

• Bogbô mariwô delewô — bramia o “ojé lesé egum”.

• Rei! rei! rei! — respondiam os oito homens, tonitruantes.

• Etielerió! Etielerió! Etielerió! Ero!. . . Ero!... — cantavam as filhas mais velhas da seita.

• Iyá! Iyá! Iyá! Oôô!... — respondiam as demais.

Ainda bem não me refizera da surpresa com a entrada brusca dos “ojés”, outra maior assaltou-me: entre êles havia um que era branco de cabelos lou­ros, branco de olhos azuis.

Julgava-me preparado para tudo naquela noite, para tôdas as manifestações fantásticas de fé, de fa­natismo até o paroxismo. Jamais esperara encontrar num povoado de negros, entre os sacerdotes dum le­gítimo culto negro, um homem branco e louro, um estrangeiro europeu como “ojé” de “babá”, dançan­do, cantando, falando “kêto”.

À luz dos bibianos êle me parecia como um deus. E tinha a estampa de um deus, o rosto duma nobreza serena, os traços duma perfeição excepcio­nal, o corpo belo e vigoroso, as espáduas largas, cinlura (' quadris estreitos, braços possantes, músculos u ílor da pele fremindo e revelando-se a qualquer movimento.

Com a mesma subitaneidade que haviam sur­gido, cinco “ojés”, o branco inclusive, desaparece­ram porta afora. Ficaram três a guarnecer o salão. Um prolongado grito chegou aos meus ouvidos. O “eiedun” fêz um gesto. O mesmo silêncio de antes, opressivo e elétrico, reinou. Os “ojés” deixaram livre o caminho da porta e esperaram. Apertavam con­vulsivamente as varas que traziam. Suave farfalhar de sêdas aproximavam-se. Alguma coisa estava pres­tes a acontecer — pensava eu, sabiam todos, olhos arregalados, respiração suspensa, coração acelerado. E aconteceu. Uma figura estranhíssima — se é lí­cito chamar “aquilo” de figura — vinha chegando, mansamente, confiadamente. Passou pela porta sem se abaixar. E dentro da sala eu vi assombrado que sua altura ia até as vigas que sustentavam o telhado!

De humano só se via os pés, calçados com sapatos exóticos. E exótica roupagem cobria-o, mistura caó­tica de veludos, sêdas, cetins, bordados, espelhos, vidrilhos, contas, numa profusão indescritível de côres, de formas e reflexos. No silêncio de cemitério, cir­culou pelo espaço vazio deixado pelos “ojés”. Não parecia andar. Flutuava. Os atabaques voltaram a bramir: e o “babá” pôs-se a dançar com impres­sionante vigor e soberba masculinidade. Dançou muito. Sua energia parecia inesgotável. Finalmen­te parou. Os atabaques, obedientes, pararam. Man­samente como entrara o “babá” flutuou até o dossel,

sentou-se num trono e dali pôs-se a articular sons, para mim ininteligíveis, que o “eiedun” ou a “ialo­rixá” iam decifrando para todos ou, se era o caso, para cada pessoa em particular.

* * *

Depois dêste vieram mais sete “babás”. Até o “Babá-Olukotum” dignou-se a comparecer. Era o rei de todos e a todos suplantava em luxo e extra­vagância de roupas, na viril sobriedade de danças e extrema doçura ao falar. Há trinta anos não descia na Bahia. E estrondosas ovações o acolheram, fo­guetes estouraram no espaço, os atabaques, os ago­gôs, vibraram com furiosa alegria, todos se rojaram aos seus pés, tocando a testa no chão, suplicando sua bondade, sua magnanimidade, sua bênção:

— Axé Babá!

Tôda a noite, tôda a madrugada, em conjunto ou isoladamente, os “babás” permaneceram em nos­sa companhia, dançando, conversando, resolvendo casos, dando conselhos judiciosos, reclamando coisas erradas, no meio de comovente adoração. Eu sentia, emocionado, a atmosfera de fé absoluta, mas sem angústia, sem sofrimento, uma fé plena de euforia. E sem pestanejar, sem cochilar, sentando, ajoelhan­do-se, ficando de pé, passamos doze horas seguidas, a atenção prêsa ao cerimonial. E só quando o sol nasceu, quando sua claridade penetrou pelas frestas do telhado, o último “babá” se foi.

Os “ojés” também se retiraram. “Rum”, “rumpi”, “lé”, emudeceram. O “eiedun” da “casa” re­colheu-se. Mariana também. Erguemo-nos. Saí com os outros para a luz do dia, espreguiçando os ossos que estalavam. Os caminhos molhados de se­reno ofereciam-se, puros e inocentes. Fui caminhan­do à toa, esticando os músculos cansados. Adiante achei uma fontinha gelada, mergulhei a cabeça, la­vei o rosto. Galos cantavam muito distantes, um ou outro pássaro piava. Deitei-me no chão, a cabeça apoiada nas mãos, o olhar no céu que se tingia de rosas e amarelos. Meus pensamentos perdiam-se no tempo e no espaço em confusas reflexões sôbre os mistérios além de nós mesmos, nos desígnios das for­ças imponderáveis.

* * *
 Parte 3

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