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sábado, novembro 08, 2008

A religiosidade Yorùbá no Candomblé e Ifá A questão das trocas entre o ọ̀run (órun) e o àiyé

A religiosidade Yorùbá no Candomblé e Ifá

A questão das trocas entre o ọ̀run (órun) e o àiyé

Existe uma questão que sempre me perseguiu e talvez aconteça o mesmo com outras pessoas que estejam preocupadas com a religiosidade em si, aquela que deve estar presente nas pessoas que praticam uma religião.
Essa questão é a capacidade que deve ter o crente (aquela pessoa que diz professar aquela religião e que frequenta uma casa, igreja, templo) de qualquer religião em poder responder a uma pergunta muito simples, talvez a coisa mais elementar que é: O que ele faz dentro da religião? Qual a finalidade dele na religião? O que a religião traz para sua vida? Como a religião se incorpora na sua rotina diária? Qual o benefício de ter uma religião.
Parece um coisa muito simples de ser respondida por uma pessoa que se diz sacerdote, seguidor ou crente de uma religião, principalmente quando essa pessoa tem o objetivo de explicar isso para uma pessoa que não faça parte desta mesma religião. Não se trata de proselitismo. Um crente tem que ter a capacidade de motivar ou de explicar as suas motivações para um não crente, não com a intenção de convencer o outro a adotar a sua religião, mas, pelo menos, conseguir explicar os seus motivos nessa religião.
É claro que vou apresentar aqui a minha versão para isso e basicamente, é esta a questão de fundo que motiva tudo o que eu estou escrevendo. Contudo, antes disso, gostaria de explorar um pouco mais esse drama. Sim, o drama, no qual se transforma essa questão.
Eu penso que é muito normal a uma pessoa que está dentro de uma religião ter a capacidade de se expressar sobre os motivos que a levam a estar lá e que benefícios a religião traz à sua vida de uma maneira que, não só a pessoa pode explicar sua opção, como também, convencer outras desse caminho.
Não considero que essa seja uma questão culta, acadêmica ou teórica. Pelo contrário, acredito que estamos lidando com a questão mais simples que uma pessoa religiosa pode se confrontar.
A minha decepção é observar que isso é algo muito simples quando lidamos com evangélicos, católicos e muçulmanos, mas, quando estamos lidando com o Candomblé e com a Umbanda isso se torna, sem exagero, um transtorno mental. Deixando de lado a boa vontade e simpatia e se concentrando na argumentação em si, eu, até hoje, ouvi muito poucas, raríssimas, pessoas, que podiam se explicar sem caírem em lugares comuns, frases decoradas que não convenciam nem elas mesmas do que estavam fazendo.
Por exemplo, no caso do Candomblé qualquer resposta depois de alguns segundos de silêncio, uma expressão perplexa e aquele olhar profundo e perdido.... resulta em umas frases como: Eu amo meu orixá (òrìṣà) ou meu orixá (òrìṣà) é tudo para mim, O orixá (òrìṣà) é quem me dá caminho, etc... Nada de errado com essa manifestação de fé e carinho muito apropriadas a uma religião iniciática onde o orixá (òrìṣà) deve desempenhar um papel muito exemplar no imaginário do seguidor, mas, de forma nenhuma serviriam para explicar a alguém o motivo daquilo tudo ou convencer a sim mesmo do que está fazendo na religião.
No caso da Umbanda, o mais comum é a velha definição de que ela está ali para ter uma evolução espiritual, mas, prosseguindo com mais perguntas sobre o mesmo tema, não se consegue que a pessoa defina com clareza o que é esta evolução espiritual para ela.
Responder a primeira pergunta sobre um assunto exige um muito pouco de conhecimento e muitas vezes serve como resposta, até mesmo uma embromação, mas responder 3 ou 4 perguntas sucessivas sobre o mesmo assunto, aprofundando o tema, exige saber de fato o que se está falando. Assim, me transtorna um pouco ver tanta fé nas pessoas, se dedicando dias e noites a uma religião sem que se pudesse perceber se elas sabiam o que as mantêm ali.
Atenção, de novo, isso não pode ser um paradigma. Não podemos dizer que é complicado demais para as pessoas sem cultura ou formação, como as que eram e ainda são encontradas no Candomblé (isso tem mudado muito). Isso é apenas um estereótipo preconceituoso, e uma simplificação grosseira para justificar comportamentos inexplicáveis. Os evangélicos são uma população equivalente, em termos de classe social e educação (aliás muito piores porque para exercer uma religião daquelas só sendo muito idiota) e, estes, tem um domínio muito grande da sua religiosidade e também da sua teologia.
Vocês podem estar imaginando: e daí?
Qual a significância em se saber definir isso em palavras se o que importa é o que está no coração? Claro, essa é uma boa fuga para essa questão, mas, se fosse assim mesmo, só uma questão de se expressar oralmente, eu tenho certeza que a gente não veria tanta gente deixando o Candomblé e a Umbanda para se transformar em Evangélicos, deixando anos de dedicação para trás, sem significado nenhum e acreditando de fato que na Igreja conseguiu se encontrar com Deus, como já ouvi e li o relato de muitos. Sério, não estou exagerando. Não estava buscando definições acadêmicas ou formais, estava buscando apenas uma explicação que me convencesse de fato.
E mais, conversei com várias pessoas para entender como era a vida religiosa dela depois da sua iniciação ou mesmo para aquelas não iniciadas e que apenas frequentam um terreiro. Para meu espanto, fora a presença em obrigações aquilo era sempre um grande vazio interno sem explicações ou entendimentos. Aquela rotina de prática religiosa, se transformava em significado final da religião.
Vejam, estar presente em obrigações ou no seu terreiro fazendo tarefas domésticas não significa necessariamente que se está tendo uma vida religiosa. Existem muitos religiosos que vivem enclausurados em igrejas e conventos, mas, o trabalho doméstico é apenas uma necessidade em relação vida em comunidade, elas dedicam muito do seu tempo a religiosidade pessoal ou coletiva. A maior parte a rotina que envolve a presença em terreiros se traduz apenas em suporte às tarefas domésticas de uma casa compartilhada e não em prática religiosa.
Mas o que eu esperava obter?
Como já disse resposta simples, sinceras e que refletissem o envolvimento da alma daquela pessoa com a religião que ela adotou, que fosse uma coisa tão simples e natural e ao mesmo tempo calorosa que desse a quem ouvia a vontade de também participar daquela vida e crença religiosa. Que me permitisse compartilhar uma visão otimista da religião tornando as pessoas em seres humanos melhores.
Mas porque essa decepção?
A falta de orientação religiosa
Olha muitos motivos existem. O primeiro deles, sem dúvida, é a falta de formação e orientação religiosa dos ditos “sacerdotes” de Candomblé. De Umbanda então nem pensar. Eles abrem a boca para se auto nomearem sacerdotes de uma religião sem ao menos terem uma conduta consistente que justifique o emprego desses termos, seja o de sacerdote, seja o de religião.
Além disso, apesar de nossos inúmeros esforços em caracterizar de forma diferente, o Candomblé está hoje muito mais para uma religião de magia ou uma prática de magia do que uma religião. Como religião a sua prioridade são os ritos e liturgias e esse tema domina a formação e a preocupação das pessoas. Só o rito importa, só a forma e fazer melhor do que outro e saber mais ritos e segredos litúrgicos transforma aqueles pseudo-sacerdotes em pessoas melhores.
A qualificação de um sacerdote virou apenas o seu domínio por ritos e estes nem sempre podem ser totalmente associados a ritos religiosos. O dia a dia é dominado pela prática da magia para a obtenção de favores, para a correção de erros sem um questionamento do mérito de quem pede ou da moral do que é feito.
Tenham em mente que a prática do Candomblé envolve de fato as consultas ao oráculo, as liturgias posteriores a essa consulta e a realização de ritos e liturgias nos membros (obrigações) mas a vida em uma religião ou casa religiosa (terreiro) não pode ser resumir a isso. Antes de seguir vou explicar isso.
É um fundamento desta religião que a aliança que temos com deus, a nossa arca da aliança, é que deus nos ajuda e suporta em nossa vida. Antes de nascermos vamos a deus que pedimos para nascer de novo e explicamos qual será o nosso objetivo nessa vida. Olódùmarè, deus, nos concede a vida e nos dá instrumentos para vivermos e atingirmos nossos objetivos. Ele criou também os orixá (òrìṣà) para nos suportarem e serem o elemento de ligação com ele.
A aliança que temos com deus, Olódùmarè, é que vivemos para sermos felizes e que temos que ser pessoas boas, corretas e honradas, temos que ter um caráter exemplar e sermos úteis para a sociedade que vivemos.
Dessa forma a religião nos ensina e serve como esse elemento de reunião entre nós e os orixá (òrìṣà) e além disso existe um oráculo para que possamos nos comunicar com deus, com as divindades, com nosso anjo da guarda e ancestres para obter orientações e pedir ajuda. A existência de um oráculo e dos orixá (òrìṣà) deixa claro que nesta religião não existe essa visão de onisciência e onipresença de deus, como outras pregam.
Como parte da aliança de deus com a nossa vida feliz, o oráculo serve de instrumento para recebermos as bençãos de deus e ele indica que tipo de manipulações mágicas do supernatural devem ser feitas para podermos ter ajuda em nossos problemas. Essas manipulações das forças do supernatural são os ebós, trabalhos e liturgias que são feitos nos terreiros como consequência da consulta aos oráculos (búzios ou ifá).
Dessa maneira um terreiro é um lugar onde, como expliquei, podemos nos reunir com os orixá (òrìṣà) através dos Xirês, quando eles vem ao àiyé e podemos “vêlos” manifestados e ter contato com eles e receber suas bençãos (axé (aṣẹ́)). Também é onde podemos consultar o oráculo e fazer as manipulações mágicas do supernatural.
Um terreiro é deste forma um local com muito mais atividade religiosa do que um templo ou igreja e a razão disso está fundamentada nos princípios da religião. O terreiro faz o que faz porque a religião assim a demanda.
Tenho que lembrar a todos que uma das coisas que torna essa religião tão mais atrativa é esse sentido que temos nela contato com o divino, nós interagimos com os Orixá (Òrìṣà). As divindades não são figuras remotas que vemos em imagens ricamente decoradas, o Candomblé não tem imagens para representar Orixá (Òrìṣà). Imagens não fazem parte do nosso relicário, se alguma casa coloca imagens é apenas porque quer, as imagens de Orixá (Òrìṣà) não fazem parte de uma casa. Eles são representados por seus símbolos uma vez que eles estão constantemente presentes no nosso meio.
As preces que fazemos não são falas que se perdem no silêncio sem nenhuma resposta. Nós nos comunicamos com o nosso divino e somos atendidos. Nós temos o oráculo e a presença de Orixá (Òrìṣà), que no candomblé de raiz yorùbá não fala mas gesticula.
Dessa maneira os terreiros são lugares simples, mas, sob o ponto de vista religioso são um ponto de encontro real e efetivo do crente com a sua religião e tem funções muitos maiores do que outros templos, tem uma utilidade prática muito maior e muitos mais atividades litúrgicas.
Explicado isso fica mais fácil de entender um dos objetivos de uma religião que é o de nos ensinar a usar o supernatural e nos conectar com o divino. O Candomblé e seus terreiros dão pleno significado a essa definição, fica bem evidente entender porque a religião é necessária e porque não basta apenas acreditar em deus. Você precisa de todo o conhecimento da religião para primeiro, entender a proposta de sentido de vida que ela te oferece, isto é, o entendimento que esta religião te oferece para entender o supernatural e o significado dele, em nossas vidas, e depois te conectar com o divino através do oráculo e dos Xirês e, por fim, executar os procedimentos de manipulação do supernatural.
Claro que a base para tudo isso é entender que existe um supernatural, um divino, acima de nós, que essas energias e divindades podem ser acessadas e manipuladas e que deus quer que sejamos felizes em nossas vidas.
Aqueles que não acreditam no supernatural e no divino são os ateus e, claro existem religiões que não se propõe ou não entendem que existem energias a serem manipuladas. Na verdade as religiões que dizem que você apenas deve rezar não estão totalmente erradas, de fato rezar é um importante elemento de conexão com o divino e com o supernatural, o hermetismo e a alquimia já falaram disso, mas, existem formas também mais efetivas do que apenas rezar.
Depois de toda esta explicação espero que tenha ficado claro que ter um oráculo e fazer os ebós é parte importante e fundamental de uma casa religiosa de Candomblé e que isso esta alinhado com a base religiosa e tem como objetivo nos ajudar em nossa vida.
A tradição de atender pessoas comuns, que não fazem parte da casa, para o oráculo e ebós é comum, antiga e não é nenhum absurdo. A religião está aberta a todos, não existe motivo para um sacerdote deixar de atender que precisa porque Olódùmarè é deus para todos nós. O atendimento de consulentes sempre foi uma forma também de sustentar o terreiro. Dessa forma não existe nenhum tipo de restrição a isso.
Tem religiões que tem dízimo e recolhem contribuições no culto. O Candomblé não faz nada disso, mas, atende a pessoas com problemas na vida.
A execução das chamadas obrigações religiosas também faz parte da religião, são necessárias para a formação de sacerdotes. A pessoa para poder ser um intermediário entre os Orixá (Òrìṣà) e nós e fazer as manipulações energéticas do supernatural (ebós) tem que se preparar para isso.
Eu tenho um texto no blog que fala sobre essa questão de necessidade de obrigações e iniciações, de forma que, procure esse texto para saber minha opinião a respeito disso.
Dessa forma, fechando o assunto, ter um oráculo em funcionamento, fazer ebós e fazer obrigações são atividades importantes e necessárias de um terreiro de Candomblé.
A questão que trago aqui é que além disso um terreiro também é um lugar de formação religiosa, de transmissão de valores de formação humana. Tem que ser um lugar onde as pessoas vão também rezar e vão aprender o que a religião tem a oferecer para elas na sua formação do caráter ideal. É um lugar onde as pessoas têm que ir para conhecer qual é a proposta de visão transcendente para nossa vida na terra.
É nesse aspecto que os terreiros falham completamente. Eles se focam totalmente na primeira parte que descrevi, na prática da religião e deixam sem significado esta segunda parte que é o que as igrejas e templos se concentram porque não tem a primeira parte.
Um outro aspecto que deriva do foco apenas na primeira parte, da ação, é o desvio das funções de um terreiro e de seu dirigente da religião para se focar apenas nos ganhos é a ação sobre a espiritualidade.
Em Ifá o odù que nos traz ensinamento sobre isso é o odù IKA MEJI. O entendimento desse odù explica perfeitamente o que ocorre nos terreiros. Ika Meji é a inspiração religiosa, é a respiração profunda antes de rezar, é o acumular do axé (aṣẹ́), é quem lembra que a reza e palavra através dos oriki, versos de odù, provérbios, etc..) são o cavalo do oro o axé (aṣẹ́) não manifestado. Ika Meji fala do axé (aṣẹ́) latente do próprio ser que pode ser usado para crescer ou destruir.
Existem 2 signos filhos que representem bem esta situação, Ika Ogunda e Ogunda Ika. O primeiro representa esta essência de Ika meji, a de se concentrar na espiritualidade e religiosidade para acumular o axé (aṣẹ́), a ponto entre o ọ̀run (órun) e o àiyé, o equilíbrio, enquanto que ogunda ika é seu oposto quando a ação predomina a espiritualidade e se sente dificuldade em se conectar com o divino. Em ogunda ika a pessoa se perde em ações e se afasta do divino.
É o que ocorre em terreiros que apesar serem o ponto de contato com Orixá (Òrìṣà), se ocupa massivamente na atividade do oráculo, na execução de ebós, obrigações e no desvio disso, a prática mágica sem ética voltada para o enriquecimento pessoal.
Esse assunto, o da prática mágica aética ( na maior parte das vezes) e da ritualística é o que domina qualquer conversa envolvendo os praticantes e sacerdotes. Uma visita ao “dial” do rádio deixa isso bem claro. Encontramos programas católicos – poucos – evangélicos – muitos - e os de Candomblé. Enquanto nos primeiros existe uma preocupação com a pregação da palavra de Deus, do verbo, para os últimos é apenas uma hora de comércio e relacionamento.
Desta maneira a religião que existe e na qual se baseia o Candomblé se perde e é esquecida. Os conceitos religioso, a teologia e a teogonia ou mesmo a coisa mais simples, que é como eu iniciei qual o sentido para isso na vida das pessoas, o que esses sacerdotes pensam que estão trazendo para essas pessoas que os seguem, são apenas fragmentos, não ligados, que são ditos com brevidade, sempre, mais no sentido de mostrar que existe um fundamento maior por trás de tudo, a religião de fato, mas que ele nunca explica (não sabe o que falar), servindo apenas como uma isca ou como um elemento para despertar curiosidade e respeito. As pessoas entram na busca desse conhecimento que nunca vem, ai abandonam a religião, porque racionalmente reconhecem que esta religião tira delas mais do que dá.
A grande responsabilidade por isso é a própria formação dos referidos sacerdotes, voltada para o rito e o ganho pessoal através da prática da religião.
A preocupação por criar essa orientação religiosa, de fato, não existe e como a gente sempre diz, que só se pode dar aquilo que recebe, eles pouco ou nada tem a dar. Os que se incomodam com isso acabam usando os conhecimentos que adquiriram de outras religiões como o catolicismo ou o do Kardecismo para terem algum discurso religioso. Esse discurso passa então a ter nenhuma relação ou vinculo com sua própria religião. Além disso a prática mágica indiscriminada e sem ética e moral e que visa o seu ganho financeiro próprio acaba retirando dele todo o sentido de ética e moral que qualquer religião deve ter. Como essa pessoa vai pregar, ensinar ou cobrar algo de seus seguidores se a sua prática diária esta envolvida em fins que são completamente não éticos?
Mas muitos podem se levantar contra essas palavras e dizer que nem todos são assim, simples feiticeiros e que sua prática mágica e litúrgica tem sim uma base ética. OK, como em tudo existe exceção vamos aceitar que de existem esses grupos, mas, mesmo para esse grupo as afirmações principais se sustentam: a falta de orientação da base religiosa, a valorização da prática mágica e litúrgica.
A realidade do Candomblé é que apesar de ser uma tradição de uma religião de fato, de os seus ditos sacerdotes terem alguma noção disso e eles se autodenominarem sacerdotes e religiosos, a formação religiosa deles é nenhuma. Dessa maneira a sua capacidade de transmitir religiosidade para outros é igualmente nula. O que eles transmitem são ordens comuns, bom senso baseado em conveniência própria e conceitos religiosos que aprenderam de outras religiões basicamente a católica e espiritismo, que no fundo vira mais um sincretismo porque se junta com alguns conceitos que eles aprendem da religião africana.
No caso da Umbanda é um pouco distinto, porque a Umbanda é apenas uma prática ritual de fato, e a religião por trás disso pode ter muitas origens, sendo que a mais comum é o espiritismo que deriva do catolicismo. Como o espiritismo Kardecista é bastante doutrinado e codificado a tarefa dos seus sacerdotes é bem simplificada, mas igualmente mal executada.
Mas deixemos de lado um pouco essa questão que é farta de assunto e exemplos, e na minha visão indefensável para voltarmos para o praticante individual.
A vida religiosa de um praticante é então dominada pela ritualística e submissão hierárquica com pouco ou nenhuma orientação religiosa. Sua dedicação é dominada pela participação em obrigações próprias, de outros ou coletivas onde o seu papel varia de nenhum a algum. Toda a iniciativa ritual em um terreiro é dominada por poucos, um ou dois na maior parte das vezes cabendo aos demais o papel de figuração ou coro.
A rotina religiosa é repleta de festejos que criam assim um direcionamento estético e vaidosa para a presença da pessoa uma vez que não tendo ela um papel ou não consumindo o seu tempo com reflexões religiosas essa pessoa passa a dedicar o sei tempo ao culto do seu Ego e da sua vaidade no que faz. A vaidade é o que domina o Candomblé hoje.
A troca de favores usando o Órun (ọ̀run) e o Àiyé
Chegamos, por fim, a talvez uma das questões mais primárias disso tudo que é o contínuo processo de troca entre o ọ̀run (órun) e o àiyé, que domina o dia a dia das pessoas.
Esclarecendo a todos o Órun (ọ̀run) é o espaço supernatural e o àiyé é o espaço natural. O Órun (ọ̀run) é o lugar onde habitam os espíritos e o àiyé é basicamente o mundo terreno.
A troca significa que no àiyé as pessoas procuram através de liturgias e oferendas oferecer coisas esperando receber em troca disso favores dos espíritos do Órun (ọ̀run).
Isso é como os católicos que fazem promessas para obter favores em troca de penitências (aqui uma relação de sofrimento, no qual o Órun (ọ̀run) católico exige que a pessoa sofra e se puna para atendê-la?) ou os neo-pentecostais com sua doutrina de teologia da prosperidade, na qual deus “em pessoa” vai atender a tudo o que eles pedem, inclusive as maldades que pedem colocando nomes e fotos das pessoas dentro da bíblia.
As trocas, então, não são uma exclusividade de nenhuma religião e sim na natureza humana.
No Candomblé, este mecanismo domina tanto, a visão da pessoa que se associa a uma casa, como também a forma como a sociedade vê as casas e isso é muito ruim. É no mínimo curiosa a mentalidade que se constrói de que os espíritos e divindades no Órun (ọ̀run) estão ali, ávidos por receberem ebós e rapidamente, a troco de umas bolas de farinha ajudar as pessoas no àiyé.
Sem dúvida a visão do mundo de cada religião é distinta e isso direciona a forma como as pessoas vivem. Se você olha uma religião reencarnacionista e cármica como o budismo e kardecismo, por exemplo, que pregam que viver é um sofrimento e você nasce, na realidade, fazendo um “curso” de sofrimento para não mais renascer, esta pessoa vai pautar sua vida justamente seguindo esta sina, de “viver” essas dificuldades para que elas não apareçam mais e também sendo forçosamente caridosos para acumular pontos positivos nessa vida.
Eu acho que o budismo deve fazer um bom trabalho nas pessoas, buscando o melhor delas, apesar de eu não gostar da filosofia como um todo. Mas o Kardecismo não tem filosofia do budismo e se caracteriza pela orientação à caridade, na maior parte das vezes não sincera, como uma obrigação de vida. Contudo, o que eu quero dizer aqui, mais uma vez, e enfaticamente, é que a prática sincera de uma religião direciona a forma como as pessoas vivem e como encaram a sua existência.
A religião Yorùbá tem como característica dizer para as pessoas que elas nascem para ser felizes e elas devem viver felizes. Ela também reconhece que o mundo tem muitas dificuldades e coloca o divino, através de orixá (Òrìṣà) e outros espíritos disponíveis para ajudar as pessoas a vencer os obstáculos que as impedem se ser felizes.
Desta maneira o Candomblé tem esta veia assistencialista na sua estrutura. Mas o objetivo disso não é no que isto se transformou na prática. A religião quer as pessoas felizes e ela suporta isso através do equilíbrio e reposição de axé (aṣẹ́), que é a forma como a religião entende que você obtêm as condições para ter condições para resolver seus problemas. A religião entende que a pessoa deve ter energia, uma boa cabeça para tomar boas decisões, um bom caráter, ética e sorte na vida. Mas acima de tudo a religião diz que a pessoa deve ter boas pernas, porque sem boas pernas você não realiza nada.
A visão dela é muito direta, nós temos que resolver nossos problemas, o preguiçoso não vai ter nada na vida. Não adianta você se sentar e esperar que as coisas ocorram, se você quiser realizar alguma coisa faça algo por vocês. Se quiser ter dinheiro, trabalhe, se quiser comer, plante, se quiser resolver problemas e conflitos busque a solução. Não existe incentivo para a preguiça, para a leniência e para a pessoa resolver seus problemas com trocas e feitiços.
Existe uma frase muito boa que diz que seu orixá (Òrìṣà) não vai impedir que você chore suas lágrimas, mas, estará junto de você para enxugá-las. As trocas entre o Órun (ọ̀run) e o Àiyé existem, sempre com este sentido de dar a você as melhores condições para realizar, trabalhar, ter saúde, ter determinação e também para eliminar dificuldade ou negatividades que não lhe pertencem.
Se você passa anos plantando e regando um problema, você vai colher o seu problema. O que saiu da sua mão é seu, usufrua dele. Não adianta esperar ajuda divina para uma coisa que você mesmo criou para você. Mas, existem situações que não nos pertencem, existem problemas que não procuramos, existem negatividade que nos são direcionadas por outras pessoas por sentimentos que não fomos responsáveis diretos e nem por nossas ações.
Essas coisas, que não nos pertencem e que não cultivamos, são as coisas que são mais facilmente resolvidas pelo sistema de troca.
Mas, o ser humano é muito obtuso e muito focado em seus objetivos. A maior parte não está interessada em “viver” sua religiosidade. A vida do praticante do Candomblé é dominada pelo sentido de alia naquela casa ela estará próxima deste processo de troca contínua de bens e favores entre o ọ̀run (órun) e o àiyé com o objetivo de resolver todos os seus problemas materiais.
O supermercado religioso do Candomblé é a tônica principal da compreensão que se estabelece do que seja a religião dos orixá (Òrìṣà) e isso é tão forte que permeia o grupo dos frequentadores e mais, se alastra por toda a sociedade. As casas da religião são rotuladas como casas de trabalho, lugares onde se paga para resolver problemas e, na maioria delas sem muita ética envolvida.
Assim, baseado no fato de que a pessoa é dedicada ao seu orixá (òrìṣà), que vai no seu terreiro para varrer o chão e passar roupa, ela entende que é merecedora de favores do plano divino. Oferendas e ebós são os elementos de troca que buscam dar coisas para que a pessoa receba em troca favores, que vão resolver o seu problema, trazer benefícios e criar atalhos para a sua vida.
A questão do comportamento, do mérito como base para se poder alcançar algo na vida ficam sempre para segundo (ou nenhum) plano. Entende-se que o processo mágico das oferendas ou de obrigações é o mais do que necessário para se obter o que precisa. Entendesse que uma pessoa que faça seu orixá vai ter que receber em troca emprego, dinheiro e uma vida melhor. Se isso não foi alcançado é porque o sacerdote que procurou é ruim, seu santo foi mal feito, etc...
O mais incrível é a pessoa entrar para uma religião que ela imagina que as divindade que ela acha tão maravilhosa se vendem por um punhado de grãos para fazer qualquer coisa, ou mesmo, que ficam lá sem ter o que fazer a não ser facilitar a vida das pessoas aqui no àiyé.
O merecimento, ou a falta dele, é sempre lembrado como motivo para justificar o não benefício, geralmente por quem vendeu a liturgia para o favor ser atingido. Nessa hora a pessoa não obteve porque não merecia. Mas nunca lembrado quando o contrário ocorre, quando o benefício é atingido, nesse momento o mérito é de quem fez a liturgia. A medida do sucesso na obtenção de benefícios e prosperidade é a que justifica a permanência de alguém em uma casa. Se as coisas não vão bem elas se vão.
Afirmo que este é um desvio da religião. Ela não existe com essa finalidade e essas almas pobres que assim se situam estão completamente perdidas em relação ao o que é a religião. Não tenho dúvida que esta distorção de visão começou quando as pessoas começaram a comercializar o axé (aṣẹ́). O que deveria ser uma coisa restrita para as pessoas de uma casa passou a estar à venda para quem pudesse pagar.
O sacerdote usando os conhecimentos a que tem acesso se transformou apenas em um feiticeiro, um fazedor duvidoso de favores. Na vida real, como no cinema, toda força mágica tem 2 usos, o do bem e o do mal. A comercialização de ebós e feitiços é apenas um mau uso disso, é o uso do lado ruim.
Um religioso, um sacerdote é uma pessoa do bem. Ele não pode se prestar a anunciar serviços mágicos ao alcance de qualquer pessoa.
Na minha visão uma religião baseada em um sistema de trocas é o caminho certo para o seu fracasso. As pessoas que se envolvem com uma religião como o Candomblé não podem viver com essa perspectiva. Uma religião não pode se focar ou incentivar esse comportamento porque jamais as pessoas vão se encontrar ou entender o que estão fazendo lá.
Mais ainda, a falta de estrutura religiosa que permita a frequência e participação de pessoas não iniciadas em terreiros junto com a contínua pressão para que todos sejam iniciados é um problema crônico que mais afasta do que aproxima.
O Candomblé não será uma religião se não criar categorias para diversos níveis de envolvimento e iniciação. Quando os terreiros tiverem que conviver harmoniosamente com pessoas que não querem ou que jamais farão o seu orixá (Òrìṣà) eles conseguiram enfim achar um caminho religioso para sia existência. Hoje essa convivência é um estágio intermediário no qual a pessoa é continuamente empurrada ou incentivada a trocar de status de abian para iyawo.
A manutenção de terreiros através de clientelismo religioso é mais um outro mal. Esse processo de troca entre ọ̀run (órun) e aiyé deve acabar e isto ser um bem intrínseco da religião e não explícito. O aspecto da troca esta presente em todas as religiões em maior ou menor grau. Você dedica tempo, fé e recursos e espera do ọ̀run (órun), do sagrado, um retorno para a sua vida. Isso é natural, mas, algumas religiões moldarem isso com sabedoria, como a católica outras transformaram isso na sua bandeira como os evangélicos, mas que junto com a promessa de benefícios traz uma enorme dose de doutrina, dogma, moral e ética.
A perspectiva materialista
Na umbanda e Candomblé isso fica quase apenas na perspectiva materialista. O principal exemplo desse paradigma é a Umbanda. Como já expliquei aqui antes a Umbanda por si só não se caracteriza nenhuma religião. È um processo de possessão voltado em princípio para ajudar outras pessoas mas que deve se basear em alguma doutrina religiosa, qualquer uma porque a prática da Umbanda exige mediunidade e não uma crença religiosa específica. Assim existem muitas umbandas, cada uma com uma combinação e entre comum apenas a incorporação com espíritos.
Os médiuns e principalmente os frequentadores se fixam sempre na solução de problemas da vida e materiais. A frequência é determinada por isso e todos os que ali estão querem resolver algo novo toda semana. “Macumba boa é aquela que funciona”. As respostas a pergunta chave geralmente se traduzem em algo do tipo que a pessoa está ali para elevação espiritual, mas essa resposta não sobrevive a uma segunda pergunta do tipo o que significa para ela essa elevação espiritual, como aquilo se traduzira na vida dela?
Esse problema não é exclusivamente do Candomblé. Esta muito presente também nos neo-pentecostais, contudo, apesar do muito excessos eles conseguem algum equilíbrio entre a realização espiritual e o sentimento de realização material. Tanto que as pessoa migram do Candomblé e Umbanda para eles.
Existe um tipo de pessoa e uma determinada faixa da população que coloca claramente essa questão material na frente da sua religião. Elas na realidade vão estar sempre buscando alguém que resolva os seus problemas e serão uma população migratória entre doutrinas e casas na busca de solução.
O circulo virtuoso
Eu poderia traduzir assim o círculo virtuoso. Uma pessoa que se dedica a essa religião deve encontrar base e orientação para através do contato com esse divino, através de exemplos e através de orientação, atingir um equilíbrio em sua vida na forma como a conduz e na forma como dedica o seu tempo para objetivos de realização. Equilíbrio é a principal palavra que traduz essa religião.
Uma pessoa religiosa é aquela que vive nesse mundo com a fé no divino. Uma fé forte e presente que a faz saber que sua vida existência está sendo submetida e é controlada por uma força maior do que a dos homens, por uma lei maior do que a dos homens. Assim essa pessoa vive com a convicção de que não esta sozinha nesse mundo, o divino no ọ̀run (órun) esta sempre a zelar por ele. Uma pessoa de fé sabe que o mundo e as coisas são controladas pelo divino e não pela mesquinharia dos homens.
Essa pessoa vai se transformar em uma pessoa melhor para consigo mesma obtendo equilíbrio na forma como vive sua vida e se dedica a seus objetivos com ética e caráter. O seu orixá (òrìṣà) e ori vão buscar não somente ajudá-lo nesse equilíbrio como também ajudá-lo a enfrentar as diversidades de sua vida, amenizando problemas, e tornando-o transparente para seus inimigos. A própria conduta dessa pessoa, equilibrada consigo mesmo vai evitar que ela cria inimigos para sí.
O seu ori vai protegê-lo dos ajogun, os males que estão nesse mundo e que fogem ao nosso controle. A sua boa conduta vai permitir que oportunidades de abram em sua vida, que ele as veja e que consiga se aproveitar delas. Os caminhos dessa pessoa se abrem através do seu mérito como pessoa e através da proteção do divino para aquelas coisas que não forem plantadas por você mesmo.
Você como uma pessoa melhor vai ter condições de ajudar sua família e trazer também para ela esse equilíbrio. Mais pessoas assim serão beneficiadas por sua ação. O benefício para a família é um dos principais objetivos que uma pessoa deve ter em sua vida, seja por mantê-la unida seja por vê-la prosperar.
Uma vez atingido esse estágio você tera condições de ajudar a sociedade que o cerca, tendo assim conhecimento e experiência para transmitir para outras pessoas, ajudando a transformar e melhorar o mundo em que vive.
Uma pessoa religiosa deve ter uma prática diária dessa religiosidade. A oração é o elemento de ligação entre o aiyé e o ọ̀run (órun). As palavras empregadas e sua repetição é o que o fazem. Uma pessoa deve de Fé deve estar ligada ao ọ̀run (órun) e deve ter em sua vida a prática da oração.
Além disso a pessoa que vive com Fé deve se lembrar desse divino ao longo do seu dia. Seja quando tem uma dificuldade seja quando algo de bom ocorre com ele porque o mesmo ouvido que serve para ouvir pedidos de proteção e ajuda também serve para ouvir agradecimento.
Uma pessoa de Fé deve ter uma prática religiosa diária e semanal para si que não dependa do sei terreiro para que ela busque através dessa ligação com o ọ̀run (órun) o equilíbrio e o Iwa pele que vão trazer tudo de bom para a sua vida.
Uma pessoa de Fé deve saber como se dirigir a seu orixá (òrìṣà) e Ori e como receber deles as mensagens que precisa para poder viver melhor o seu dia e vida.

3 comentários:

  1. Anônimo16:56:00

    Devo dizer esse post eh um dos melhores senao o melhor e mais liberador que jah li sobre o assunto. Cansado de depender do oujtro pra ter Olodumare em minha vida e casado tambem de culpar os outros e o orixa pelas derrotas, ah e cansado tambem de nao ser considerado da religiao porque sou abian. Te agradeco imensamente pela coragem e inteligencia!

    A...

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  2. Anônimo13:15:00

    Perfeito!!!

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  3. Muito esclarecedor e com um linguajar perfeito!

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