A religiosidade Yorùbá no Candomblé e Ifá
A questão das trocas entre o ọ̀run (órun) e o àiyé
Existe
uma questão que sempre me perseguiu e talvez aconteça o mesmo com
outras pessoas que estejam preocupadas com a religiosidade em
si, aquela que deve estar presente nas pessoas que praticam uma
religião.
Essa
questão é a capacidade que deve ter o crente (aquela
pessoa que diz professar aquela religião e que frequenta uma casa,
igreja, templo) de qualquer religião em poder responder a uma
pergunta muito simples, talvez a coisa mais elementar que é: O
que ele faz dentro da religião? Qual a finalidade dele na
religião? O que a religião traz para sua vida? Como a religião se
incorpora na sua rotina diária? Qual o benefício de ter uma
religião.
Parece
um coisa muito simples de ser respondida por uma pessoa que se diz
sacerdote, seguidor
ou crente de uma religião, principalmente quando essa
pessoa tem o objetivo de explicar isso para uma pessoa que não faça
parte desta mesma religião. Não se trata de proselitismo. Um crente
tem que ter a capacidade de motivar ou de explicar as suas motivações
para um não crente, não com a intenção de convencer o outro a
adotar a sua religião, mas, pelo menos, conseguir explicar os seus
motivos nessa religião.
É
claro que vou apresentar aqui a minha versão para isso e
basicamente, é esta a questão de fundo que motiva tudo o que eu
estou escrevendo. Contudo, antes disso, gostaria de explorar um pouco
mais esse drama. Sim, o drama, no qual se transforma essa questão.
Eu
penso que é muito normal a uma pessoa que está dentro de uma
religião ter a capacidade de se expressar sobre os motivos que a
levam a estar lá e que benefícios a religião traz à sua vida de
uma maneira que, não só a pessoa pode explicar sua opção, como
também, convencer outras desse caminho.
Não
considero que essa seja uma questão culta, acadêmica ou teórica.
Pelo contrário, acredito que estamos lidando com a questão mais
simples que uma pessoa religiosa pode se confrontar.
A
minha decepção é observar que isso é algo muito simples quando
lidamos com evangélicos, católicos e muçulmanos, mas, quando
estamos lidando com o Candomblé e com a Umbanda isso se torna, sem
exagero, um transtorno mental. Deixando de lado a boa vontade e
simpatia e se concentrando na argumentação em si, eu, até hoje,
ouvi muito poucas, raríssimas, pessoas, que podiam se explicar sem
caírem em lugares comuns, frases decoradas que não convenciam nem
elas mesmas do que estavam fazendo.
Por
exemplo, no caso do Candomblé qualquer resposta depois de alguns
segundos de silêncio, uma expressão perplexa e aquele olhar
profundo e perdido.... resulta em umas frases como: Eu amo meu orixá
(òrìṣà) ou meu orixá (òrìṣà) é tudo para mim, O orixá
(òrìṣà) é quem me dá caminho, etc... Nada de errado com essa
manifestação de fé e carinho muito apropriadas a uma religião
iniciática onde o orixá (òrìṣà) deve desempenhar um papel
muito exemplar no imaginário do seguidor, mas, de forma nenhuma
serviriam para explicar a alguém o motivo daquilo tudo ou convencer
a sim mesmo do que está fazendo na religião.
No
caso da Umbanda, o mais comum é a velha definição de que ela está
ali para ter uma evolução espiritual, mas, prosseguindo com mais
perguntas sobre o mesmo tema, não se consegue que a pessoa defina
com clareza o que é esta evolução espiritual para ela.
Responder
a primeira pergunta sobre um assunto exige um muito pouco de
conhecimento e muitas vezes serve como resposta, até mesmo uma
embromação, mas responder 3 ou 4 perguntas sucessivas sobre o mesmo
assunto, aprofundando o tema, exige saber de fato o que se está
falando. Assim, me transtorna um pouco ver tanta fé nas pessoas, se
dedicando dias e noites a uma religião sem que se pudesse perceber
se elas sabiam o que as mantêm ali.
Atenção,
de novo, isso não pode ser um paradigma. Não podemos dizer que é
complicado demais para as pessoas sem cultura ou formação, como as
que eram e ainda são encontradas no Candomblé (isso tem mudado
muito). Isso é apenas um estereótipo preconceituoso, e uma
simplificação grosseira para justificar comportamentos
inexplicáveis. Os evangélicos são uma população equivalente, em
termos de classe social e educação (aliás muito piores porque para
exercer uma religião daquelas só sendo muito idiota) e, estes, tem
um domínio muito grande da sua religiosidade e também da sua
teologia.
Vocês
podem estar imaginando: e daí?
Qual
a significância em se saber definir isso em palavras se o que
importa é o que está no coração? Claro, essa é uma boa fuga para
essa questão, mas, se fosse assim mesmo, só uma questão de se
expressar oralmente, eu tenho certeza que a gente não veria tanta
gente deixando o Candomblé e a Umbanda para se transformar em
Evangélicos, deixando anos de dedicação para trás, sem
significado nenhum e acreditando de fato que na Igreja conseguiu se
encontrar com Deus, como já ouvi e li o relato de muitos. Sério,
não estou exagerando. Não estava buscando definições acadêmicas
ou formais, estava buscando apenas uma explicação que me
convencesse de fato.
E
mais, conversei com várias pessoas para entender como era a vida
religiosa dela depois da sua iniciação ou mesmo para aquelas não
iniciadas e que apenas frequentam um terreiro. Para meu espanto, fora
a presença em obrigações aquilo era sempre um grande vazio interno
sem explicações ou entendimentos. Aquela rotina de prática
religiosa, se transformava em significado final da religião.
Vejam,
estar presente em obrigações ou no seu terreiro fazendo tarefas
domésticas não significa necessariamente que se está tendo uma
vida religiosa. Existem muitos religiosos que vivem enclausurados em
igrejas e conventos, mas, o trabalho doméstico é apenas uma
necessidade em relação vida em comunidade, elas dedicam muito do
seu tempo a religiosidade pessoal ou coletiva. A maior parte a rotina
que envolve a presença em terreiros se traduz apenas em suporte às
tarefas domésticas de uma casa compartilhada e não em prática
religiosa.
Mas
o que eu esperava obter?
Como
já disse resposta simples, sinceras e que refletissem o envolvimento
da alma daquela pessoa com a religião que ela adotou, que fosse uma
coisa tão simples e natural e ao mesmo tempo calorosa que desse a
quem ouvia a vontade de também participar daquela vida e crença
religiosa. Que me permitisse compartilhar uma visão otimista da
religião tornando as pessoas em seres humanos melhores.
Mas
porque essa decepção?
A
falta de orientação religiosa
Olha
muitos motivos existem. O primeiro deles, sem dúvida, é a falta de
formação e orientação religiosa dos ditos “sacerdotes” de
Candomblé. De Umbanda então nem pensar. Eles abrem a boca para se
auto nomearem sacerdotes de uma religião sem ao menos terem uma
conduta consistente que justifique o emprego desses termos, seja o de
sacerdote, seja o de religião.
Além
disso, apesar de nossos inúmeros esforços em caracterizar de forma
diferente, o Candomblé está hoje muito mais para uma religião de
magia ou uma prática de magia do que uma religião. Como religião a
sua prioridade são os ritos e liturgias e esse tema domina a
formação e a preocupação das pessoas. Só o rito importa, só a
forma e fazer melhor do que outro e saber mais ritos e segredos
litúrgicos transforma aqueles pseudo-sacerdotes em pessoas melhores.
A
qualificação de um sacerdote virou apenas o seu domínio por ritos
e estes nem sempre podem ser totalmente associados a ritos
religiosos. O dia a dia é dominado pela prática da magia para a
obtenção de favores, para a correção de erros sem um
questionamento do mérito de quem pede ou da moral do que é feito.
Tenham
em mente que a prática do Candomblé envolve de fato as consultas ao
oráculo, as liturgias posteriores a essa consulta e a realização
de ritos e liturgias nos membros (obrigações) mas a vida em uma
religião ou casa religiosa (terreiro) não pode ser resumir a isso.
Antes de seguir vou explicar isso.
É
um fundamento desta religião que a aliança que temos com deus, a
nossa arca da aliança, é que deus nos ajuda e suporta em nossa
vida. Antes de nascermos vamos a deus que pedimos para nascer de novo
e explicamos qual será o nosso objetivo nessa vida. Olódùmarè,
deus, nos concede a vida e nos dá
instrumentos para vivermos e atingirmos nossos objetivos. Ele criou
também os orixá (òrìṣà)
para nos suportarem e serem o
elemento de ligação com ele.
A
aliança que temos com deus, Olódùmarè,
é que vivemos para sermos
felizes e que temos que ser pessoas boas, corretas e honradas, temos
que ter um caráter exemplar e sermos úteis para a sociedade que
vivemos.
Dessa
forma a religião nos ensina e serve como esse elemento de reunião
entre nós e os orixá (òrìṣà)
e além disso existe um oráculo
para que possamos nos comunicar com deus, com as divindades, com
nosso anjo da guarda e ancestres para obter orientações e pedir
ajuda. A existência de um oráculo e dos orixá
(òrìṣà)
deixa claro que nesta religião
não existe essa visão de onisciência e onipresença de deus, como
outras pregam.
Como
parte da aliança de deus com a nossa vida feliz, o oráculo serve de
instrumento para recebermos as bençãos de deus e ele indica que
tipo de manipulações mágicas do supernatural devem ser feitas para
podermos ter ajuda em nossos problemas. Essas manipulações das
forças do supernatural são os ebós, trabalhos e liturgias que são
feitos nos terreiros como consequência da consulta aos oráculos
(búzios ou ifá).
Dessa
maneira um terreiro é um lugar onde, como expliquei, podemos nos
reunir com os orixá (òrìṣà)
através dos Xirês, quando
eles vem ao àiyé
e
podemos “vêlos” manifestados e ter contato com eles e receber
suas bençãos (axé (aṣẹ́)). Também é onde podemos consultar o
oráculo e fazer as manipulações mágicas do supernatural.
Um
terreiro é deste forma um local com muito mais atividade religiosa
do que um templo ou igreja e a razão disso está fundamentada nos
princípios da religião. O terreiro faz o que faz porque a religião
assim a demanda.
Tenho
que lembrar a todos que uma das coisas que torna essa religião tão
mais atrativa é esse sentido que temos nela contato com o divino,
nós interagimos com os Orixá
(Òrìṣà). As
divindades não são figuras remotas que vemos em imagens ricamente
decoradas, o Candomblé não tem imagens para representar Orixá
(Òrìṣà). Imagens
não fazem parte do nosso relicário, se alguma casa coloca imagens é
apenas porque quer, as imagens de Orixá
(Òrìṣà) não
fazem parte de uma casa. Eles são representados por seus símbolos
uma vez que eles estão constantemente presentes no nosso meio.
As
preces que fazemos não são falas que se perdem no silêncio sem
nenhuma resposta. Nós nos comunicamos com o nosso divino e somos
atendidos. Nós temos o oráculo e a presença de Orixá
(Òrìṣà), que
no candomblé de raiz yorùbá não fala mas gesticula.
Dessa
maneira os terreiros são lugares simples, mas, sob o ponto de vista
religioso são um ponto de encontro real e efetivo do crente com a
sua religião e tem funções muitos maiores do que outros templos,
tem uma utilidade prática muito maior e muitos mais atividades
litúrgicas.
Explicado
isso fica
mais fácil de entender um dos objetivos de uma religião que é o de
nos ensinar a usar o supernatural e nos conectar com o divino. O
Candomblé e seus terreiros dão pleno significado a essa definição,
fica bem evidente entender porque a religião é necessária e porque
não basta apenas acreditar em deus. Você precisa de todo o
conhecimento da religião para primeiro, entender a proposta de
sentido de vida que ela te oferece, isto é, o entendimento que esta
religião te oferece para entender o supernatural e o significado
dele, em nossas vidas, e depois te conectar com o divino através do
oráculo e dos Xirês e, por fim, executar os procedimentos de
manipulação do supernatural.
Claro
que a base para tudo isso é entender que existe um supernatural, um
divino, acima de nós, que essas energias e divindades podem ser
acessadas e manipuladas e que deus quer que sejamos felizes em nossas
vidas.
Aqueles
que não acreditam no supernatural e no divino são os ateus e, claro
existem religiões que não se propõe ou não entendem que existem
energias a serem manipuladas. Na verdade as religiões que dizem que
você apenas deve rezar não estão totalmente erradas, de fato rezar
é um importante elemento de conexão com o divino e com o
supernatural, o hermetismo e a alquimia já falaram disso, mas,
existem formas também mais efetivas do que apenas rezar.
Depois
de toda esta explicação espero que tenha ficado claro que ter um
oráculo e fazer os ebós é parte importante e fundamental de uma
casa religiosa de Candomblé e que isso esta alinhado com a base
religiosa e tem como objetivo nos ajudar em nossa vida.
A
tradição de atender pessoas comuns, que não fazem parte da casa,
para o oráculo e ebós é comum, antiga e não é nenhum absurdo. A
religião está aberta a todos, não existe motivo para um sacerdote
deixar de atender que precisa porque Olódùmarè
é
deus para todos nós. O atendimento de consulentes sempre foi uma
forma também de sustentar o terreiro. Dessa forma não existe nenhum
tipo de restrição a isso.
Tem
religiões que tem dízimo e recolhem contribuições no culto. O
Candomblé não faz nada disso, mas, atende a pessoas com problemas
na vida.
A
execução das chamadas obrigações religiosas também faz parte da
religião, são necessárias para a formação de sacerdotes. A
pessoa para poder ser um intermediário entre os Orixá
(Òrìṣà) e
nós e fazer as manipulações energéticas do supernatural (ebós)
tem que se preparar para isso.
Eu
tenho um texto no blog que fala sobre essa questão de necessidade de
obrigações e iniciações, de forma que, procure esse texto para
saber minha opinião a respeito disso.
Dessa
forma, fechando o assunto, ter um oráculo em funcionamento, fazer
ebós e fazer obrigações são atividades importantes e necessárias
de um terreiro de Candomblé.
A
questão que trago aqui é que além disso um terreiro também é um
lugar de formação religiosa, de transmissão de valores de formação
humana. Tem que ser um lugar onde as pessoas vão também rezar e vão
aprender o que a religião tem a oferecer para elas na sua formação
do caráter ideal. É um lugar onde as pessoas têm que ir para
conhecer qual é a proposta de visão transcendente para nossa vida
na terra.
É
nesse aspecto que os terreiros falham completamente. Eles se focam
totalmente na primeira parte que descrevi, na prática da religião e
deixam sem significado esta segunda parte que é o que as igrejas e
templos se concentram porque não tem a primeira parte.
Um
outro aspecto que deriva do foco apenas na primeira parte, da ação,
é o desvio das funções de um terreiro e de seu dirigente da
religião para se focar apenas nos ganhos é a ação sobre a
espiritualidade.
Em
Ifá o odù que nos traz ensinamento sobre isso é o odù IKA MEJI. O
entendimento desse odù explica perfeitamente o que ocorre nos
terreiros. Ika Meji é a inspiração religiosa, é a respiração
profunda antes de rezar, é o acumular do axé
(aṣẹ́), é
quem lembra que a reza e palavra através dos oriki, versos de odù,
provérbios, etc..) são o cavalo do oro o axé
(aṣẹ́) não
manifestado. Ika Meji fala do axé
(aṣẹ́) latente
do próprio ser que pode ser usado para crescer ou destruir.
Existem
2 signos filhos que representem bem esta situação, Ika Ogunda e
Ogunda Ika. O primeiro representa esta essência de Ika meji, a de se
concentrar na espiritualidade e religiosidade para acumular o axé
(aṣẹ́), a
ponto entre o ọ̀run
(órun) e o àiyé, o
equilíbrio,
enquanto
que ogunda ika é seu oposto quando a ação predomina a
espiritualidade e se sente dificuldade em se conectar com o divino.
Em ogunda ika a pessoa se perde em ações e se afasta do divino.
É
o que ocorre em terreiros que apesar serem o ponto de contato com
Orixá
(Òrìṣà), se
ocupa massivamente na atividade do oráculo, na execução de ebós,
obrigações e no desvio disso, a prática mágica sem ética voltada
para o enriquecimento pessoal.
Esse
assunto, o da prática mágica aética ( na maior parte das vezes) e
da ritualística é o que domina qualquer conversa envolvendo os
praticantes e sacerdotes. Uma visita ao “dial” do rádio deixa
isso bem claro. Encontramos programas católicos – poucos –
evangélicos – muitos - e os de Candomblé. Enquanto nos primeiros
existe uma preocupação com a pregação da palavra de Deus, do
verbo, para os últimos é apenas uma hora de comércio e
relacionamento.
Desta
maneira a religião que existe e na qual se baseia o Candomblé se
perde e é esquecida. Os conceitos religioso, a teologia e a teogonia
ou mesmo a coisa mais simples, que é como eu iniciei qual o
sentido para isso na vida das pessoas, o que esses sacerdotes
pensam que estão trazendo para essas pessoas que os seguem, são
apenas fragmentos, não ligados, que são ditos com brevidade,
sempre, mais no sentido de mostrar que existe um fundamento maior por
trás de tudo, a religião de fato, mas que ele nunca explica (não
sabe o que falar), servindo apenas como uma isca ou como um elemento
para despertar curiosidade e respeito. As pessoas entram na busca
desse conhecimento que nunca vem, ai abandonam a religião, porque
racionalmente reconhecem que esta religião tira delas mais do que
dá.
A
grande responsabilidade por isso é a própria formação dos
referidos sacerdotes, voltada para o rito e o ganho pessoal através
da prática da religião.
A
preocupação por criar essa orientação religiosa, de fato, não
existe e como a gente sempre diz, que só se pode dar aquilo que
recebe, eles pouco ou nada tem a dar. Os que se incomodam com isso
acabam usando os conhecimentos que adquiriram de outras religiões
como o catolicismo ou o do Kardecismo para terem algum discurso
religioso. Esse discurso passa então a ter nenhuma relação ou
vinculo com sua própria religião. Além disso a prática mágica
indiscriminada e sem ética e moral e que visa o seu ganho financeiro
próprio acaba retirando dele todo o sentido de ética e moral que
qualquer religião deve ter. Como essa pessoa vai pregar, ensinar ou
cobrar algo de seus seguidores se a sua prática diária esta
envolvida em fins que são completamente não éticos?
Mas
muitos podem se levantar contra essas palavras e dizer que nem todos
são assim, simples feiticeiros e que sua prática mágica e
litúrgica tem sim uma base ética. OK, como em tudo existe exceção
vamos aceitar que de existem esses grupos, mas, mesmo para esse grupo
as afirmações principais se sustentam: a falta de orientação da
base religiosa, a valorização da prática mágica e litúrgica.
A
realidade do Candomblé é que apesar de ser uma tradição de uma
religião de fato, de os seus ditos sacerdotes terem alguma noção
disso e eles se autodenominarem sacerdotes e religiosos, a formação
religiosa deles é nenhuma. Dessa maneira a sua capacidade de
transmitir religiosidade para outros é igualmente nula. O que eles
transmitem são ordens comuns, bom senso baseado em conveniência
própria e conceitos religiosos que aprenderam de outras religiões
basicamente a católica e espiritismo, que no fundo vira mais um
sincretismo porque se junta com alguns conceitos que eles aprendem da
religião africana.
No
caso da Umbanda é um pouco distinto, porque a Umbanda é apenas uma
prática ritual de fato, e a religião por trás disso pode ter
muitas origens, sendo que a mais comum é o espiritismo que deriva do
catolicismo. Como o espiritismo Kardecista é bastante doutrinado e
codificado a tarefa dos seus sacerdotes é bem simplificada, mas
igualmente mal executada.
Mas
deixemos de lado um pouco essa questão que é farta de assunto e
exemplos, e na minha visão indefensável para voltarmos para o
praticante individual.
A
vida religiosa de um praticante é então dominada pela ritualística
e submissão hierárquica com pouco ou nenhuma orientação
religiosa. Sua dedicação é dominada pela participação em
obrigações próprias, de outros ou coletivas onde o seu papel varia
de nenhum a algum. Toda a iniciativa ritual em um terreiro é
dominada por poucos, um ou dois na maior parte das vezes cabendo aos
demais o papel de figuração ou coro.
A
rotina religiosa é repleta de festejos que criam assim um
direcionamento estético e vaidosa para a presença da pessoa uma vez
que não tendo ela um papel ou não consumindo o seu tempo com
reflexões religiosas essa pessoa passa a dedicar o sei tempo ao
culto do seu Ego e da sua vaidade no que faz. A vaidade é o que
domina o Candomblé hoje.
A
troca de favores usando o Órun (ọ̀run) e
o Àiyé
Chegamos,
por fim, a talvez uma das questões mais primárias disso tudo que é
o contínuo processo de troca entre o ọ̀run (órun) e o àiyé, que
domina o dia a dia das pessoas.
Esclarecendo
a todos o Órun (ọ̀run) é o espaço supernatural e o àiyé é o
espaço natural. O Órun (ọ̀run) é o lugar onde habitam os
espíritos e o àiyé é basicamente o mundo terreno.
A
troca significa que no àiyé as pessoas procuram através de
liturgias e oferendas oferecer coisas esperando receber em troca
disso favores dos espíritos do Órun (ọ̀run).
Isso
é como os católicos que fazem promessas para obter favores em troca
de penitências (aqui uma relação de sofrimento, no qual o Órun
(ọ̀run) católico exige que a pessoa sofra e se puna para
atendê-la?) ou os neo-pentecostais com sua doutrina de teologia da
prosperidade, na qual deus “em pessoa” vai atender a tudo o que
eles pedem, inclusive as maldades que pedem colocando nomes e fotos
das pessoas dentro da bíblia.
As
trocas, então, não são uma exclusividade de nenhuma religião e
sim na natureza humana.
No
Candomblé, este mecanismo domina tanto, a visão da pessoa que se
associa a uma casa, como também a forma como a sociedade vê as
casas e isso é muito ruim. É no mínimo curiosa a mentalidade que
se constrói de que os espíritos e divindades no Órun (ọ̀run)
estão ali, ávidos por receberem ebós e rapidamente, a troco de
umas bolas de farinha ajudar as pessoas no àiyé.
Sem
dúvida a visão do mundo de cada religião é distinta e isso
direciona a forma como as pessoas vivem. Se você olha uma religião
reencarnacionista e cármica como o budismo e kardecismo, por
exemplo, que pregam que viver é um sofrimento e você nasce, na
realidade, fazendo um “curso” de sofrimento para não mais
renascer, esta pessoa vai pautar sua vida justamente seguindo esta
sina, de “viver” essas dificuldades para que elas não apareçam
mais e também sendo forçosamente caridosos para acumular pontos
positivos nessa vida.
Eu
acho que o budismo deve fazer um bom trabalho nas pessoas, buscando o
melhor delas, apesar de eu não gostar da filosofia como um todo. Mas
o Kardecismo não tem filosofia do budismo e se caracteriza pela
orientação à caridade, na maior parte das vezes não sincera, como
uma obrigação de vida. Contudo, o que eu quero dizer aqui, mais uma
vez, e enfaticamente, é que a prática sincera de uma religião
direciona a forma como as pessoas vivem e como encaram a sua
existência.
A
religião Yorùbá tem como característica dizer para as pessoas que
elas nascem para ser felizes e elas devem viver felizes. Ela também
reconhece que o mundo tem muitas dificuldades e coloca o divino,
através de orixá (Òrìṣà) e outros espíritos disponíveis para
ajudar as pessoas a vencer os obstáculos que as impedem se ser
felizes.
Desta
maneira o Candomblé tem esta veia assistencialista na sua estrutura.
Mas o objetivo disso não é no que isto se transformou na prática.
A religião quer as pessoas felizes e ela suporta isso através do
equilíbrio e reposição de axé (aṣẹ́), que é a forma como a
religião entende que você obtêm as condições para ter condições
para resolver seus problemas. A religião entende que a pessoa deve
ter energia, uma boa cabeça para tomar boas decisões, um bom
caráter, ética e sorte na vida. Mas acima de tudo a religião diz
que a pessoa deve ter boas pernas, porque sem boas pernas você não
realiza nada.
A
visão dela é muito direta, nós temos que resolver nossos
problemas, o preguiçoso não vai ter nada na vida. Não adianta você
se sentar e esperar que as coisas ocorram, se você quiser realizar
alguma coisa faça algo por vocês. Se quiser ter dinheiro, trabalhe,
se quiser comer, plante, se quiser resolver problemas e conflitos
busque a solução. Não existe incentivo para a preguiça, para a
leniência e para a pessoa resolver seus problemas com trocas e
feitiços.
Existe
uma frase muito boa que diz que seu orixá (Òrìṣà) não vai
impedir que você chore suas lágrimas, mas, estará junto de você
para enxugá-las. As trocas entre o Órun (ọ̀run)
e o Àiyé existem, sempre com este sentido de dar a você as
melhores condições para realizar, trabalhar, ter saúde, ter
determinação e também para eliminar dificuldade ou negatividades
que não lhe pertencem.
Se
você passa anos plantando e regando um problema, você vai colher o
seu problema. O que saiu da sua mão é seu, usufrua dele. Não
adianta esperar ajuda divina para uma coisa que você mesmo criou
para você. Mas, existem situações que não nos pertencem, existem
problemas que não procuramos, existem negatividade que nos são
direcionadas por outras pessoas por sentimentos que não fomos
responsáveis diretos e nem por nossas ações.
Essas
coisas, que não nos pertencem e que não cultivamos, são as coisas
que são mais facilmente resolvidas pelo sistema de troca.
Mas,
o ser humano é muito obtuso e muito focado em seus objetivos. A
maior parte não está interessada em “viver” sua religiosidade.
A vida do praticante do Candomblé é dominada pelo sentido de alia
naquela casa ela estará próxima deste processo de troca contínua
de bens e favores entre o ọ̀run (órun) e o àiyé com o objetivo
de resolver todos os seus problemas materiais.
O
supermercado religioso do Candomblé é a tônica principal da
compreensão que se estabelece do que seja a religião dos orixá
(Òrìṣà) e isso é tão forte que permeia o grupo dos
frequentadores e mais, se alastra por toda a sociedade. As casas da
religião são rotuladas como casas de trabalho, lugares onde se paga
para resolver problemas e, na maioria delas sem muita ética
envolvida.
Assim,
baseado no fato de que a pessoa é dedicada ao seu orixá (òrìṣà),
que vai no seu terreiro para varrer o chão e passar roupa, ela
entende que é merecedora de favores do plano divino. Oferendas e
ebós são os elementos de troca que buscam dar coisas para que a
pessoa receba em troca favores, que vão resolver o seu problema,
trazer benefícios e criar atalhos para a sua vida.
A
questão do comportamento, do mérito como base para se poder
alcançar algo na vida ficam sempre para segundo (ou nenhum) plano.
Entende-se que o processo mágico das oferendas ou de obrigações é
o mais do que necessário para se obter o que precisa. Entendesse que
uma pessoa que faça seu orixá vai ter que receber em troca emprego,
dinheiro e uma vida melhor. Se isso não foi alcançado é porque o
sacerdote que procurou é ruim, seu santo foi mal feito, etc...
O
mais incrível é a pessoa entrar para uma religião que ela imagina
que as divindade que ela acha tão maravilhosa se vendem por um
punhado de grãos para fazer qualquer coisa, ou mesmo, que ficam lá
sem ter o que fazer a não ser facilitar a vida das pessoas aqui no
àiyé.
O
merecimento, ou a falta dele, é sempre lembrado como motivo para
justificar o não benefício, geralmente por quem vendeu a
liturgia para o favor ser atingido. Nessa hora a pessoa não obteve
porque não merecia. Mas nunca lembrado quando o contrário ocorre,
quando o benefício é atingido, nesse momento o mérito é de quem
fez a liturgia. A medida do sucesso na obtenção de benefícios e
prosperidade é a que justifica a permanência de alguém em uma
casa. Se as coisas não vão bem elas se vão.
Afirmo
que este é um desvio da religião. Ela não existe com essa
finalidade e essas almas pobres que assim se situam estão
completamente perdidas em relação ao o que é a religião. Não
tenho dúvida que esta distorção de visão começou quando as
pessoas começaram a comercializar o axé (aṣẹ́). O que deveria
ser uma coisa restrita para as pessoas de uma casa passou a estar à
venda para quem pudesse pagar.
O
sacerdote usando os conhecimentos a que tem acesso se transformou
apenas em um feiticeiro, um fazedor duvidoso de favores. Na vida
real, como no cinema, toda força mágica tem 2 usos, o do bem e o do
mal. A comercialização de ebós e feitiços é apenas um mau uso
disso, é o uso do lado ruim.
Um
religioso, um sacerdote é uma pessoa do bem. Ele não pode se
prestar a anunciar serviços mágicos ao alcance de qualquer pessoa.
Na
minha visão uma religião baseada em um sistema de trocas é o
caminho certo para o seu fracasso. As pessoas que se envolvem com uma
religião como o Candomblé não podem viver com essa perspectiva.
Uma religião não pode se focar ou incentivar esse comportamento
porque jamais as pessoas vão se encontrar ou entender o que estão
fazendo lá.
Mais
ainda, a falta de estrutura religiosa que permita a frequência e
participação de pessoas não iniciadas em terreiros junto com a
contínua pressão para que todos sejam iniciados é um problema
crônico que mais afasta do que aproxima.
O
Candomblé não será uma religião se não criar categorias para
diversos níveis de envolvimento e iniciação. Quando os terreiros
tiverem que conviver harmoniosamente com pessoas que não querem ou
que jamais farão o seu orixá (Òrìṣà) eles conseguiram enfim
achar um caminho religioso para sia existência. Hoje essa
convivência é um estágio intermediário no qual a pessoa é
continuamente empurrada ou incentivada a trocar de status de abian
para iyawo.
A
manutenção de terreiros através de clientelismo religioso é mais
um outro mal. Esse processo de troca entre ọ̀run (órun) e aiyé
deve acabar e isto ser um bem intrínseco da religião e não
explícito. O aspecto da troca esta presente em todas as religiões
em maior ou menor grau. Você dedica tempo, fé e recursos e espera
do ọ̀run (órun), do sagrado, um retorno para a sua vida. Isso é
natural, mas, algumas religiões moldarem isso com sabedoria, como a
católica outras transformaram isso na sua bandeira como os
evangélicos, mas que junto com a promessa de benefícios traz uma
enorme dose de doutrina, dogma, moral e ética.
A
perspectiva materialista
Na
umbanda e Candomblé isso fica quase apenas na perspectiva
materialista. O principal exemplo desse paradigma é a Umbanda. Como
já expliquei aqui antes a Umbanda por si só não se caracteriza
nenhuma religião. È um processo de possessão voltado em princípio
para ajudar outras pessoas mas que deve se basear em alguma doutrina
religiosa, qualquer uma porque a prática da Umbanda exige
mediunidade e não uma crença religiosa específica. Assim existem
muitas umbandas, cada uma com uma combinação e entre comum apenas a
incorporação com espíritos.
Os
médiuns e principalmente os frequentadores se fixam sempre na
solução de problemas da vida e materiais. A frequência é
determinada por isso e todos os que ali estão querem resolver algo
novo toda semana. “Macumba boa é aquela que funciona”. As
respostas a pergunta chave geralmente se traduzem em algo do tipo
que a pessoa está ali para elevação espiritual, mas essa resposta
não sobrevive a uma segunda pergunta do tipo o que significa para
ela essa elevação espiritual, como aquilo se traduzira na vida
dela?
Esse
problema não é exclusivamente do Candomblé. Esta muito presente
também nos neo-pentecostais, contudo, apesar do muito excessos eles
conseguem algum equilíbrio entre a realização espiritual e o
sentimento de realização material. Tanto que as pessoa migram do
Candomblé e Umbanda para eles.
Existe
um tipo de pessoa e uma determinada faixa da população que coloca
claramente essa questão material na frente da sua religião. Elas na
realidade vão estar sempre buscando alguém que resolva os seus
problemas e serão uma população migratória entre doutrinas e
casas na busca de solução.
O
circulo virtuoso
Eu
poderia traduzir assim o círculo virtuoso. Uma pessoa que se dedica
a essa religião deve encontrar base e orientação para através do
contato com esse divino, através de exemplos e através de
orientação, atingir um equilíbrio em sua vida na forma como a
conduz e na forma como dedica o seu tempo para objetivos de
realização. Equilíbrio é a principal palavra que traduz essa
religião.
Uma
pessoa religiosa é aquela que vive nesse mundo com a fé no divino.
Uma fé forte e presente que a faz saber que sua vida existência
está sendo submetida e é controlada por uma força maior do que a
dos homens, por uma lei maior do que a dos homens. Assim essa pessoa
vive com a convicção de que não esta sozinha nesse mundo, o divino
no ọ̀run (órun) esta sempre a zelar por ele. Uma pessoa de fé
sabe que o mundo e as coisas são controladas pelo divino e não pela
mesquinharia dos homens.
Essa
pessoa vai se transformar em uma pessoa melhor para consigo mesma
obtendo equilíbrio na forma como vive sua vida e se dedica a seus
objetivos com ética e caráter. O seu orixá (òrìṣà) e ori vão
buscar não somente ajudá-lo nesse equilíbrio como também ajudá-lo
a enfrentar as diversidades de sua vida, amenizando problemas, e
tornando-o transparente para seus inimigos. A própria conduta dessa
pessoa, equilibrada consigo mesmo vai evitar que ela cria inimigos
para sí.
O
seu ori vai protegê-lo dos ajogun, os males que estão nesse mundo e
que fogem ao nosso controle. A sua boa conduta vai permitir que
oportunidades de abram em sua vida, que ele as veja e que consiga se
aproveitar delas. Os caminhos dessa pessoa se abrem através do seu
mérito como pessoa e através da proteção do divino para aquelas
coisas que não forem plantadas por você mesmo.
Você
como uma pessoa melhor vai ter condições de ajudar sua família e
trazer também para ela esse equilíbrio. Mais pessoas assim serão
beneficiadas por sua ação. O benefício para a família é um dos
principais objetivos que uma pessoa deve ter em sua vida, seja por
mantê-la unida seja por vê-la prosperar.
Uma
vez atingido esse estágio você tera condições de ajudar a
sociedade que o cerca, tendo assim conhecimento e experiência para
transmitir para outras pessoas, ajudando a transformar e melhorar o
mundo em que vive.
Uma
pessoa religiosa deve ter uma prática diária dessa religiosidade. A
oração é o elemento de ligação entre o aiyé e o ọ̀run (órun).
As palavras empregadas e sua repetição é o que o fazem. Uma pessoa
deve de Fé deve estar ligada ao ọ̀run (órun) e deve ter em sua
vida a prática da oração.
Além
disso a pessoa que vive com Fé deve se lembrar desse divino ao longo
do seu dia. Seja quando tem uma dificuldade seja quando algo de bom
ocorre com ele porque o mesmo ouvido que serve para ouvir pedidos de
proteção e ajuda também serve para ouvir agradecimento.
Uma
pessoa de Fé deve ter uma prática religiosa diária e semanal para
si que não dependa do sei terreiro para que ela busque através
dessa ligação com o ọ̀run (órun) o equilíbrio e o Iwa pele que
vão trazer tudo de bom para a sua vida.
Uma
pessoa de Fé deve saber como se dirigir a seu orixá (òrìṣà) e
Ori e como receber deles as mensagens que precisa para poder viver
melhor o seu dia e vida.
Devo dizer esse post eh um dos melhores senao o melhor e mais liberador que jah li sobre o assunto. Cansado de depender do oujtro pra ter Olodumare em minha vida e casado tambem de culpar os outros e o orixa pelas derrotas, ah e cansado tambem de nao ser considerado da religiao porque sou abian. Te agradeco imensamente pela coragem e inteligencia!
ResponderExcluirA...
Perfeito!!!
ResponderExcluirMuito esclarecedor e com um linguajar perfeito!
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