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domingo, novembro 24, 2019

O leque de Oxum - Parte 1


O leque de Oxum


Parte 1

Conto de Vasconcelos Maia - Janeiro de 1961


Há vinte anos eu não via a Bahia. Em vinte anos mudara muito. Falsa ideia de “progresso” mu­tilara-a lamentavelmente. Aquilo que nas cidades históricas e artísticas é venerado e defendido com o sacrifício da vida humana, tinha sido mutilado em muitos de seus aspectos. Obras de arte desapareci­das, roubadas, barganhadas. Monumentos preciosos derrubados e esfarinhados. Jardins desarborizados. Praças descaracterizadas. A paisagem marítima po­luída por “invasões” de gente com problema de moradia. E a atmosfera colonial, tão rara no Brasil e tão tipicamente baiana, cedia a uma arquitetura falsamente funcional que o clima repudiava. As­sim também os seus costumes. As coisas mais pu­ras de seu povo sofriam adulteração em sua nobreza. E a inviolabilidade dos ritos negros, da religião, da dança, tinha-se quebrado.

Com saudosismo e confrangimento eu passeava pela cidade, reconstituindo, com amargura e cari­nho ruas e becos, ladeiras e “largos”, fontes e chafa­rizes, igrejas, parques e praias, o que existira com es­plendor e o que pobremente restava. Mas sobrara o Pelourinho e adjacências, as igrejas do Terreiro de Jesus, os fortes à beira-mar, alguns palácios e solares.

E resistindo também tenazmente às tentações da im­provisação e da chantagem ficaram quatro ou cinco “casas” de candomblé, de ritualística fiel, infensas às interferências exteriores. Uma dessas, era minha “casa”. Pois ainda rapaz, em minhas andanças nos caminhos musicados pelos atabaques, nela me fixa­ra, nela me integrara, nela fôra levantado “ogan”, confirmação que não se realizara devido a minha volta a São Paulo, à firma de que meu pai era prin­cipal acionista, às obrigações a que eu me iulgava indissoluvelmente ligado.

* * *

Debruçado na balaustrada da Praça Municipal, o olhar estendendo-se sabre os telhados escuros dos sobrados da cidade baixa, lembrava-me da Iyalorixá (Ìyálòrìṣà) a quem eu tomei a bênção, que pusera a mão na minha cabeça e que governava como uma rainha o seu vasto e poderoso axé (àṣẹ). Ainda estaria viva? Ainda era dona da barraquinha na Rampa do Mer­cado Modêlo? Donde eu estava, avistava o edifício do Mercado, a Rampa, o portinho coalhado de sa­veiros coloridos. Quem sabe se Mariana não conti­nuava ali, modesta e digna, atrás de seu balcão, lu­tando como qualquer trabalhador pelo seu sustento, cumprindo assim os desígnios de seu “orixá”, já que sua pureza e sua sobranceria não lhe permitiam viver da exploração de seu culto?

Desci o elevador.

Tapêtes de rosas, angélicas e gérberas, róseos, brancos e vermelhos tapêtes de perfumes. Pirâmides de abacaxis, mangas e cajus, de aromas fortes e do­ces. Caçuás de laranjas-de-umbigo, de laranjas-cravo, de limas-da-pérsia. Bancas de poemas populares, “troupes” de tocadores tocando e cantadores cantan­do, mendigos estendendo a mão, marinetes chegan­do e saindo, a Praça Cairu torcendo-se de filas que­rendo condução. As barraquinhas estendiam-se num primeiro plano de pintura primitiva, os mastros dos saveiros servindo de fundo contra um céu rutilante- mente azul. E gente entrando e saindo do Mercado, e, no ar, cheiros e côres, de gente, de frutas, de flo­res, de mar.

A “Tendinha de Oxum” continuava no mesmo ponto, apertada entre outras barracas, no sábado cheio de sol. As paredes de madeira, o tôldo de lona amarela, a pintura vermelha e branca, as letras cheias de bordadinhos. E colares de tôdas as côres, pulseiras de todos os feitios, figas de tôda sorte, con­tas de todos os “santos”, conchas e búzios, estrelas e cavalos-do-mar, “agogôs” e “exus” de ferro, “adjás”, paramentos, armas, símbolos e “os” da religião, “obis”. Garrafas douradas de azeite-de-dendê, fras­cos de pimenta-de-cheiro, de pimenta-malagueta, em verde, vermelho, amarelo. Emoldurada de cheiros e côres e formas, Mariana, cheia de compostura e dignidade. Era a mesma Mariana que eu deixara há vinte anos, apenas um pouco mais gorda e gi'i- salha. No rosto, a expressão intacta de autoridade, a luz enérgica dos olhos, a fôrça inteligente da testa e a bondade na bôca.

— Bênção, minha mãe!

Os olhos, vivos e jovens, a me fixarem penetran-temente, procurando socorro na memória, o rosto, por fim, iluminado pela surpresa:

— Entre, meu filho.

— Não mudou nada, minha mãe!

— Não sou filha de Oxum, ingrato?

— Ingrato? Obrigações na terra da gente, de¬ver de ganhar dinheiro, de trabalhar duro, de não ficar para trás.

— Deus que lhe dê mais, meu filho.

— Não sei se quero mais, minha mãe... ou se adiante ter mais. . .

Sentei no caixão de querosene e ela esqueceu- se da freguesia. Reparei que, além dos adornos li- túrgicos que ela, como “ialorixá”, deveria permanentemente trazer consigo, rutilava de colares e pulseiras. E em vez de vestido simples, cobria-se de roupas vistosas, bata rendada, torço de sêda, colorida saia de cetim.

— Alguma “festa”?

— Não me está vendo a rigor?

— Lá na “roça”?

— Se fôsse em “casa” eu estaria aqui, homem? Estava, mas era recolhida, fazendo as “obrigações”. Hoje sou convidada, vou para festa dos “eguns”.

Era uma palavra mágica para mim. Minha imaginação enriqueceu-se, a memória retornou anos atrás. Acabadas as cerimônias aos “orixás”, saíamos da “roça”, vínhamos a pé, na estrada barrenta, em busca do bonde. Vínhamos aos bandos, pouco antes da meia-noite, “ogans”, “alabês”, “obás”, eu no meio. Recordava-me bem dos manacás desabrochando nos barrancos, dos graúdos jasmins-do-cabo es- palhando seu perfume e sua brancura pelas cercas, dos mansos cães que nos lambiam as pernas, das noites frementes de estrelas e das conversas que a noite provocava. Conversas de “eguns” que eu nunca vira, a cujas cerimônias não pudera assistir, aureoladas de histórias que me causavam arrepios.

— Será que desta vez?. . .

Não precisei acabar o pensamento:

— Claro que sim! Você não foi “suspenso” lá em casa? Posso dizer, sem gabolice, que a festa é muito minha. Pedi uma graça a “Babá-Olukotum”, ele me fêz o favor de atender. Ofereci-lhe uma rou¬pa e vou lhe pedir a presença. É um “babá” muito autoritário, orgulhoso e importante. Há trinta anos que não “desce”.

— O que Mariana pede que não se dá?

Ela sorriu, cheia de segurança, perguntou-me:

— Já almoçou?

— Ainda não.

— Por que não come logo? Daqui a pouco vai chegar meu pessoal. O saveiro não espera se o vento estiver bom.

* * *

Barraca com geladeira e anúncio de coca-cola do mulato chamado Teles, com sua irmã Candinha a servir uma misturinha côr-de rosa, enganadoramente inocente, saída duma garrafa encantada, batizada da de raizes amargas. Leve e cintilante, desceu em togo e sêda, macia, garganta a baixo. Sombra de tamarindeiro, brisa do mar, manchas de sol sôbre a mesa, ouro de banana madura em tabuleiros, facha­das de sobrados na frente, a igreja da Conceição da Praia erguendo-se nos blocos de mármore, as tôrres competindo com o casario subindo o morro. E ouro e sol, vermelhos e verdes, em pratos de louça lavada, no efó e no caruru, na moqueca de ostras e no xinxim de galinha, incêndios de pimenta-malagueta, doçuras de refresco de caju.

Voltei à “Tendinha de Oxum” e à Mariana ro­deada da comitiva: seu filho Didi, servidor de “Ossãe”, três “alabês”, mais cinco mulheres a beijar- lhe a mão: a “dagã” e a “ossi-dagã”, de sua idade, vestidas com o mesmo aparato embora sem igual quantidade de adornos. As outras eram “iaôs” de sua “casa”, uma de “Xangô”, outra de “Iansã”, a úl­tima de “Oxumarê”, tôdas vestidas a caráter, as co­res de seus “orixás” preponderando distintamente em seus trajes.

Mariana ergueu-se, fomos atrás. Um saveirinho em côres vivas, “Ninho do Oceano”, esperava- nos. Pôs-se em movimento. Passamos o Forte de São Marcelo, o quebra-mar e, ao largo, eu abarquei a silhueta da cidade, estendendo-se da ponta do Mon­te Serrate ao Farol da Barra. Pouco restava da ve­lha e magnífica construção dos portuguêses. A ver­dura desarrumada e luxuriante das encostas abria- se para edifícios pesados, sem graça. Blocos de cimento-armado, comuns e vulgares, substituíam os muito pessoais casarões coloniais ainda há poucos anos em pé. As tôrres das igrejas antes dominado­ras nos cabeços das colinas, quase tôdas estavam afo­gadas pelos saltos dos arranha-céus. Apenas intoca­da, a linha delicada e fascinante do bairro de Santo Antônio Além do Carmo.

Escumas saltando da quilha veloz, o saveirinho deslizava àgilmente sôbre as ondas. Bôtos negros, de dorsos luzidios, dando cambalhotas na superfí­cie, bufando. Cardumes de tainhas, de agulhas, caçonetes e curimãs, vermelhos e guaricemas, águas- vivas como vitórias-régias, caravelas azuis, lindas como orquídeas. Martins-pescadores plainando asas sôbre as águas, as asas de enormes saveiros, bojudas e brancas, passando abertas, vindos do outro lado da baía, de engenhos perdidos, rios fundos, moendas e olarias distantes. Lá atrás, esfumada na lonjura, a cidade do Salvador brilhava ao sol.

O búzio na bôca do “mestre” ecoou pela praia deserta seu gemido sonoro, lancinante. Virgem e nívea, a terra povoou-se. Das cabanas entre os co­queiros saíam homens, mulheres, crianças, aos ban­dos, acenando. Era como se eu estivesse chegando a um novo mundo, antes vislumbrado em sonhos, sugerido em leituras. Coqueirais altíssimos colhiam e derramavam sombras até a linha dágua. Acaricia­dos nas sombras, sedentos, fomos servidos em caba­ças enfeitadas de fôlhas, por gente alegre e hospitaleira: enormes mangabas que se derretiam na bôca feito mel; cajus carnosos a transbordar suco dulcís­simo; pitangas vermelhas, sumarentas, frescas; sa­borosa água de côco verde.

• Mas isto é o paraíso! — exclamei para Didi.

Ele sorriu e disse:

• É somente a porta.

Com a vista, procurei o barracão das festas. Didi explicou:

• Ainda vamos andar um bocado. O culto aos “babás”, aos “eguns”, é diferente do dos “orixás”. As festas aos “orixás” são francamente públicas. As dos “eguns” são íntimas, fechadas. Se o barracão fôsse aqui na praia, toda a gente, moradores e vera­nistas, se acharia com o direito de entrar. Por isso o barracão fica no meio da ilha, isolado e escondido. Só vai lá quem tem “negócio”. . .

• Por que tanto segrêdo?

• Você vai ver. Não perde por esperar.
*** 
 Parte 2

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