Os incidentes na vida e destino das pessoas
O ciclo de concepção e nascimento será abordado e detalhes mais adiante, ele é importante para entendermos o sentido de nossa vida, o conceito de Òrìṣà (Orixá) e a participação do Òrìṣà (Orixá) e nossa vida. Só quando entendemos o ciclo do nascimento é que ligamos os pontos da teologia para entender o papel do Òrìṣà (Orixá) em nossa vida e, mais profundamente, no estabelecimento da nossa individualidade. Este conceito, individualidade é um dos conceitos mais incríveis desta religião.
Deixando isso, então, para depois, vamos voltar a questão do mal teológico. Algumas coisas precisam ser esclarecidas sob o ponto de vista da religião, que são os dissabores do nascimento e destino. Vou fazer isso de forma bem objetiva porque são muitos casos.
Tudo o que vou explicar a seguir são conceitos que estão explicitamente descritos e explicados nos versos de Ifá. Eu não estou inventando nada nem criando explicações, estou usando a própria religião para explicar isso.
Todo mundo que nasce quer nascer perfeito, sem deformações, saúde mental, doenças pré-existentes, etc.. Todos querem ser um espírito pleno em um corpo perfeito, assim termos condições para executar tudo o que planejamos para nossa vida.
Não passa pela cabeça, de ninguém, que nascer com problemas seja uma benção ou mesmo que a pessoa desejou nascer assim. Apesar de nem tudo a gente encontrar definido nesta religião, temos então que fazer algumas ilações, baseadas em similaridades ou mesmo no pouco que conseguimos captar das narrativas e da cultura da sociedade. Nesse contexto, jamais encontrei nada que justifique uma pessoa querer nascer com qualquer problema.
Nunca vi nenhum mito ou qualquer verso que justifique eu acreditar que a religião entende que pessoas escolheram nascer com limitações ou que mães e pais desejem seus filhos com problemas.
Creio que somente vi isso, esse conceito de ser destinado a sofrer, com os kardecistas que dizem que as pessoas escolhem nascer infelizes ou viver infelizes para pagar seus karmas. Aliás, o nome Karma os Kardecistas tiraram da religião Indu, mas, eles empregam com um significado diferente. Na religião Indu, Karma e Dharma são conceitos similares ao do destino Yorùbá, que vamos ver mais tarde.
Voltando ao nosso tema, desta maneira, nascer com problema é um desvio. A religião explicitamente atribui a Oxalá (Òṣàlá), o Òrìṣà (Orixá) que cria o corpo das pessoas, os erros que levam a pessoas nascerem com problemas. Isso não é ilação, é fato. O mito diz que Oxalá (Òṣàlá) gosta de beber e quando ele bebe ele comete erros nos corpos das pessoas e assim as pessoas nascem com deformações. Isso é oficial, está na religião.
Vamos lembrar que essas histórias são metáforas, não são relatos históricos e não temos que nos preocupar que Oxalá (Òṣàlá), um dos Òrìṣà (Orixá) mais importante, seja um beberrão e com isso prejudique as pessoas, não vamos nos focar em valorizar que esta religião tenha divindades principais que sejam irresponsáveis.
Esse mito, essa historinha, nos diz que, sim, existe falha no processo de concepção, de criação do corpo e que existe uma aleatoriedade, que algumas pessoas nascem com problemas sem que isso tenha sido pedido por elas, elas não desejaram isso, foi uma ocorrência casual, nesse caso descrito como originado na distração do Òrìṣà (Orixá) que por ter bebido errou o fazer o corpo. Esse é o jeito de conciliar a explicação da religião com a realidade do mundo real.
Desta maneira, esse aspecto de, porque algumas pessoas nascerão, infelizmente, com problemas, é perfeitamente fixado. Não se trata de punição divina, todos tem o destino de nascer perfeito, mas, acidentes, dificuldades ou complexidades no processo de gestação vão gerar as imperfeições. A explicação teológica, simples, é essa que o Òrìṣà (Orixá) bebeu, ou seja, ele não queria fazer isso, ficou fora de si e fez por acidente. A explicação do mundo real, é similar, que existem genes, mutações, etc., tudo muito complicado também.
Meu comentário para esse caso é, o processo de nascimento é complexo, a formação de um novo corpo tem um índice de erros e falhas, ocasionadas por diversos fatores e não existe garantia divina que vamos nascer perfeitos. Certamente ocorre na maior parte dos casos, mas, sempre haverá um percentual de erro, não se tratando de um destino ruim.
Uma outra questão envolve a sorte de cada um na sua vida. Vamos ter pessoas que prosperam e pessoas que não prosperam e mesmo as pessoas que estarão na miséria ou viverão muito mal, outros que serão criminosos. São muitos aspectos mas estão ligados a coisas comuns.
Mais uma vez, não vou inventar nada, de acordo com a religião e seus mitos e, mais, de acordo com o que está amplamente documentado em versos de Ifá, centenas que eu já li, antes de nascermos temos que fazer uma grande preparação. Essa preparação diz respeito a estabelecermos objetivos, irmos a Ifá no órun (Ọ̀run) para lá no órun (Ọ̀run) nos prepararmos para a vida que vamos ter.
Fazemos isso por nós mesmos e também somos ajudados por nossos familiares. Nós nos preparamos para vir para cá e entre vários preparativos, temos que escolher o nosso caráter, personalidade e os recursos para sermos prósperos, o chamado Orí.
Orí é um conceito muito importante na religião, esta associado com a individualidade, mas, é um subconjunto da individualidade. Muita gente do Candomblé não conhece todos os conceitos teológicos ligados ao indivíduo e sobrevaloriza o Orí com se isso fosse tudo ou o mais importante, mas não é. É importante mas é uma parte do todo.
Orí é uma daquelas palavras Yorùbá que tem muitos significados e por isso é bastante complicada de definir e até de explicar, não pode explicar apenas uma coisa, tem que se explicar várias coisas. Não vou fazer isso agora, mas eu citei isso porque como parte desse processo de preparação no órun (Ọ̀run) que fazemos para o nascimento, nós “adquirimos” um Orí.
Orí é um elemento que está associado com a facilidade que temos que ter prosperidade em vida. Existem outros aspectos, mas esse é o principal. O processo de escolha de um bom Orí, tem um componente aleatório ou estatístico, como o caso de Oxalá (Òṣàlá) com o nosso corpo. Se falharmos em nos preparar adequadamente para vir ao Àiyé podemos “pegar” um Orí ruim. Se isso ocorrer teremos muita dificuldade em prosperar no Àiyé. Um bom Orí é resultado de preparação ou de “sorte” na escolha e isso insere, assim, uma aleatoriedade na vida de cada um.
Dessa maneira, quando as pessoas falham nos preparativos para a vida no Àiyé elas serão afetadas no seu desempenho na vida e é desta forma que a religião explica porque certas pessoas têm mais capacidade do que outras ou mesmo mais sorte. Tudo depende da preparação que elas fizeram para essa vida. Nosso insucesso ou pouco sucesso não foi um presente ou maldição de deus, foi algo que nós mesmos trouxemos para nossa vida.
Porque as pessoas falham nisso? Veja, como eu disse antes a vida no Àiyé é uma aventura, mas, exige planejamento, contudo, nem todos querem planejar. Muitos querem nascer sem planejamento, sem preparação e apenas contando com o acaso. Como sabemos é uma religião reencarnacionista e uma vida é apenas uma vida, outras haverão.
Pode parecer estranho mas e isso mesmo, nem todos nascem com objetivos e determinação para realizar algo, muitos nascem apenas por nascer, para serem turistas nessa vida.
Um outro aspecto que está explicado na religião é que além de um bom Orí, que significa facilidade para prosperar na vida, está fartamente documentado nos versos de Ifá a necessidade da pessoa ter boas “pernas”. Se a pessoa não tem boas pernas ela fica parada e não procura a sua sorte e prosperidade. O acomodado e preguiçoso sempre não será bem-sucedido. Existe, inclusive, nos versos, a referência de que a pessoa pode ter sido marcada por ajé (Àjẹ́) nas pernas na sua passagem pelo Ìrònà, o meio do caminho entre o órun (Ọ̀run) e o Àiyé que é o lugar onde as ajé (Àjẹ́) estão estabelecidas e assim passa a ter enormes dificuldades para prosperar e só quando, através de Ifá, remove isso consegue ter sorte na vida.
Outra situação é o dos que nascem em famílias pobres e sem recursos e nunca terão chance de realizar sonhos ou ter acesso as boas coisas da vida. Aqui o que a religião pode explicar é uma soma de coisas. A primeira é que se trata de linhagem familiar, as pessoas nascem nas suas famílias, suas linhagens e se seus ancestres falharam em trazer prosperidade para ser usada por seus descendentes então a vida de todos sempre será difícil.
A ancestralidade é uma coisa importante nessa religião, muita gente do Candomblé enche a boca para falar de ancestralidade sem nem saber do que está falando e do que isso significa. É gente que não sabe nada de nada e descobre que citar ancestralidade é uma frase chique e passa a usar. Isso vem de gente vazia.
A ancestralidade é um conceito que está presente na cultura Yorùbá, as pessoas têm família e tem descendentes. É um povo que se relaciona com o seu passado, quero dizer, se relacionava no passado, pelo menos isso está presente na literatura que aprendemos sobre eles, mas, o que eles são hoje, não faço a menor ideia. A sociedade se liga aos seus ancestres e a religião é muito importante nisso, vou explicar isso quando eu falar de Egúngún e Oro.
Aqui tenho que ser breve nesse assunto e, desta forma, você é hoje a construção de sua ancestralidade. Se seus ancestres se preocuparam em formar uma família e linhagem, se foram bons pais e avós que se preocuparam com seus filhos, netos, bisnetos, trinetos e tataranetos, então a família estará bem. Cada um que nasce têm que se preocupar com isso. Se não houve essa união e preocupação com linhagem e descendência então a ocorrência de famílias em situação de penúria será maior e isso não é culpa da religião, é culpa da sua execução de vida.
A religião faz sua parte, diz que família é importante, que ancestralidade é importante, que você deve ser uma boa pessoa para a sociedade, para sua família, para seus filhos e netos, justamente orientado a pessoa a crescer, a pensar no próximo e ser importante para os que seguirão a ele.
O culto de Egúngún representa essa lembrança de vida eterna, de que devemos ser cultuados por nossos parentes e familiares como uma pessoa boa e relevante, que devemos ter um bom caráter, trabalhar duro e realizar a prosperidade que todos esperam. A religião diz que temos que viver de forma exemplar para sermos lembrados e cultuados por nossos familiares com saudade e, dessa maneira, virarmos um Bàbá égun.
Digo e repito, essa religião tem em sua espinha dorsal a orientação para sermos pessoas boas, perfeitas como seres humanos. Se enganam os tolos ou idiotas que essa é uma religião sem ética.
Eu entendo que esse tipo de conhecimento e sentimento não foi introduzido aqui no Candomblé, as pessoas estão longe de entenderem isso e se comportarem na sociedade de forma adequada. Assim se uma família vive mal, não é por falta de orientação da religião, pelo contrário.
O próximo caso diz respeito aos problemas de parto. Uma das principais preocupações de toda gestante é com o processo de nascimento e o período de gestação. Em relação a isso temos algumas questões. A primeira diz, como já citei a questão a aleatoriedade, de que problemas podem ocorrer, devido ao acaso ou mesmo devido a vida desregrada e mal cuidada da gestante. A pessoa não preocupa com sua vida, corpo e saúde e depois sofre as consequências disso, mas, nem sempre é isso.
A gravidez está, sim, submetida ao mal teológico. As bruxas, as ajé (Àjẹ́) são as maiores responsáveis pelos problemas de gravidez e abortos. Lembro aos que tem algum entendimento que Àbíkú é aquele que nasce para morrer. Assim sendo, abortos não estão relacionados com Àbíkú e sim com ajé (Àjẹ́). Se não for devido uma causa muito natural então pode ser ajé (Àjẹ́). No Odù Ogbè Okanran, em Bascom, um verso descreve que ajé (Àjẹ́) bebe o sangue menstrual impedindo a mulher de ter filhos, mas, existem outras referências.
Um outro problema teológico é a dificuldade de engravidar ou esterilidade. A gravidez e a multiplicação da família é uma benção nesta religião. Com sinceridade, essa é a religião dos héteros e da família. O núcleo familiar é o centro da religião.
A religião oferece proteção para a fertilidade e para a gravidez de várias maneiras. Esterilidade sendo interrompida após sacrifícios e ebó (ẹbọ) está presente em todos os versos, quase todos. Este é o tema mais comum. Se a religião oferece centenas de liturgias para permitir a gravidez é porque ela, nem sempre, tem causas naturais. Se o problema pode ser resolvidos pelo supernatural é porque a origem da questão está no supernatural também. Nem toda solução é simples, podem ser questões que vão de impedimentos ligado ao destino pessoal de cada um até pragas, maldições ou feitiços.
Desta maneira a esterilidade e o aborto podem ser relacionados ao mal teológico.
Para finalizar eu explico que o objetivo dessas descrições e explicações foi mostrar o conceito de mal teológico, mas, também, mostrar que esta religião tem nos seus versos de Ifá, em mitos e na cultura da sociedade, explicações para as diversas situações que as pessoas passam por sofrimento e dificuldades na via.
Qual o sentido disso? Podem perguntar muitos que ainda não entenderam o objetivo disso. É simples, isso está no núcleo da missão das religiões. A religião tem que oferecer às pessoas esperança, conforto e também solução. As pessoas precisam entender de alguma forma o que se passa com elas de forma absoluta e de forma relativa às outras pessoas. O que faz as pessoas se inconformarem com sua vida não é a vida delas em si, somente, mas a vida das pessoas em volta dela.
A religião tem que oferecer um colo para elas, para elas não se sentirem derrotadas e infelizes, seus problemas precisam ser divididos e depois, a religião, deve oferecer a solução, a perspectiva de melhorar. A religião Yorùbá é feita também baseada nas 3 virtudes teológicas católicas: fé, esperança e caridade. Mas ela é muito mais efetiva em desenvolver essas virtudes junto às pessoas.
Sua efetividade está no aspecto de que elas fornecem a construção de entendimento, através de suas metáforas, mas, não apenas isso, ela entende isso como resultado de uma construção do supernatural e desta forma oferece uma solução através do supernatural para o problema. Assim sendo ou ela permite a pessoa entender o que ocorre com ela ou a ajuda a resolver. É isso o que uma religião deve fazer.
Religiões que desconhecem as necessidades das pessoas, que tentam se furtar de sua responsabilidade pelo mal teológico e que principalmente oferecem para as pessoas apenas a perspectiva do sofrimento contínuo e de que a vida eterna será melhor (o pós-vida dos católicos) ou que a próxima vida será melhor (os Kardecistas) basicamente são engôdos ao bem de nossa alma.
Alguns mais céticos podem argumentar que essas explicações são fantasiosas que é uma bobagem achar que bruxas marcam as pernas das pessoas ou que bebem o sangue menstrual e que existem explicações naturais e científicas para isso. Para essas pessoas eu digo que esse tipo de abordagem foi o que o círculo de Viena ofereceu como reação a séculos de domínio do cristianismo sobre a humanidade oprimindo, julgando e condenando pessoas. Lembro também que o nome da “ciência” para justificar as coisas é usado desde o século XVII e todos aqui sabem qual era essa ciência do século XVII. Se no século XVII aquela ciência tosca e idiota era usada para justificar as coisas, porque essa que temos hoje é melhor ou diferente?
Como expliquei no início o “vernier” do entendimento que regula a religião e a ciência para explicar o nosso mundo se move de um lado para o outro. Em um momento ele estava comprimindo a ciência, tudo era mistério, agora é o contrário, mas, o fato deste “vernier” estar assim não muda o mundo de verdade.
A religião tem a sua forma de explicar as coisas. Uma forma que qualquer pessoa pode entender, você não tem que ser cientista para entender a forma como a religião faz. Essa é grande diferença e, é claro, usar tudo o que o mundo natural e a ciência têm a oferecer para ajudar as pessoas e também oferecer o supernatural para resolver os problemas das pessoas.
Lembro a todos que não é incomum pessoas que tem problemas crônicos, que vão em médicos continuamente, tratando de tudo e de sintomas e somente se curam depois que passam por uma liturgia. São casos sem fim, normalmente é isso o que ocorre, a pessoa primeiro esgota o que a ciência pode fazer e ai ela, sem ter mais o que fazer vai no supernatural. Se o problema é sério, procure os dois, uma ajuda o outro.
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