O leque de Oxum
Parte 3
Voltei
repousado ao barracão. Na saleta reservada a Mariana, a
“ialorixá” tinha pôsto a mesa. Cuscuz de tapioca, pamonha de
puba, beijus, banana cozida. Agradeci-lhe seus favores, a viagem, a
ilha, a festa, aquele gordo café.
—
Bondade sua! — ela respondeu, esquivando- se aos elogios, com
modéstia sincera. Agora você precisa dormir. Deve estar cansado. Já
providenciei sua dormida.
Olhei
em redor à cata duma esteira, rêde ou cama. Mariana surpreendeu meu
olhar, tranqüilizou-me:
• Você vai dormir na beira da praia. Na casa de Undset.
• Undset? — e lembrei-me do “ojé” louro.
• Êle tem um coqueiral lá embaixo.
• Quem é êste homem?
• Um estrangeiro. Um sueco. Mora na ilha há muitos anos.
• Que coisa estranha!. . .
Ela
sorriu:
• Que é estranho? Êle nada tem de estranho. É um homem como
outro qualquer, como qualquer dêsses negros ou mulatos.
• Não, não é isso que quero dizer.. . — balbuciei
temendo tê-la ofendido.
• Sei o que você quer dizer: achou estranho um homem louro, um
branco legítimo, um europeu fazer parte de nossa religião, religião
de africano, de negro.
Fiquei
ainda mais constrangido pela observação. Era exata. Procurei
desculpar minha besteira. Mariana, porém, não se ofendera:
• Não se preocupe, meu filho. Eu também em seu lugar acharia
isto muito estranho. E coisas realmente estranhas contribuíram
para Undset ser um dos nossos.
A
conversa tomava rumo apaixonante. Mas não pude alimentá-la. Undset
chegava. Mariana apresentou-nos. À luz do dia, nas
circunstâncias normais, vestido como eu, falando português, já
não me parecia tão excepcional nem tão exótico. Mas pude reparar
que êle não demonstrava o mínimo cansaço.
Como
se seus nervos fôssem de aço. Conversaram os dois sôbre fatos da
noite passada. Comia com apetite. Levantou-se, chamou-me. Saímos
do barracão e retornamos à praia. Duma colina enveredamos por um
atalho. Esbarramos numa cêrca viva de hibiscos. Undset afastou
a folhagem, me deu passagem. Penetramos em seu coqueiral.
Acordei
ao meio-dia. Fôra um sono como há mais de dez anos não
experimentara: profundo, pesado, reparador. Levantei-me, saí do
quarto, dei na varanda. Numa rêde, Undset estendia-se. Tentou
levantar-se. Não o permiti.
• Que prefere agora? — perguntou-me. — Almoço ou banho?
O
mar estendia-se pouco abaixo do coqueiral, muito manso, muito azul. O
sol a pino levantava incêndios na água clara.
• Um banho antes, seria ideal.
• De mar, fonte ou cascata?
Era
muito luxo para um paulista acostumado só a chuveiro:
• Primeiro, de mar. Depois tiraremos a sorte.
Ele
já estava de calção. Vesti o meu. Fomos
para
a praia. A areia fôfa, morna e fina acolheu- nos. Ficamos
voluptuosamente derreados, gozando na carne a calidez do sol. Caímos
nágua. Undset nadava como um peixe. Depois de algumas braçadas,
parei ofegante, fiquei a apreciá-lo; fazia circunvoluções,
mergulhava, deslizava na superfície, identificado com o mar.
• Esta vida é engraçada — falei quando êle se deixou também
ficar boiando, submerso até o pescoço: minha profissão é
corretagem de imóveis. Compro terrenos baldios, trabalho-os,
lotei-os, encho-os de casas, edifícios, gente. Nunca, porém,
cometeria o crime de meter um trator nesta ilha, de transformar
êste paraíso num inferno humano.
Undset
sorriu alegremente:
• Também penso assim. Quando aqui cheguei meu entusiasmo
foi igual ao seu.
• A diferença — objetei — é que você o descobriu
antes de mim. Confesso-lhe que, pela primeira vez, sinto inveja de
outro homem. Gostaria de morar aqui, de viver esta vida. Em vez
disso continuo a vegetar num apartamento rodeado de apartamentos
por todos os lados.
• É preciso coragem para abdicar do conforto, do progresso.
Sempre fui contra o progresso que nos afaste da natureza. Para mim,
de certo modo, foi fácil a escolha. Aqui mesmo quero morrer, e,
embora nunca pense nisso com tristeza, já escolhi onde vou ser
sepultado.
Subitamente
mudou de conversa:
• Estou com uma fome danada. Vamos comer?
* * *
Construção
simples, paredes de tijolos sôbre alvenaria de pedra bruta.
Telhado em duas águas, beirais salientes, sombreando a varanda larga
que
rodeava
a casa. Uma sala, três quartos, biblioteca, banheiro, copa, cozinha,
tudo bem grande, bem amplo, cheio de luz, varrido de vento. Janelas
abertas, rêdes estendidas, cortinas de cordas, de fieiras de
contas, mobília essencial, peças de vinhático e jacarandá,
sem rigor de estilo. Arcas e santuários, imagens católicas de sabor
primitivo, um Gauguin e outro Van Gogh autênticos. No resto das
paredes, emblemas de candomblé.
Tomamos
duas cachacinhas puras, saímos em busca da fonte de água doce.
Andamos sob coqueiros. Galinhas ciscavam livres, saqués gemiam
aos bandos, uma esquadrilha de pombos ficou a esvoaçar em tôrno
da cabeça de Undset. Tínhamos andado uns duzentos metros
quando estaquei, agradàvelmente surpreendido. O quadro ante
meus olhos era maravilhoso. Primeiro destacava-se, florido e viçoso,
o pé de acácia. Estava carregado de flôres e opulentos cachos
dourados chegavam ao chão. No chão, de areia alva, abria-se o poço.
Era muito fundo mas transparente. Refletia todo o ouro das flôres
que se debruçavam em seu espelho. Formava um círculo irregular e
alimentava-se do âmago da terra e de uma fonte de água límpida
que, gôta a gôta, escorria pela folhagem densa e selvagem de
parasitas. Os pingos caíam mansamente sem perturbar sua serenidade.
Roseiras de pontudos espinhos, de rosas rubras explodindo de
beleza, rodeavam a fonte. Uma pedra negra, lisa, luzidia, emergia
perto da margem. E sôbre a pedra, faiscando ao sol, um leque
amarelo, de ouro maciço.
• É aqui o banho doce? — inquiri, antegozando aquela
pureza, aquele frescor.
• Não — disse Undset. — Há dois anos ninguém toma
banho nesta fonte.
• Algum tabu?
Êle
não respondeu diretamente à minha pergunta:
• É a fonte de Oxum — disse simples, sêca- mente.
* * *
“Batidas”
de cachaça com limão, catuaba, pitanga. Salada de lagosta
viva, arroz-de-auçá, vatapá, moqueca de siri-mole, frigideira
de camarão fresco, ein louça de Limoges, com talheres brasonados.
Água de côco verde no próprio côco, um velho vinho branco em
cristal Fratelli Vita. E mangas de Itaparica, abius, sapotis,
melancias. Cumbucas de araçá, doce de caju. Sôbre a toalha
imaculada, o jarro popular onde brotavam flôres silvestres. A
negrinha nova, bonita e risonha servia-nos com perfeição.
Depois,
a varanda de brisa gostosa, o cafèzinho, a cachacinha final. O
abraço da rêde, o fumo puro do “Suerdieck”, os olhos
perdendo-se no azul profundo do céu tão próximo. O sangue
mornando, a memória perdendo-se, as pálpebras quebrando-se,
músculos evanescendo-se. E a rêde elevando-se por artes de mágica,
negrinhas esbeltas de sorriso branco, mãos de carícias
levando-me à fonte. Embaixo da chuva de acácias, dançavam negras delgadas, miravam-se na água, engrinaldavam-se de rosas, cantavam cantigas maviosas e doces. E do fundo do poço, tão longínqua, diáfana, subia Oxum que o arco-íris coroava. E as negrinhas cantavam, davam- se as mãos; em redor de Oxum, tôdas giravam. Sentada na pedra, Oxum se abanava, do fundo da fonte música evolava. Dos céus, entretanto, roncou o trovão. Oxum e as negras pararam, escutaram. Nuvens fecharam-se, raios rolaram. As negrinhas viraram rosas, de Oxum restou seu leque.
Eu estirava a mão para tocá-lo quando acordei, amparado por Undset:
— Você estava caindo da rêde. Cheguei a tempo de impedi-lo.
—- E também de impedir de roubar seu leque — observei.
Contei-lhe o sonho.
— Alguém já lhe falou da história da fonte e do leque? — perguntou-me.
— Não. Ninguém precisaria falar dêles para me impressionar. Sonharei com o que vi, a fonte, o poço e o leque, pelo resto da vida. Mas adoraria saber a causa real da presença do leque, um leque de ouro maciço naquela pedra sem que ninguém lente roubá-lo.
— A história real? Até quando podemos saber que as coisas são “reais”? Quanto à sua origem, ao seu aparecimento, não só intriga a você como a mim, como a todos os nativos da ilha
Nenhum comentário:
Postar um comentário