O leque de Oxum
Parte 4
Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961
ERA uma emprêsa gráfica, especializava-se em livros de arte. Êle, o irmão e o pai, dirigindo os operários, controlando máquinas, debruçados ansiosamente na impressora, aguardando as estampas, comparando-as, examinando-as, consumindo-se. “A Pintura Egípcia”, “A Pintura Etrusca”, “A Pintura Bizantina”, “História da Pintura Italiana”, “Os Criadores da Renascença”, “História da Pintura Moderna”, “Leonardo da Vinci”, “Rembrandt”, “Picasso”. Eram edições de luxo, belas e requintadas. Os melhores críticos da Europa prefaciavam-nas. As reproduções aproximavam-se quase milagrosamente dos originais. O negócio corria próspero. Veio, porém, a Segunda Guerra. A Suécia permaneceu neutra. Mas a emprêsa perdeu mercado, o consumo interno não compensava os gastos, a falência aproximou-se. O jovem Undset era antinazista por convicção, embarcou para a Inglaterra. Estêve em Dunquerque e participou do dia D. Sentiu a guerra na carne, na alma, no pensamento. Foi ferido, hospitalizado, morre-não-morre, escapou. A guerra, o hospital, expulsaram-no da Europa. Achava que não poderia viver mais na Europa, na Suécia, fazendo ginástica no ginásio, curvando-se sôbre a impressora, mandando nos operários, economizando dinheiro, medindo salários, obrigando horários, tempo para trabalho, para almoço, para raciocinar, para amar.
ERA uma emprêsa gráfica, especializava-se em livros de arte. Êle, o irmão e o pai, dirigindo os operários, controlando máquinas, debruçados ansiosamente na impressora, aguardando as estampas, comparando-as, examinando-as, consumindo-se. “A Pintura Egípcia”, “A Pintura Etrusca”, “A Pintura Bizantina”, “História da Pintura Italiana”, “Os Criadores da Renascença”, “História da Pintura Moderna”, “Leonardo da Vinci”, “Rembrandt”, “Picasso”. Eram edições de luxo, belas e requintadas. Os melhores críticos da Europa prefaciavam-nas. As reproduções aproximavam-se quase milagrosamente dos originais. O negócio corria próspero. Veio, porém, a Segunda Guerra. A Suécia permaneceu neutra. Mas a emprêsa perdeu mercado, o consumo interno não compensava os gastos, a falência aproximou-se. O jovem Undset era antinazista por convicção, embarcou para a Inglaterra. Estêve em Dunquerque e participou do dia D. Sentiu a guerra na carne, na alma, no pensamento. Foi ferido, hospitalizado, morre-não-morre, escapou. A guerra, o hospital, expulsaram-no da Europa. Achava que não poderia viver mais na Europa, na Suécia, fazendo ginástica no ginásio, curvando-se sôbre a impressora, mandando nos operários, economizando dinheiro, medindo salários, obrigando horários, tempo para trabalho, para almoço, para raciocinar, para amar.
O
mundo chamava-o. Depois do armistício atirou-se pelo mundo. Entregou
ao irmão sua parte da indústria que de novo tomava fôlego. Viajou
como piloto dum navio cargueiro. Foi assim que aportou na Bahia.
Os
dez dias que o navio demorou-se no cais, fizeram-no decidir-se. A
cidade do Salvador penetrou- lhe até a medula. O navio se foi,
Undset ficou. A cidade tinha um sortilégio que o enfeitiçou.
Encantado, descobria a cidade, engolfava-se em seu mistério. Era uma
vida ociosa, deliciosa, boêmia. Noites nos cabarés, envolvido com
mulheres, brigando com marinheiros, comendo sarapatéis nas Sete
Portas. Noites vagabundando pelos labirintos do Pelourinho, com
outras mulheres, subindo escadas gementes, bebendo e amando,
purificando-se na primeira missa da igreja de São Francisco. Dias
perambulando pela cidade, pelos seus becos e ladeiras, por suas
praias, por suas ruínas, pelos seus trapiches. Dinheiro acabou, êle
se arranjou nas Docas, na carga e descarga dos navios, comendo nas
barracas do Mercado Modelo, dormindo nos molhes das pontes ou no
quarto duma amiga reconhecida.
A
carta veio sem êle esperar. Era do irmão que o chamava à Suécia.
Conseguira equilibrar a firma. Undset negou-se. O irmão insistiu: se
não queria continuar sócio, tinha direito a retirar sua parte.
E
com um cheque que era uma fortuna, vinham os papéis do distrato. A
primeira coisa que Undset fêz foi tão grande farra que ficou nos
anais do Tabaris. A segunda, comprou um saveiro, pequeno, leve, ágil,
veloz, de vela pena e fácil manejo. Então a baía de Todos os
Santos passou a ser sua. Deixava seu destino ao sabor dos ventos. Os
ventos, um dia, levaram- no a “Barro Vermelho”. O preço pedido
pela peque¬na fazenda, êle o pagou sem regatear. Comprou também um
grande saveiro de carga. Reformou a casa ao seu gôsto.
—
E aqui sentei praça, como o povo costuma dizer. Como você vê, uma
história banal, sem drama nem mistério. A história de um homem
simples que por acaso realizou o seu mais caro sonho da juventude,
identificando-se com a beleza da natureza, o amor com as mulheres e a
paz entre os homens.
Undset
calou-se, balançava-se na rêde, o charuto prêso aos dentes. Eu lhe
havia pedido para contar como chegara até a Bahia. E ouvi-o com
inusitado interêsse, procurando recompor, apesar de seu laconismo e
modéstia, como realmente teria sido a sua vida, perigosa e
aventurosa, que êle dizia banal, sem drama ou mistério. A tarde
quebrava-se, e, do mar, a brisa soprava mais forte. A maré baixava,
a praia tornava-se mais larga, mais alva, como um lençol bem lavado,
estirado a secar. Ao longe, as outras ilhas da baía recortavam-se no
firmamento. Diversos foguetes espoucaram. A cozinheira, mãe da jovem
que nos servira, aproximou-se:
—
Nós já vamos, seu Undset.
Êle
respondeu:
—
Diga ao pessoal que subirei já.
A
mulher saiu. Undset jogou fora a baga do charuto:
—
Vamos subir? A festa recomeçará daqui a uma hora.
Eu
não sabia da repetição da festa:
—
Por quantas noites se prolongará?
—
Desta vez, cinco. Apenas.
—
“Apenas”?
—
Está surpreendido?
—
Desde que cheguei não paro de surpreender-me.
—
Às vêzes, a festa se estende por quinze noites.
—
Quinze noites? Seguidas? Dançando, cantando, tocando,
emocionando-se, sem dormir, sem poder sequer cochilar?
—
É a regra.
—
Que energia possui esta gente!
—
E considere que todos têm obrigações diárias: são saveiristas,
simples marinheiros, pescadores, trabalhadores noutras fazendas,
quitandeiros. . . E as mulheres têm de lavar, cozinhar, cuidar das
crianças. . .
Undset
começou a fechar portas e janelas.
—
Por que tanto cuidado? — indaguei. — Ladrões?
—
Não há ladrões aqui — respondeu. — São as tempestades. Caem
às vêzes sem que as esperemos e estragam tudo.
* * *
Saímos
de casa, tomamos o caminho do barracão. Pedi-lhe para passarmos pela
fonte de Oxum. O perfume das rosas maduras, com a suavidade do
crepúsculo, enchia o ar. Pétalas de acácia haviam tombado sôbre a
água espelhante e a enfeitara de ouro. O poço tão limpo pela
manhã, tão transparente, ganharia impenetráveis tons de veludo
azul. Sôbre a pedra que luzia, continuava ali, desafiando minha
imaginação, enchendo minha cabeça de fantasia, símbolo de
mistério e de amor, o leque gracioso da deusa das fontes.
* * *
Depois
que comprara o coqueiral, dera duro no trabalho. Estava quase em
abandono, tinha muito o que fazer. Empregara dois homens. Com êles,
consertara cêrcas, limpara o terreno do mato daninho, curara
coqueiros doentes. Aprendeu a subir pelos longos caules com o auxílio
dum cinturão de corda; e êle próprio, facão na mão, podava
folhas, derrubava côcos. No correr das cêrcas plantara os hibiscos,
cujas flores finas, róseas ou vermelhas, subiam a co¬lina.
Organizara a horta. E, no pomar, revivescera tudo, acrescentara
outros enxertos. Mesmo depois de reorganizar a fazendinha, sempre
estava à frente do serviço. Amava o trabalho violento e através do
trabalho afastava a moleza espiritual e a degenerescência física.
Também
êle próprio ia vender o côco recolhido. Enchia o saveiro grande,
tomava o leme e, com os dois empregados cuidando das velas e do
cordame, embicava para Água de Meninos ou o Mercado Modelo. Logo
achava comprador. Com o dinheiro no bôlso tomava uns goles na
barraca do Teles, comia as moquecas de Arlinda ou Maria de São
Pedro, dava um giro pelas ladeiras, pelas igrejas da cidade, visitava
livrarias, gastava o resto do tempo visitando mulheres.
Ao
retornar à “sua” ilha, imergia no trabalho, em leituras
noturnas, esportes. Nadava e mergulha¬va como um peixe. Caçava
quando tinha notícia de alguma capivara destruindo plantações, de
alguma paca entocada no mato. Mas preferia a pesca, não só pela
emoção, como também pela maior intimidade do mar e pelo pretexto
de vagabundar em seu saveirinho pelas ilhas vizinhas. E explorava os
rios, grandes ou pequenos, que desembocavam na baía de Todos os
Santos.
* * *
Passamos
sua cêrca. Começamos a subir o morro. Undset ia falando, sem
grandiloqüência, naturalmente, enquanto andava. Às vêzes
interrompia- se, parava, receando incomodar-me, como se sua vida não
me interessasse. Mas eu continuava a provocá-lo.
—
Outro fato que vai surpreendê-lo — disse- me, pousando a mão
sôbre meu ombro, — apesar de tôda a identificação com a terra,
não admitia intimidades com o povo daqui. Entenda-me: não era
preconceito racial ou social. Era uma maneira de defender meu
isolamento. Dava-me bem com todos. Mas superficialmente. Nas coisas
neutras, impessoais, eu os servia como êles poderiam me servir.
Vivíamos, aliás como até hoje, no maior res¬peito mútuo. Mas
houve um choque. Provocado por sua religião.
—
Não diga! — exclamei.
—
Eu já tinha ouvido, ocasionalmente, da bôca de alguns dêles,
quando viajávamos juntos, de casos dos “eguns”. Achava pitoresca
e mesmo linda, sua adoração pelos “babás”. De certo modo
divertia-me com a fertilidade de suas imaginações e com o
primitivismo de suas crenças. Não pensei contudo que viesse
sentir-me incomodado por elas. Aconteceu a primeira festa. Os
preparativos não deixaram de despertar minha curiosidade. Saveiros
chegavam cheios de gente. Caravanas desciam na praia, de roupas
vistosas, subiam a colina. À noite, os atabaques entraram em ação.
Dez noites seguidas, do crepúsculo à aurora, os atabaques rugiam
com peque¬nos intervalos. Você pode imaginar o meu desespêro? A
direção do vento, com o desaparecimento do sol, muda completamente.
E o vento trazia o toque bárbaro, trazia-o até minha casa, até
dentro de meu quarto, soltava-o em meus ouvidos, com furor, sem
piedade. Compreendi então por que o dono do coqueiral vendera-no tão
rapidamente. O paraíso que eu julgara ter encontrado não passava
dum inferno. Estava quebrado o encanto de seu intocado silêncio.
Remoendo minha decepção, atormentado pelo fracasso, saí no
saveirinho em busca doutro lugar. Mas em nenhuma dessas ilhas
encontrei as qualidades da minha. Resolvi aceitar a situação.
Consolou-me o fato de ser curto o período de festa. Com o correr do
tempo a elas me acostumei como me habituara com as tempestades.
* * *
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