Entendendo a religião do Candomblé - pt 2
Enganos no entendimento da cabaça como representação
Sem querer ser arrogante, o que se tem para entender sobre a cabaça e sua ligação com a representação do cosmos yorùbá está neste texto aqui.
Existem coisas importantes na simbologia yorùbá, a cabaça é uma delas. Contudo também é muito comum as pessoas não entenderem o que veem ou o que leem.
Não pode deixar de comentar que já ouvi falar de gente que está fazendo Igba Ori usando uma cabaça deste tipo. Com sinceridade, essas pessoas comeram obi estragado. Lembro que nem cubanos e muito menos nigerianos sabem qualquer coisa de Ori.
A cabaça, como simbologia esta ligada também com o culto de Ajé e com Ifá. É um receptáculo universal de axé (àṣẹ) e várias coisas são representadas através da cabaça, sua presença é rica nos versos de Ifá com vários significados.
Aqui no Candomblé criou-se a visão da cabaça com Oxalá (Òṣàlá) na parte superior e Odùduwà na parte inferior, associando Odùduwà a uma divindade feminina e isso não é comum.
Essa imagem está retratada no meu texto mas não é uma referência importante, é apenas um aspecto desta questão do cosmo e não ele em sí, o que é importante é a representação dos dois mundos, o órun (Ọ̀run) e o Àiyé.
Assim é necessário cuidado em relação a essa visão que existe no Candomblé direcionada para este contexto masculino-feminino, porém, de forma muito restrita e com pouca ou nenhuma utilidade.
Verger e a Cabaça
No caso do Candomblé essa distinção
pouco importa, Odùduwà não é tratado como uma divindade do dia a
dia. Existe e é conhecido apenas na referência teológica. Os
Lukumi cubanos tratam Odùduwà como uma divindade comum, mas o faz
de uma forma errada, baseada em erros bibliográficos, conforme
Verger explicou.
No Candomblé existe um conhecido mito,
contado e repetido por muitos o qual o mundo seria uma grande cabaça
na qual Odùduwà ficaria na parte debaixo e Oxalá na parte de cima.
Essa representação daria a ambos o domínio de partes diferentes do
mundo assim como estabeleceria uma dualidade de existência entre
ambos. Também traria uma ideia de equilíbrio e, por fim, estabelece
que Oxalá seria do gênero masculino e Odùduwà do gênero
feminino.
Esse mito é bem comum e conhecido, mas,
é uma grande bobagem. É um exemplo clássico de que a ignorância
faz sombra na sabedoria e que as pessoas dessa religião nunca passam
da primeira página quando leem algo, se é que leem, apesar de serem
muitos espontâneas para falar mal de quem busca conhecimento.
Para esclarecer isso basta a recorrer a
um texto muito antigo de Verger chamado “Etnografia religiosa e
probidade científica” publicado na revista Religião e
Sociedade, n.8 em 1982.
O texto parece ter sido feito
exclusivamente para criticar Juana Elbein, autora do livro “Os Nagô
e a Morte” que teve como mérito criar uma estrutura geral de
amarração de elementos na religião, estabeleceu interpretação e
análises próprias e enriqueceu o papel de do Orixá Exú na
religião. Para Verger isso foi uma afronta. Ele não aceitou uma
outra pessoa, acadêmica, escrevendo sobre os Yorùbá e muito menos
trazendo informações diferentes da dele.
Acredito que nessa briga todos tivessem
um pouco de razão. Talvez Juana tenha sido criativa demais na sua
interpretação e análise tendo avançado muito na criação de
conceitos, como também, Verger, se mordido de vaidade, mas essa
briga não é o tema.
O tema é que na primeira parte do seu
texto, Verger faz uma análise muito boa da origem de distorções
que ocorreram sobre a religião Yorùbá.
Verger cita que a primeira referência
de informações sobre os Yorùbá veio de Ajayi um nativo que foi
rebatizado com o nome de Samuel Crowther, ele era nascido em Oyo e
foi capturado e vendido como escravo quando tinha 11 anos. Ele foi
liberto por ingleses no navio e como milhares de outros africanos
levados para Serra Leoa.
Serra Leoa, como alguns devem saber foi
o país ou região que recebeu todos os escravos que os ingleses
libertavam quando encontravam os navios negreiros.
Virou missionário protestante, educando
em Londres, voltou para a áfrica e publicou a primeira bíblia em
Yoruba. Publicou um vocabulário yorùbá que continha nome de
deuses. Em função de sua pouca idade e conhecimento da sua religião
ele trocou o gênero de orixás, chamando de deusas o que os yorùbá
chamavam de deuses.
Não houve intenção de dolo no
trabalho de Crowther, Verger cita-o com uma das pessoas confiáveis,
mas ele cometeu erros e isso é atribuído a ele citar coisas sobre
as quais tinha vivida mas que o tempo pode tê-lo confundido.
A seguir TJ bowen, outro missionário,
passou 6 anos nas terras Yoruba e publicou um dicionário, com mais
informações sobre orixás. Verger atribuía essa pessoa,
informações precisas e o cita como uma fonte digna de confiança.
Mais tarde o abade Pierre Bouche, outro
missionário, passou 9 anos na África e publicou material que
repetia os antecessores com algumas variações.
A confusão começa com o padre Noel
Baudin, que esteve na África em terras não yorùbá, usou o livro
de Crowther para publicar um dicionário e um livro sobre os Yoruba,
povo e região que ele não conheceu de fato. Pior ele desprezava o
povo e sua cultura, Ele nunca teve interesse em preservar ou
documentar nada. Soma-se o zelo missionário, a falta de ética
e a necessidade de se promover como um especialista em África.
Por exemplo:
“Os feiticeiros (Baudin, 1884b:86) são
seres desprezíveis, mentirosos, preguiçosos, hipócritas, impudicos
e refinados ladrões. Geralmente têm um aspecto sujo, vestimentas
ridículas e esfarrapadas, e os que molham as mão em sangue humano
têm um ar bestial, feroz e repugnante... Quanto aos deuses e deusas,
com suas ridículas lendas, os grandes feiticeiros não acreditam
neles... Os ídolos (ib: 89) modelados sobre o tipo mais feio de
negro de lábios grossos, de nariz chato e de queixo retraído, são
verdadeiras imagens de velhos macacos”.
Este era o estilo de Baudin
A referência a Oduduá aparece pela
primeira vez por Crowther. Vou transcrever texto do Verger porque é
bem claro:
O autor indica em rubricas separadas,
por um lado, que “Oduá ou Oduduá (Crowther, op.cit.: 207)
é uma deusa de Ifé, tida como a suprema deusa do mundo” e
acrescenta que “o céu e a terra são duas grandes cabaças
(ele queria dizer meias cabaças, igbá), que, uma vez fechadas (ou
mais precisamente, colocadas uma sobre a outra, formando um
recipiente fechado), não podem ser abertas (separadas)”.
Afirma ainda que havia “uma alusão à aparente concavidade
do céu, que parece tocar a terra no horizonte”. Por outro
lado, indica que “Obatalá (é) a grande deusa iorubá, a artesã
do corpo da matriz” (ib.: 228). Ao mesmo tempo, Orixalá é
indicado como sendo "a grande deusa Obatalá" (ib.: 223).
Assim, fica claro como Verger cita a
confusão de crowther sobre o gênero dos deuses, assim como surge
aqui a referência ao mundo na forma de uma cabaça, mas em nenhum
momento Crowther, por mais confuso que fosse coloca Oxalá e Odùduwà
dentro dela.
Bowen, o que escreveu depois um outro
dicionário Yoruba, adiciona mais informações a isso:
“Oduduá é o universo, está
localizado em Ifé” e “Obatalá é tido como o primeiro, a maior
coisa já criada. Outros, entretanto, afirmam que ele não é nada
mais do que um antigo rei iorubá. Sua mulher é Iyangba, a mãe que
recebe, representada acariciando uma criança”.
Verger adiciona dizendo que Iya Ngba é,
na verdade, uma referência a Iyami osoronga, a grande feiticeira dos
Yoruba. O Abade Bouche adiciona confusão a isso fazendo uma relação
da iya ngba com a virgem maria....
A confusão se inicia mais ainda com o
Pe. Baudin, que sem saber nada dos Yoruba, junta Iya ngba com
Odùduwà, transformando as 2 divindades em uma só. E mais junta
Oxalá nisso e coloca os 2 dentro da cabaça do mundo descrita por
Crowther.
No original de Veger:
... para completar essa embrulhada,
intromete ousadamente Obatalá (Orixalá) no meio das duas meias
cabaças descritas por Crowther, as quais viram uma cabaça única,
munida de uma tampa. Completa esse "sutil ponto de vista"
com uma estranha lenda (Baudin, 1884 b: 89) onde "Obatalá e
Oduduá" estavam no princípio estreitamente apertados e como
que encerrados numa grande cabaça - Obatalá no alto, sob a tampa, e
Oduduá embaixo, afundados nas águas, envolvidos em profundas
trevas, com a noite, o medo e a fome correndo em todas as direções...
Oduduá ficou feia e cega em consequência de uma briga doméstica na
qual Obatalá lhe arrancou os olhos para obrigá-la a ficar quieta.
Assim essa bobagem que existe no
candomblé colocando Odùduwà como feminina e oxalá como masculino
e dentro de uma cabaça, é uma idiotice originada de uma pessoa que
não sabia sobre o que estava escrevendo, pior só tinha interesse em
desinformar.
Pessoas aqui no Brasil e autores usaram
os livros dessas pessoas para transmitirem isso como verdades. As
pessoas aqui compraram essas histórias gerando distorções sobre a
religião e pior se fundamentando em bobagem e mentiras.
Assim uma sucessão de pessoas que não
conheciam o assunto que escreviam e que foram repetindo e também
usando criatividade sobre o que liam gerou uma massa de desinformação
sobre a religião Yoruba, que no nosso tema gira em torno do mito da
Cabaça. Quem aqui não conhece essa figura da cabaça?
Baudin fez ainda mais confusão gerando
uma dualidade inexistente entre Oxalá e Odùduwà e transformando
Odùduwà em um orixá do gênero feminino.
Assim essas são 2 tolices que são
repetidas por Babalorixás e Iyalorixá por muitos anos, o mito da
cabaça e Odùduwà sendo Feminino. Verger desde 1982 já havia
corrigido isso. É impressionante como as pessoas gostam de citar
Verger sem nem ao menos ter lido.
É possível que parte da raiva de
Verger sobre Juana foi justamente ela ter seguido esse mesmo caminho,
interpretando informações ruins, copiando coisas erradas e pior
gerando interpretações e análises por sua conta.
O texto original de Verger deve ser
lido, tem muito mais informações do que eu transcrevi aqui.
A Sorte do Candomblé é que não
fazemos o Orixá Odùduwà, senão o nível de besteira seria enorme.
Azar dos Lukumi cubanos, que não só compraram as mesmas histórias
como ainda fazem Odùduwà como Orixá e ainda, atribuem a ela a cor
negra e outras coisas sinistras.
Este sim é um assunto que mereceria uma
análise, porque como pode uma tradição de diáspora se apoiar em
uma besteira inventada e criar Orixá e pior LITURGIA a partir disso.
Verger explica onde surgiu a ligação
errada de Odùduwà com a cor negra, na verdade uma invenção
ridícula, mas, não é o tema aqui, os Lukumi que se preocupem com
isso porque eles estão errados em várias coisas, aliás
incontáveis. Uma delas é estabelecer esse culto a Odùduwà, outra
é fazer a ligação disso com o negro, o obscuro, Odùduwà lá é
representado por um cofre e está ligado com o fim da vida. Os lukumi
leram os livros errados na década de 80 e copiaram coisas erradas.
CONTINUA EM PARTE 3
PROXIMOS TEXTOS
- A GÊNESE YORUBA
- O COSMO METAFÍSICO YORUBA
- A CONTRIBUIÇÃO DA RELIGIÃO PARA A SOCIEDADE
- ENTRE DOIS MUNDOS
- ORUN, O MUNDO ESPIRITUAL
- O MUNDO NATURAL, O AIYE
- O QUE SÃO OS ORIXÁ
- OLODUMARE DA O PODER AOS ORIXÁ
- OS CULTOS DA RELIGIÃO
- A RELIGIÃO NO BRASIL
CONTINUA EM PARTE 3
PROXIMOS TEXTOS
- A GÊNESE YORUBA
- O COSMO METAFÍSICO YORUBA
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- ENTRE DOIS MUNDOS
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