O leque de Oxum
Parte 1
Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961
Há vinte anos eu não via a Bahia. Em vinte anos mudara muito. Falsa ideia de “progresso” mutilara-a lamentavelmente. Aquilo que nas cidades históricas e artísticas é venerado e defendido com o sacrifício da vida humana, tinha sido mutilado em muitos de seus aspectos. Obras de arte desaparecidas, roubadas, barganhadas. Monumentos preciosos derrubados e esfarinhados. Jardins desarborizados. Praças descaracterizadas. A paisagem marítima poluída por “invasões” de gente com problema de moradia. E a atmosfera colonial, tão rara no Brasil e tão tipicamente baiana, cedia a uma arquitetura falsamente funcional que o clima repudiava. Assim também os seus costumes. As coisas mais puras de seu povo sofriam adulteração em sua nobreza. E a inviolabilidade dos ritos negros, da religião, da dança, tinha-se quebrado.
Há vinte anos eu não via a Bahia. Em vinte anos mudara muito. Falsa ideia de “progresso” mutilara-a lamentavelmente. Aquilo que nas cidades históricas e artísticas é venerado e defendido com o sacrifício da vida humana, tinha sido mutilado em muitos de seus aspectos. Obras de arte desaparecidas, roubadas, barganhadas. Monumentos preciosos derrubados e esfarinhados. Jardins desarborizados. Praças descaracterizadas. A paisagem marítima poluída por “invasões” de gente com problema de moradia. E a atmosfera colonial, tão rara no Brasil e tão tipicamente baiana, cedia a uma arquitetura falsamente funcional que o clima repudiava. Assim também os seus costumes. As coisas mais puras de seu povo sofriam adulteração em sua nobreza. E a inviolabilidade dos ritos negros, da religião, da dança, tinha-se quebrado.
Com
saudosismo e confrangimento eu passeava pela cidade, reconstituindo,
com amargura e carinho ruas e becos, ladeiras e “largos”,
fontes e chafarizes, igrejas, parques e praias, o que existira
com esplendor e o que pobremente restava. Mas sobrara o
Pelourinho e adjacências, as igrejas do Terreiro de Jesus, os fortes
à beira-mar, alguns palácios e solares.
E
resistindo também tenazmente às tentações da improvisação
e da chantagem ficaram quatro ou cinco “casas” de candomblé, de
ritualística fiel, infensas às
interferências exteriores. Uma dessas, era minha “casa”. Pois
ainda rapaz, em minhas andanças nos caminhos musicados pelos
atabaques, nela me fixara, nela me
integrara, nela fôra levantado “ogan”, confirmação que
não se realizara devido a minha volta a São Paulo, à firma de que
meu pai era principal acionista, às obrigações a que eu me
iulgava indissoluvelmente ligado.
*
* *
Debruçado
na balaustrada da Praça Municipal, o olhar estendendo-se sabre os
telhados escuros dos sobrados da cidade baixa, lembrava-me da
Iyalorixá (Ìyálòrìṣà) a quem eu tomei a bênção, que pusera
a mão na minha cabeça e que governava como uma rainha o seu vasto e
poderoso axé (àṣẹ). Ainda
estaria viva? Ainda era dona da barraquinha na Rampa do Mercado
Modêlo? Donde eu estava, avistava o edifício do Mercado, a Rampa, o
portinho coalhado de saveiros coloridos. Quem sabe se Mariana
não continuava ali, modesta e digna, atrás de seu balcão,
lutando como qualquer trabalhador pelo seu sustento, cumprindo
assim os desígnios de seu “orixá”, já que sua pureza e sua
sobranceria não lhe permitiam viver da exploração de seu culto?
Desci
o elevador.
Tapêtes
de rosas, angélicas e gérberas, róseos, brancos e vermelhos
tapêtes de perfumes. Pirâmides de abacaxis, mangas e cajus, de
aromas fortes e doces. Caçuás de laranjas-de-umbigo, de
laranjas-cravo, de limas-da-pérsia. Bancas de poemas populares,
“troupes” de tocadores tocando e cantadores cantando,
mendigos estendendo a mão, marinetes chegando e saindo, a Praça
Cairu torcendo-se de filas querendo condução. As barraquinhas
estendiam-se num primeiro plano de pintura primitiva, os mastros dos
saveiros servindo de fundo contra um céu rutilante- mente azul. E
gente entrando e saindo do Mercado, e, no ar, cheiros e côres,
de gente, de frutas, de flores, de mar.
A
“Tendinha de Oxum” continuava no mesmo ponto, apertada entre
outras barracas, no sábado cheio de sol. As paredes de madeira, o
tôldo de lona amarela, a pintura vermelha e branca, as letras cheias
de bordadinhos. E colares de tôdas as
côres, pulseiras de todos os feitios, figas de tôda sorte, contas
de todos os “santos”, conchas e búzios, estrelas e
cavalos-do-mar, “agogôs” e “exus” de ferro, “adjás”,
paramentos, armas, símbolos e “oxés”
da religião, “obis”. Garrafas
douradas de azeite-de-dendê, frascos de pimenta-de-cheiro, de
pimenta-malagueta, em verde, vermelho, amarelo. Emoldurada de cheiros
e côres e formas, Mariana, cheia de compostura e dignidade. Era a
mesma Mariana que eu deixara há vinte anos, apenas um pouco mais
gorda e gi'i- salha. No rosto, a expressão intacta de autoridade, a
luz enérgica dos olhos, a fôrça inteligente da testa e a bondade
na bôca.
—
Bênção, minha mãe!
Os
olhos, vivos e jovens, a me fixarem penetran-temente, procurando
socorro na memória, o rosto, por fim, iluminado pela surpresa:
—
Entre, meu filho.
—
Não mudou nada, minha mãe!
—
Não sou filha de Oxum, ingrato?
—
Ingrato? Obrigações na terra da gente, de¬ver de ganhar dinheiro,
de trabalhar duro, de não ficar para trás.
—
Deus que lhe dê mais, meu filho.
—
Não sei se quero mais, minha mãe... ou se adiante ter mais. . .
Sentei
no caixão de querosene e ela esqueceu- se da freguesia. Reparei que,
além dos adornos li- túrgicos que ela, como “ialorixá”,
deveria permanentemente trazer consigo, rutilava de colares e
pulseiras. E em vez de vestido simples, cobria-se de roupas vistosas,
bata rendada, torço de sêda, colorida saia de cetim.
—
Alguma “festa”?
—
Não me está vendo a rigor?
—
Lá na “roça”?
—
Se fôsse em “casa” eu estaria aqui, homem? Estava, mas era
recolhida, fazendo as “obrigações”. Hoje sou convidada, vou
para festa dos “eguns”.
Era
uma palavra mágica para mim. Minha imaginação enriqueceu-se, a
memória retornou anos atrás. Acabadas as cerimônias aos “orixás”,
saíamos da “roça”, vínhamos a pé, na estrada barrenta, em
busca do bonde. Vínhamos aos bandos, pouco antes da meia-noite,
“ogans”, “alabês”, “obás”, eu no meio. Recordava-me bem
dos manacás desabrochando nos barrancos, dos graúdos
jasmins-do-cabo es- palhando seu perfume e sua brancura pelas cercas,
dos mansos cães que nos lambiam as pernas, das noites frementes de
estrelas e das conversas que a noite provocava. Conversas de “eguns”
que eu nunca vira, a cujas cerimônias não pudera assistir,
aureoladas de histórias que me causavam arrepios.
—
Será que desta vez?. . .
Não
precisei acabar o pensamento:
—
Claro que sim! Você não foi “suspenso” lá em casa? Posso
dizer, sem gabolice, que a festa é muito minha. Pedi uma graça a
“Babá-Olukotum”, ele me fêz o favor de atender. Ofereci-lhe uma
rou¬pa e vou lhe pedir a presença. É um “babá” muito
autoritário, orgulhoso e importante. Há trinta anos que não
“desce”.
—
O que Mariana pede que não se dá?
Ela
sorriu, cheia de segurança, perguntou-me:
—
Já almoçou?
—
Ainda não.
—
Por que não come logo? Daqui a pouco vai chegar meu pessoal. O
saveiro não espera se o vento estiver bom.
*
* *
Barraca
com geladeira e anúncio de coca-cola do mulato chamado Teles, com
sua irmã Candinha a servir uma misturinha côr-de rosa,
enganadoramente inocente, saída duma garrafa encantada, batizada da
de raizes amargas. Leve e cintilante, desceu em togo e sêda, macia,
garganta a baixo. Sombra de tamarindeiro, brisa do mar, manchas de
sol sôbre a mesa, ouro de banana madura em tabuleiros, fachadas
de sobrados na frente, a igreja da Conceição da Praia erguendo-se
nos blocos de mármore, as tôrres competindo com o casario subindo o
morro. E ouro e sol, vermelhos e verdes, em pratos de louça lavada,
no efó e no caruru, na moqueca de ostras e no xinxim de galinha,
incêndios de pimenta-malagueta, doçuras de refresco de caju.
Voltei
à “Tendinha de Oxum” e à Mariana rodeada da comitiva: seu
filho Didi, servidor de “Ossãe”, três “alabês”, mais
cinco mulheres a beijar- lhe a mão: a “dagã” e a “ossi-dagã”,
de sua idade, vestidas com o mesmo aparato embora sem igual
quantidade de adornos. As outras eram “iaôs” de sua “casa”,
uma de “Xangô”, outra de “Iansã”, a última de
“Oxumarê”, tôdas vestidas a caráter, as cores de seus
“orixás” preponderando distintamente em seus trajes.
Mariana
ergueu-se, fomos atrás. Um saveirinho em côres vivas, “Ninho do
Oceano”, esperava- nos. Pôs-se em movimento. Passamos o Forte de
São Marcelo, o quebra-mar e, ao largo, eu abarquei a silhueta da
cidade, estendendo-se da ponta do Monte Serrate ao Farol da
Barra. Pouco restava da velha e magnífica construção dos
portuguêses. A verdura desarrumada e luxuriante das encostas
abria- se para edifícios pesados, sem graça. Blocos de
cimento-armado, comuns e vulgares, substituíam os muito pessoais
casarões coloniais ainda há poucos anos em pé. As tôrres das
igrejas antes dominadoras nos cabeços das colinas, quase tôdas
estavam afogadas pelos saltos dos arranha-céus. Apenas
intocada, a linha delicada e fascinante do bairro de Santo
Antônio Além do Carmo.
Escumas
saltando da quilha veloz, o saveirinho deslizava àgilmente sôbre as
ondas. Bôtos negros, de dorsos luzidios, dando cambalhotas na
superfície, bufando. Cardumes de tainhas, de agulhas, caçonetes
e curimãs, vermelhos e guaricemas, águas- vivas como
vitórias-régias, caravelas azuis, lindas como orquídeas.
Martins-pescadores plainando asas sôbre as águas, as asas de
enormes saveiros, bojudas e brancas, passando abertas, vindos do
outro lado da baía, de engenhos perdidos, rios fundos, moendas e
olarias distantes. Lá atrás, esfumada na lonjura, a cidade do
Salvador brilhava ao sol.
O búzio na bôca do “mestre” ecoou pela praia deserta seu gemido
sonoro, lancinante. Virgem e nívea, a terra povoou-se. Das cabanas
entre os coqueiros saíam homens, mulheres, crianças, aos
bandos, acenando. Era como se eu estivesse chegando a um novo
mundo, antes vislumbrado em sonhos, sugerido em leituras. Coqueirais
altíssimos colhiam e derramavam sombras até a linha dágua.
Acariciados nas sombras, sedentos, fomos servidos em cabaças
enfeitadas de fôlhas, por gente alegre e hospitaleira: enormes
mangabas que se derretiam na bôca feito mel; cajus carnosos a
transbordar suco dulcíssimo; pitangas vermelhas, sumarentas,
frescas; saborosa água de côco verde.
• Mas isto é o paraíso! — exclamei para Didi.
Ele
sorriu e disse:
• É somente a porta.
Com
a vista, procurei o barracão das festas. Didi explicou:
• Ainda vamos andar um bocado. O culto aos “babás”, aos
“eguns”, é diferente do dos “orixás”. As festas aos
“orixás” são francamente públicas. As dos “eguns” são
íntimas, fechadas. Se o barracão fôsse aqui na praia, toda a
gente, moradores e veranistas, se acharia com o direito de
entrar. Por isso o barracão fica no meio da ilha, isolado e
escondido. Só vai lá quem tem “negócio”. . .
• Por que tanto segrêdo?
• Você vai ver. Não perde por esperar.
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