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terça-feira, novembro 26, 2019

O leque de Oxum Parte 3

O leque de Oxum

Parte 3


Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961

(continuação da Parte 2)
Voltei repousado ao barracão. Na saleta reser­vada a Mariana, a “ialorixá” tinha pôsto a mesa. Cuscuz de tapioca, pamonha de puba, beijus, banana cozida. Agradeci-lhe seus favores, a viagem, a ilha, a festa, aquele gordo café.

— Bondade sua! — ela respondeu, esquivando- se aos elogios, com modéstia sincera. Agora você precisa dormir. Deve estar cansado. Já providenciei sua dormida.

Olhei em redor à cata duma esteira, rêde ou cama. Mariana surpreendeu meu olhar, tranqüi­lizou-me:

• Você vai dormir na beira da praia. Na casa de Undset.

• Undset? — e lembrei-me do “ojé” louro.

• Êle tem um coqueiral lá embaixo.

• Quem é êste homem?

• Um estrangeiro. Um sueco. Mora na ilha há muitos anos.

• Que coisa estranha!. . .

Ela sorriu:

• Que é estranho? Êle nada tem de estranho. É um homem como outro qualquer, como qualquer dêsses negros ou mulatos.

• Não, não é isso que quero dizer.. . — balbu­ciei temendo tê-la ofendido.

• Sei o que você quer dizer: achou estranho um homem louro, um branco legítimo, um europeu fazer parte de nossa religião, religião de africano, de negro.

Fiquei ainda mais constrangido pela observa­ção. Era exata. Procurei desculpar minha besteira. Mariana, porém, não se ofendera:

• Não se preocupe, meu filho. Eu também em seu lugar acharia isto muito estranho. E coisas real­mente estranhas contribuíram para Undset ser um dos nossos.

A conversa tomava rumo apaixonante. Mas não pude alimentá-la. Undset chegava. Mariana apre­sentou-nos. À luz do dia, nas circunstâncias nor­mais, vestido como eu, falando português, já não me parecia tão excepcional nem tão exótico. Mas pude reparar que êle não demonstrava o mínimo cansaço.

Como se seus nervos fôssem de aço. Conversaram os dois sôbre fatos da noite passada. Comia com apeti­te. Levantou-se, chamou-me. Saímos do barracão e retornamos à praia. Duma colina enveredamos por um atalho. Esbarramos numa cêrca viva de hi­biscos. Undset afastou a folhagem, me deu pas­sagem. Penetramos em seu coqueiral.

Acordei ao meio-dia. Fôra um sono como há mais de dez anos não experimentara: profundo, pe­sado, reparador. Levantei-me, saí do quarto, dei na varanda. Numa rêde, Undset estendia-se. Tentou levantar-se. Não o permiti.

• Que prefere agora? — perguntou-me. — Almoço ou banho?

O mar estendia-se pouco abaixo do coqueiral, muito manso, muito azul. O sol a pino levantava incêndios na água clara.

• Um banho antes, seria ideal.

• De mar, fonte ou cascata?

Era muito luxo para um paulista acostumado só a chuveiro:

• Primeiro, de mar. Depois tiraremos a sorte.

Ele já estava de calção. Vesti o meu. Fomos

para a praia. A areia fôfa, morna e fina acolheu- nos. Ficamos voluptuosamente derreados, gozando na carne a calidez do sol. Caímos nágua. Undset nadava como um peixe. Depois de algumas braça­das, parei ofegante, fiquei a apreciá-lo; fazia cir­cunvoluções, mergulhava, deslizava na superfície, identificado com o mar.

• Esta vida é engraçada — falei quando êle se deixou também ficar boiando, submerso até o pes­coço: minha profissão é corretagem de imóveis. Compro terrenos baldios, trabalho-os, lotei-os, en­cho-os de casas, edifícios, gente. Nunca, porém, co­meteria o crime de meter um trator nesta ilha, de transformar êste paraíso num inferno humano.

Undset sorriu alegremente:

• Também penso assim. Quando aqui che­guei meu entusiasmo foi igual ao seu.

• A diferença — objetei — é que você o desco­briu antes de mim. Confesso-lhe que, pela primeira vez, sinto inveja de outro homem. Gostaria de mo­rar aqui, de viver esta vida. Em vez disso continuo a vegetar num apartamento rodeado de apartamen­tos por todos os lados.

• É preciso coragem para abdicar do conforto, do progresso. Sempre fui contra o progresso que nos afaste da natureza. Para mim, de certo modo, foi fácil a escolha. Aqui mesmo quero morrer, e, embo­ra nunca pense nisso com tristeza, já escolhi onde vou ser sepultado.

Subitamente mudou de conversa:

• Estou com uma fome danada. Vamos comer?

* * *

Construção simples, paredes de tijolos sôbre al­venaria de pedra bruta. Telhado em duas águas, beirais salientes, sombreando a varanda larga que

rodeava a casa. Uma sala, três quartos, biblioteca, banheiro, copa, cozinha, tudo bem grande, bem amplo, cheio de luz, varrido de vento. Janelas aber­tas, rêdes estendidas, cortinas de cordas, de fieiras de contas, mobília essencial, peças de vinhático e ja­carandá, sem rigor de estilo. Arcas e santuários, imagens católicas de sabor primitivo, um Gauguin e outro Van Gogh autênticos. No resto das paredes, emblemas de candomblé.

Tomamos duas cachacinhas puras, saímos em busca da fonte de água doce. Andamos sob coquei­ros. Galinhas ciscavam livres, saqués gemiam aos bandos, uma esquadrilha de pombos ficou a esvoa­çar em tôrno da cabeça de Undset. Tínhamos anda­do uns duzentos metros quando estaquei, agradàvel­mente surpreendido. O quadro ante meus olhos era maravilhoso. Primeiro destacava-se, florido e viçoso, o pé de acácia. Estava carregado de flôres e opulen­tos cachos dourados chegavam ao chão. No chão, de areia alva, abria-se o poço. Era muito fundo mas transparente. Refletia todo o ouro das flôres que se debruçavam em seu espelho. Formava um círculo irregular e alimentava-se do âmago da terra e de uma fonte de água límpida que, gôta a gôta, escor­ria pela folhagem densa e selvagem de parasitas. Os pingos caíam mansamente sem perturbar sua sere­nidade. Roseiras de pontudos espinhos, de rosas ru­bras explodindo de beleza, rodeavam a fonte. Uma pedra negra, lisa, luzidia, emergia perto da margem. E sôbre a pedra, faiscando ao sol, um leque amarelo, de ouro maciço.

• É aqui o banho doce? — inquiri, antegozan­do aquela pureza, aquele frescor.

• Não — disse Undset. — Há dois anos nin­guém toma banho nesta fonte.

• Algum tabu?

Êle não respondeu diretamente à minha per­gunta:

• É a fonte de Oxum — disse simples, sêca- mente.

* * *

“Batidas” de cachaça com limão, catuaba, pi­tanga. Salada de lagosta viva, arroz-de-auçá, va­tapá, moqueca de siri-mole, frigideira de camarão fresco, ein louça de Limoges, com talheres brasona­dos. Água de côco verde no próprio côco, um velho vinho branco em cristal Fratelli Vita. E mangas de Itaparica, abius, sapotis, melancias. Cumbucas de araçá, doce de caju. Sôbre a toalha imaculada, o jarro popular onde brotavam flôres silvestres. A negrinha nova, bonita e risonha servia-nos com per­feição.

Depois, a varanda de brisa gostosa, o cafèzinho, a cachacinha final. O abraço da rêde, o fumo puro do “Suerdieck”, os olhos perdendo-se no azul pro­fundo do céu tão próximo. O sangue mornando, a memória perdendo-se, as pálpebras quebrando-se, músculos evanescendo-se. E a rêde elevando-se por artes de mágica, negrinhas esbeltas de sorriso bran­co, mãos de carícias levando-me à fonte. Embaixo da chuva de acácias, dançavam negras delgadas, miravam-se na água, engrinaldavam-se de rosas, cantavam cantigas maviosas e doces. E do fundo do poço, tão longínqua, diáfana, subia Oxum que o arco-íris coroava. E as negrinhas cantavam, davam- se as mãos; em redor de Oxum, tôdas giravam. Sentada na pedra, Oxum se abanava, do fundo da fonte música evolava. Dos céus, entretanto, roncou o trovão. Oxum e as negras pararam, escutaram. Nuvens fecharam-se, raios rolaram. As negrinhas viraram rosas, de Oxum restou seu leque.

Eu estirava a mão para tocá-lo quando acordei, amparado por Undset:

—     Você estava caindo da rêde. Cheguei a tempo de impedi-lo.

—- E também de impedir de roubar seu leque — observei.

Contei-lhe o sonho.

—     Alguém já lhe falou da história da fonte e do leque? — perguntou-me.

—     Não. Ninguém precisaria falar dêles para me impressionar. Sonharei com o que vi, a fonte, o poço e o leque, pelo resto da vida. Mas adoraria saber a causa real da presença do leque, um leque de ouro maciço naquela pedra sem que ninguém lente roubá-lo.

—     A história real? Até quando podemos saber que as coisas são “reais”? Quanto à sua origem, ao seu aparecimento, não só intriga a você como a mim, como a todos os nativos da ilha

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